A nova regulação europeia e a centralidade dos direitos autorais
Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro, professor da UERJ e da PUC-Rio
Priscilla Silva, pesquisadora do ITS Rio e mestre em Direito na PUC-Rio
Data da publicação: fevereiro 2019
Para o leitor brasileiro interessado em temas sobre Direito e Internet, a pauta sobre direitos autorais parece ter sido uma constante nas últimas duas décadas. No começo dos anos 2000 foi justamente o debate sobre proteção autoral na rede que estava em foco nas decisões que tiraram do ar o programa Napster, que permitia a troca de arquivos de música entre seus usuários.
A década passada trouxe ainda outros temas para a tutela dos direitos autorais no ambiente digital, como a implementação das licenças Creative Commons e de software livre. Discussões sobre a reforma da Lei de Direitos Autorais no país mantiveram a temperatura do debate. Na primeira metade dessa década, as discussões que levaram à aprovação do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) também envolveram os direitos autorais e o regime de responsabilidade decorrente de sua infração.
Mais recentemente, debates sobre o bloqueio de aplicações e de sites também trouxeram à tona questões envolvendo direitos autorais e no Congresso Nacional existem projetos de lei que abordam o tema, além dos trabalhos do Conselho de Comunicação Social.
Sendo assim, não é de se estranhar a centralidade do papel que os direitos autorais desempenham nas discussões sobre o futuro da rede. Não raramente decisões judiciais, aprovação de leis e debates internacionais sobre o tema ganham as manchetes em tons que variam entre a comemoração de uma vitória para o exercício dos direitos na rede e o anúncio apocalíptico de uma catástrofe iminente.
É justamente nesse contexto que se insere a recente decisão do Parlamento Europeu. Em 12 de setembro de 2018, o Parlamento votou favoravelmente à proposta de revisão da Diretiva de Direitos Autorais da União Europeia, que traz substanciais mudanças às regras hoje em vigor.1 O Artigo 13, em especial, estabelece a obrigação de as plataformas de compartilhamento adotarem medidas que impeçam a disponibilização de conteúdos protegidos por direitos autorais de terceiros.
Na prática, essa obrigação se daria pela instalação, por agentes privados que produzem conteúdo escrito, de vídeo ou áudio (como Youtube, Vimeo, Instagram e Facebook), de filtros de upload, um filtro automático de conteúdos prévio à postagem. O texto hoje em vigor, por sua vez, faz um controle posterior do conteúdo postado, determinando apenas a remoção de conteúdos que violam as regras de direitos autorais. Com opiniões divergentes, alguns dizem que esse Artigo 13 seria benéfico à proteção dos direitos autorais, enquanto outros defendem ser um grave risco à liberdade de expressão.
A Diretiva de Direitos Autorais ainda não entrou em vigor. O texto terá que passar por uma série de etapas antes de se tornar efetivamente uma Diretiva da União Europeia e, em seguida, ser implementada pelos Estados membros.
Entre as críticas ao Artigo 13 está a de que a proposta possui deficiências que irão subverter o seu propósito declarado, pondo em perigo os direitos à liberdade de expressão, devido processo legal e privacidade.
A partir da sua atuação como defensora das liberdades civis, a Electronic Frontier Foundation2 relatou em nota3 que o sistema automatizado de notificação e remoção de conteúdo por violações de direitos autorais no Youtube – o Content ID – pode servir de exemplo sobre como sistemas automatizados ainda estão longe de produzir um equilíbrio devido entre a eficiência na remoção de infrações e o respeito às limitações e exceções dos direitos autorais.
Em um nível ainda mais preocupante, falsas alegações de direitos autorais têm sido usadas para fins de manipulação, como supressão de memorandos de denunciantes detalhando falhas na segurança das eleições, evidência de brutalidade policial e disputas sobre publicações científicas.
Diante de um sistema automatizado já sujeito a falhas, o Artigo 13 da Diretiva determina que plataformas criem ferramentas para permitir milhares de reivindicações de direitos autorais de uma só vez, por todos os interessados, sem penalidade por erros ou alegações falsas, o que, de acordo com a Electronic Frontier Foundation, vai apenas intensificar um problema que já existe, sem previsão de penalidades contra falsas alegações de direitos autorais ou uso abusivo do direto à reivindicação. Tal sistema, se implementado, teria o potencial de prejudicar o usuário que partilha conteúdo, seja de paródias ou ironias – razão pela qual o Artigo 13 passou a ser conhecido como a “proibição dos memes” – seja de pequenas empresas, que não teriam tecnologia e dinheiro suficientes para concorrer com empresas de grande porte.
De outro lado, a favor do Artigo 13, Richard Bennett – fundador e editor do High Tech Forum – respondeu em uma publicação as preocupações da Electronic Frontier Foundation.4 Contra o argumento de que somente as empresas de grande porte iriam conseguir se manter na eventualidade da aprovação da proposta em regra, Richard diz que essa especulação é falaciosa, uma vez que empresas de pequeno porte seriam isentas à Diretiva – que, por sua vez, se destina apenas a grandes empresas como Spotify, Pandora e Apple Music.
Isso porque a Emenda nº 37 da Diretiva menciona que a “definição de fornecedores de serviços de partilha de conteúdos [aos quais a Diretiva se destina] não abrange as microempresas e as pequenas empresas”.
Além disso, quanto ao problema de ocorrências de eventuais abusos em reivindicações falsas de autoria, Richard diz que bastaria limitar uploads para usuários registrados com nomes e endereços reais e um acordo para não violar os direitos autorais, especialmente se os infratores reincidentes forem banidos da plataforma.
O fundador do High Tech Forum ainda contesta o argumento de que a inteligência artificial não estaria preparada para filtrar desvios de direitos autorais sob a alegação de que sistemas computacionais resolvem problemas complicados o tempo todo, como os relacionados a carros autônomos.
Diante desse panorama, parece que um importante fato não foi considerado nessa linha contra argumentativa: a manutenção da liberdade de expressão é preservada a partir do estabelecimento de restrições ao direito que se aplicam a posteriori. Alguns limites são estabelecidos previamente, na letra da lei, porém, o efetivo impedimento ou suspensão da circulação de um conteúdo, deve-se dar, preferencialmente, a posteriori.
As regras que estabelecem uma censura prévia de conteúdo – impedindo que o conteúdo seja publicado e não removendo o conteúdo problemático depois da ocorrência da publicação –, como é o caso em questão, propicia o que a doutrina norte-americana chama de slippery slope. De acordo com essa noção, a admissão de regras restritivas à liberdade de expressão para além dos termos convencionais ensejaria em uma gradual aceitação de relativização do direito – como uma “rampa escorregadia” que não se pudesse frear – até que o direito à liberdade de expressão restasse irreversivelmente esvaziado.
A respeito dos limites atuais da inteligência artificial, um dos maiores problemas enfrentados está em ensinar a máquina a interpretar a partir de uma perspectiva humana. Por isso, as maiores dificuldades se relacionam a questões éticas, morais, análise de sentimentos e sensibilidade interpretativa nas nuances da linguagem.5 Inclusive, no próprio exemplo de carros autônomos há um enfrentamento de dificuldades relacionadas a dilemas morais.6 Especialmente no caso dos direitos autorais, os sistemas automatizados têm repetidamente falhado em reconhecer situações que são claras hipóteses de aplicação de limitações e exceções aos direitos autorais (ou de fair use na experiência americana). A obrigatoriedade de se criar tais ferramentas pode significar um importante desequilíbrio na proteção dos direitos envolvidos.
Por isso, nos parece que a aprovação do Artigo 13 aqui debatido, embora pautado pelos melhores interesses no sentido de aperfeiçoar a tutela dos direitos autorais na rede, falha ao impor medidas que criariam restrições severas ao modo pelo qual obras intelectuais podem ser utilizadas (legalmente) na rede.
Vale, por fim, fazer uma breve nota sobre a questão da pirataria. A última década viu uma certa regressão no uso indiscriminado de ferramentas como Torrent para o download de obras intelectuais protegidas. Uma razão para esse cenário é a consolidação de plataformas de streaming, que permitem o uso legal de obras, musicais e audiovisuais, acessíveis a partir de preços baixos, com catálogos abrangentes e com conteúdos exclusivos.
Ao mirar especialmente as grandes plataformas que permitem o upload de conteúdos por terceiros, como o Youtube, o texto da Diretiva pode fazer com que certas obras não venham a estar disponíveis nesses provedores, empurrando os usuários de volta para outros regimes de compartilhamento caso queiram ter acesso a esse conteúdo.
Imagine-se um vídeo que legalmente remixa trechos de obras pré-existentes. Se ele viralizar e acabar sendo pego pelos filtros de upload, os usuários migrarão para onde eles possam ter acesso ao conteúdo, seja plataformas menos controladas de compartilhamento ou mesmo aplicativos de mensagens instantâneas. Ou seja, vai se criar um mecanismo de proteção que, na verdade, não apenas é falho e propenso a abusos, como nem mesmo os interesses dos autores e titulares de direitos autorais atende, já que a obra continuará a ser compartilhada, embora em outras plataformas.
Como aprendemos no filme Jurassic Park: “a vida encontra um jeito” (life finds a way). Essa lição pode ser especialmente importante para se entender a utilidade e o futuro das medidas previstas na nova regulação europeia.
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1 O texto completo da proposta está disponível em http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+TA+P...
2 A “Electronic Frontier Foundation” é uma organização sem fins lucrativos sediada em San Francisco, Califórnia, cujo objetivo declarado é proteger os direitos de liberdade de expressão, tais como definidos pela Primeira emenda da constituição dos Estados Unidos da América, no contexto da era digital.
3 Nota emitida pela Electronic Frontier Foundation, assinada por Cory Doctorow: https://www.eff.org/deeplinks/2018/10/effs-letter-eus-copyright-directiv.... Versão em português publicada nesta edição da poliTICs.
4 http://hightechforum.org/europe-gets-serious-about-copyright. Versão em português publicada nesta edição da poliTICs, com autorização do autor.
5 Para compreender mais sobre as dificuldades interpretativas: https://hbr.org/2018/07/ais-next-great-challenge-understanding-the-nuanc...
6 http://thecityfixbrasil.com/2017/04/19/o-dilema-etico-dos-carros-autonom...