O novo sistema brasileiro de identificação - traços exclusivos de uma transformação geral
Danilo Doneda, Coordenador-Geral de Supervisão e Controle no Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça
Marta Mourão Kanashiro, Pesquisadora e professora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp
Data da publicação: setembro 2012
A adoção de uma nova carteira de identidade no Brasil, mais conhecida como RIC (Registro de Identidade Civil), tem história longa, começando com os dispositivos da lei 9.454, aprovada em 1997. No entanto, a implantação da nova carteira de identidade é muito mais recente. Podemos dizer que o início do processo se deu quando houve a aquisição do equipamento necessário para digitalizar a identificação biométrica, ocorrida em 2004. Porém, nem a lei nem seu processo de implantação foram visíveis o suficiente para causar um debate público acerca do assunto. Deve-se acrescentar neste quadro brasileiro a falta de um debate teórico e acadêmico sobre essa mudança na identificação das pessoas e sobre as tecnologias envolvidas em tal transformação.
Esse processo é influenciado por discursos e práticas que merecem uma análise mais detalhada, especialmente porque ele também aponta para mudanças extensas bem como específicas, marcadas por diversas mudanças de significado, conforme detalharemos neste artigo. Vale destacar que o aspecto tecnocrático do processo praticamente impossibilita qualquer tentativa de oposição, como se esse sistema de identificação já viesse isento de quaisquer características obscuras ou negativas. Esse fato por si só justifica a importância de uma análise mais minuciosa de um sistema cujas consequências se farão sentir para todos os brasileiros num futuro próximo.
O fato de não ter sido implantado um sistema análogo em outros países que, antes do Brasil, já tinham as possibilidades técnicas e econômicas para fazê-lo é nossa principal questão. Iniciativas dessa ordem já foram propostas algumas vezes, e, algumas vezes, devidamente contestadas. Nessas ocasiões, é importantíssimo o entendimento geral de que tais sistemas prejudicariam um certo equilíbrio de poder informacional entre cidadãos e o Estado ou empresas privadas – enfraquecendo os cidadãos, ao levá-los a abrir mão de meios para o controle de suas vidas e atividades. A oposição a iniciativas desse tipo tem contribuído para uma maior proteção dos dados pessoais como um direito fundamental na sociedade da informação.
NOVAS FORMAS DE IDENTIFICAÇÃO
No Brasil, o RIC vai substituir o documento nacionalde identificação civil, a atual Carteira de Identidade,também conhecida como RG (Registro Geral). O Brasil é um dos países com tradição em dar carteiras de identidade aos seus cidadãos como forma de possibilitar ou facilitar sua identificação em instâncias tanto públicas quanto privadas. Destaque-se que essa tradição se contrapõe a outra, igualmente forte, muito presente em países de cultura anglo-saxônica, onde tal documento não se faz necessário por si só.
O RG no Brasil é emitido pela Secretaria de Segurança Pública de cada Estado da União e, na falta de um sistema de cadastro centralizado entre esses órgãos, toda pessoa pode conseguir mais de uma carteira de identidade, cada qual oriunda de um estado diferente e com distintos números de identificação.
Os principais argumentos do Governo Federal a favor da adoção do RIC são: a ideia de modernização e coordenação nacional desse sistema, o combate a fraudes ou duplicidade da identidade, bem como a promoção da cidadania e da democracia.
A instituição do RIC conta com o apoio da lei 9.454 de 7 de abril de 1997, que diz ser a exclusiva numeração desse documento a principal forma de identificação para todos os cidadãos brasileiros, em todas as suas relações com a sociedade e com organizações privadas ou governamentais. Com vistas a isso, o RIC vai confluir vários outros documentos, como a carteira de identidade (RG), a carteira de habilitação, o Cadastro de Pessoa Física (CPF), o título de eleitor, a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), o cadastro do indivíduo no PIS/PASEP (Programa de Integração Social / Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e o número de registro no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Assim, será possível estabelecer conexão com a maioria dos bancos de dados de maior relevância para a vida de um cidadão normal num único documento e num único banco de dados.
A lei 9.454 foi sancionada pelo presidente do Brasil na ocasião, Fernando Henrique Cardoso . Sua entrada em vigor deveria ter ocorrido 180 dias após sua publicação e sua implantação deveria ter começado no prazo de 360 dias. No caso do RIC, a entrada em vigor da lei é fundamental para determinar sua eficácia real . Entretanto, isso só foi ocorrer em 2010. Como no Brasil o prazo para entrada em vigor desse tipo de legislação vence a cada 5 anos, já houve solicitações no Congresso para estender o prazo (RQS 190 de 2001 e projeto de lei 5.297, de 2005) . Durante o processamento dessas solicitações, houve ocasiões em que a atual carteira de identidade (RG) e o CPF ficaram sem validade legal no país.
Na verdade, o processo de implantação da nova carteira de identidade – incluindo dados biométricos – vai além da esfera jurídica. Como a lei não tinha entrado em vigor, também ficaram faltando mecanismos jurídicos para serem aplicados especificamente ao processo e capazes de estipular formas externas de controle e supervisão da própria carteira. Da mesma forma, não foram desenvolvidas regras normativas quanto ao acesso e utilização dos dados pessoais que vão constar no novo documento e em seu respectivo banco de dados. É importante destacar que os grupos mais engajados na implantação do RIC são basicamente órgãos de segurança pública.
Entretanto, a lentidão para aprovar a lei, a falta de um debate público e de mecanismos jurídicos de supervisão, até mesmo a obscuridade das regras para o acesso aos dados não devem ser entendidos como uma implicação de que o projeto esteja longe de ser efetivamente implantado. Conforme o sítio Web mantido na Internet pelo governo do Estado de Rondônia, este estado é um dos pioneiros na implantação do novo documento, devido à população de pequenas proporções. O Instituto de Identificação Civil e Criminal da capital PortoVelho deu início ao processo de digitalização de quase 1.100.000 carteiras de identidade em dezembro de 2008, como uma das fases de implantação do RIC. O mesmo processo teve início também em outros quatro estados brasileiros, ao mesmo tempo em que se ampliaram as estruturas de identificação e treinamento para o uso do novo sistema. No sítio Web do governo, o Secretário de Segurança garantiu que Rondônia tinha adotado o melhor sistema para fazer o RIC: “Enquanto outros estados estão construindo seus sistemas junto a empresas privadas, investindo cerca de 20 milhões de reais, nós estamos trabalhando em parceria com a Polícia Federal.” (Identificação, 2009).
Assim, apesar de não haver regras, transparência, nem debate público, o projeto está sendo implantado devagar e de forma quase invisível, principalmente em regiões distantes dos grandes centros, onde notícias como esta teriam imensa repercussão. Apesar destes procedimentos terem começado em 2008, é possível datar o início do processo em 2004, ano em que o governo federal investiu 35 milhões de dólares para adquirir o sistema AFIS (Automatized Fingerprint Identification System), necessário para informatizar a identificação no país. Agora sob a responsabilidade do Conselho de Justiça Federal, o sistema possibilita o cadastramento eletrônico das impressões digitais em bancos de dados eletrônicos, bem como o cruzamento dessas informações com outras.
O novo documento de identidade lembra um cartão de crédito: uma plaqueta de policarbonato rígida o suficiente para permitir a inserção de chips de memória para armazenamento de dados pessoais, inclusive aqueles já escritos no documento (também chamados de dados biográficos, como, por exemplo, o nome próprio, o dos pais, a data do nascimento e o sexo do indivíduo), e outras informações pertinentes a outros documentos, como o número da carteira de trabalho. A carteira de identidade também poderá ser usada como um cartão de crédito.
No verso do documento, há uma reprodução digital do polegar direito, preferivelmente obtida com o sistema AFIS. A gravação eletrônica é feita posicionando-se o dedo sobre uma superfície de vidro enquanto a leitora ótica projeta uma luz sobre a impressão digital, que é assim “fotografada”, gerando uma imagem digital, uma sequência de números zero e um que representam pontinhos (pixels) para formar uma imagem. Uma vez capturada, essa imagem pode ser guardada num banco de dados ou comparada com outras para fins de identificação.
Essa verificação é feita através da análise dos detalhes ou traços característicos da impressão digital por um algoritmo matemático. Para verificar a correspondência entre um par de impressões digitais, por exemplo, o sistema busca padrões comuns, cuja quantidade pode variar conforme a configuração do sistema. Aqui é importante destacar que a utilização da tecnologia biométrica e do AFIS não deve ser compreendida como a mera aplicação de uma tecnologia mais sofisticada para a realização de tarefas que já são realizadas quando se identifica alguém com base no seu RG. Este sistema novo que essencialmente cria um imenso banco de dados e permite a referência cruzada dessas informações, além de muitos outros procedimentos, também está relacionado a uma série de transformações típicas dos nossos dias. Conforme o primeiro projeto do RIC, elaborado em 1998 pelo atual diretor do Instituto Nacional de Identificação, Marcos Elias de Araújo, a parte inicial do banco de dados seria alimentada com as imagens eletrônicas geradas por varredura ótica dos cadastros criminais que já têm impressões digitais arquivadas em papel, um banco de dados chamado Cadastro Inicial (CIN), que contém cerca de 8 milhões de registros.
Após essa primeira fase, o projeto continua com a construção de um único banco de dados para arquivar as informações de 150 milhões de brasileiros no Cadastro Nacional do Registro de Identidade Civil (CANRIC), que vai conter os dados biográficos e detalhes de todos os cidadãos. O Ministério da Justiça é responsável pela implantação, coordenação e controle do cadastro, que será executado através da interação de algumas organizações estatais, inclusive os Departamentos de Segurança Pública ligados à Secretaria de Segurança Pública, o Instituto Nacional de Identificação, o Departamento de Polícia Federal, bem como outras agências regionais e organizações locais responsáveis pela identificação, como os cartórios. O sistema, então, será capaz de verificar a correspondência entre impressões digitais tomadas pela própria pessoa (no processo conhecido como scan) e dados digitalizados pelo CIN, e poderá também verificar se uma pessoa tentou tirar mais de uma carteira de identidade sob nomes diferentes.
Durante esse processo, todos deverão comparecer a uma agência regional de identificação para se registrar no novo sistema. Depois, serão coletadas a fotografia (imagem digitalizada do rosto), a assinatura e as impressões digitais de cada cidadão. Todos esses dados podem ser considerados biométricos. Neste procedimento, as imagens do polegar e de todos os outros dedos da mão serão colhidas pelas agências de identificação e enviadas eletronicamente para o Instituto Nacional de Identificação, que por sua vez, fará a verificação e comparação, através do sistema AFIS, com dados dos agora digitalizados arquivos criminais e com aqueles já incluídos a partir do Cadastro Nacional.
O protocolo pretende confirmar a exclusividade das impressões digitais de cada cidadão, antes de atribuir-lhe um número de RIC, que poderá ser o mesmo do PIS/PASEP, para quem já o tem. Caso não se confirme essa exclusividade, o INI tornará a fazer a análise, através dos seus especialistas em impressões digitais. Os dados serão transmitidos pela Internet, ou arquivos magnéticos serão enviados por email.
É preciso enfatizar outra característica bastante importante, comum a todas as modalidades mais recentes de implantação de sistemas de identificação: o fato de que o documento de identificação, por si só, tornou-se pouco mais que o componente visível de um sistema que é, de fato, muito mais intricado que seus antecessores. O que podemos considerar como coração do sistema é o banco de dados, que vai permitir vários novos usos para as informações pessoais dos indivíduos. E esses novos usos podem configurar-se como os riscos potenciais mais sérios para os cidadãos registrados.
TRAÇOS EXCLUSIVOS DO CASO BRASILEIRO
Além do RIC, há outros três projetos em andamento no país que somam-se ao franco esforço que faz o Estado brasileiro para identificar as pessoas através de tecnologia biométrica inserida em documentos – e a consequente criação de bancos de dados sobre a população. São eles o da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), o do Título de Eleitor e o do Passaporte. Todos estes documentos já incluem tecnologia biométrica e seus próprios bancos de dados também já estão sendo criados.
À primeira vista, pode parecer que eles se sobrepõem ou se anulam, no sentido de que um único documento dispensaria mudanças nos demais, como a CNH ou o título de eleitor. Contudo, por causa da meta explícita de integrar o Cadastro de Eleitores num único sistema de identificação de cidadãos, é razoável assumir que este processo seja a última instância da consolidação de bancos de dados num único sistema. Estes projetos se completam em muitas esferas com vistas a cobrir toda a população, em suas várias relações com o Estado e com as organizações não governamentais. A sobreposição de vários projetos faz bastante sentido quando leva-se em conta a área, a população e a diversidade de um país como o Brasil.
A multiplicidade de projetos de identificação no Brasil também destaca uma série de discursos fundamentadores subjacentes. A promoção da cidadania, da democracia, da modernização e da luta contra a fraude são algumas das noções lançadas como justificativas para as mudanças na forma de identificação no país. Esses projetos pegam essas ideias e as redefinem ou deslocam; ao mesmo tempo, conectam-nas com novas tecnologias que permitem vigiar e identificar as pessoas. Entretanto, no exterior, as noções não são as mesmas. Em outras palavras, é importante observar a presença, ou as tentativas de implantar tecnologias de identificação que já são comuns nas sociedades contemporâneas, mas há também as particularidades que caracterizam este processo em vários outros lugares do mundo.
Nesse sentido, as alterações relativas a essas tecnologias podem ser observadas em dois níveis (um geral e um específico), que não estão claramente separados, e, consequentemente, às vezes se interceptam e reforçam. No nível geral é possível observar que as tecnologias que permitem identificar e vigiar as pessoas, como os telefones celulares, os aparelhos de GPS, os smartcards, as redes sociais na Internet, documentos com chips e dados biométricos, dentre outros, estão relacionados com noções de individualidade, privacidade, subjetividade, público e privado etc. que estão em transformação. Por outro lado, existe um nível mais específico de mudanças e deslocamento de conceitos que está associado a noções lançadas como justificativas para os projetos que usam essas tecnologias.
No caso de documentos de identificação (como passaportes), é possível observar que, fora do Brasil, em lugar da modernização, do combate à fraude ou da promoção da cidadania, é mais comum encontrar justificativas relacionadas a ideias de combate ao terrorismo e à imigração clandestina, que estão ligadas a questões tais como a globalização, a garantia de mobilidade internacional, soberania e assim por diante. É, portanto, nesse nível que podem ser observadas as particularidades do processo.
Os elementos acionados no caso brasileiro para justificar os projetos supracitados também são específicos de uma pretendida transição tecnológica no país, ligada a uma certa noção de modernização. Além da simples ideia de incorporar novas tecnologias – como no caso da biometria no RIC – que traz à tona certa sensação de modernidade, apesar da continuidade das assimetrias e desigualdades que caracterizam o país, também é necessário repensar essa noção permanente de déficit, ou modernização compreendida como superação de atraso, que permeia a constituição da identidade brasileira e também marca o projeto do RIC.
Não obstante o fato de que nos países europeus ou norte-americanos o uso de tecnologias biométricas e a incorporação de um único documento sejam assuntos amplamente discutidos e combatidos, permanece no imaginário brasileiro a noção de que a presença da tecnologia está relacionada com o próprio progresso. Essa característica está ligada a uma aceitação mais ampla (ou mesmo a um desejo) das tecnologias, sejam quais forem, no cotidiano das pessoas.
Outra especificidade do caso brasileiro é o lançamento da ideia de cidadania como algo a ser promovido pela implantação do projeto do RIC. Essa cidadania não é a mesma que vem sendo definida por movimentos sociais desde a década de 1970, como uma “nova cidadania”, ou uma “cidadania mais ampla”, que inclui a noção do “direito a ter direitos” e que se caracteriza pela criação, invenção e definição de novos direitos pelos sujeitos enquanto agentes políticos ativos. A cidadania, portanto, não significa a mera inclusão das pessoas num sistema previamente dado e definido, determinado através de um processo de cima para baixo.
A cientista política Evelina Dagnino discute a noção de cidadania mais ampla contrastando-a com: 1) cidadania enquanto conceito liberal, ou seja, “alegação de direito a acesso, inclusão, participação e pertencimento a um dado sistema político”, 2) as concepções de cidadania tradicionalmente adotadas no Brasil, ou seja, “uma estratégia de classe dominante e Estado incorporando politicamente, e de maneira gradativa, os setores excluídos, com vistas a uma integração social maior, ou como uma condição política e jurídica necessária para a instalação do capitalismo”, 3) a cidadania compreendida em sua conexão neoliberal com o direito a consumir no mercado, ou enquanto solidariedade com os pobres. Com essa definição em mente, a cidadania promovida pelo novo documento RIC parece deslocada de uma cidadania mais ampla por causa de elementos relacionados com a noção liberal ou tradicional, ou por sua ligação com a ideologia neoliberal. Cabe acrescentar a este quadro o fato de que a identificação dos cidadãos pelo Estado brasileiro já é historicamente favorável à maioria da população por tratar-se de uma pré-condição para a inclusão e o acesso a serviços e benefícios possibilitados pelo Estado. A identificação civil no Brasil não é vista pela mesma ótica de desconfiança atávica com que é tratada em alguns países, especialmente os de cultura anglo-saxônica.
Mas ainda há outros elementos que também caracterizam a particularidade da situação brasileira. Numa entrevista realizada em abril de 2006 com parte de uma pesquisa sobre a tecnologia biométrica em documentos brasileiros, um empresário envolvido com pesquisa e desenvolvimento no setor da segurança eletrônica disse que a maioria dos países ligam a coleta de impressões digitais ou o fornecimento de dados pessoais a criminosos e à ideia de suspeita, mas que isso não acontece no Brasil. Segundo ele, o RG brasileiro já contém impressões digitais, fato que por si só já reduz o potencial de uma oposição popular a tal coleta. Da mesma forma, exigir que brasileiros forneçam dados pessoais é normal em todo tipo de transação cotidiana para conseguir acesso a serviços e bens de primeira necessidade. O empresário em questão declarou ainda que a oposição comparativamente menor dos brasileiros era um fato considerado importante para aqueles que investem em tecnologias biométricas no país.
Devemos acrescentar a este quadro marcado pela aceitação por parte da maioria da população a falta de normas jurídicas ou ausência de movimentos sociais preocupados com as novas tecnologias de vigilância e identificação, que possibilitam caracterizar o país como imenso campo de testes para a biometria e outras tecnologias de vigilância e para a implantação de bancos de dados sobre a população.
Também é importante destacar que o caso brasileiro está marcado pelo fato de que poucos são os equipamentos de segurança desenvolvidos ou fabricados no Brasil; a maioria é importada e apenas montada no país. Empresários do setor apontam uma saturação no mercado da segurança eletrônica em lugares como o Japão, a Europa e a América do Norte, e a expansão de novos mercados no Brasil, na China, na Rússia e na Índia. Segundo outra entrevista para a pesquisa mencionada: “Não temos aqui as máquinas capazes de reconhecer o rosto de uma pessoa. Elas precisam ser trazidas de fora. Trata-se de mais uma grande vantagem, pois isso significa que temos muitas coisas a construir por aqui.”
Num nível mais geral, vale destacar que a aceitação da tecnologia biométrica em documentos também está relacionada à ideia de que as novas tecnologias facilitam as coisas e trazem conforto e velocidade, além de modernização e segurança. Neste sentido, a introdução dessas transformações no país deve ser vista também em conexão com o uso lugar-comum da tecnologia biométrica que acionam essas noções no Brasil. Hoje, o uso da identificação biométrica já é realidade em escolas e universidades, planos de saúde (como a Unimed Paulistana) e também para o acesso a computadores e prédios comerciais. Noutros espaços, como academias de ginástica e locadoras de vídeo, também é possível ver a participação voluntária de usuários, muitas vezes atraídos por promessas de agilidade, segurança e conforto.
É como se numa série de espaços as pessoas tivessem começado a querer a tecnologia biométrica, que é uma transformação dos procedimentos de identificação, no seu cotidiano. São exatamente esse conforto e essa agilidade que acabam incorporados por projetos como o RIC, quando seu texto declara que os brasileiros não mais precisarão carregar vários documentos diferentes. A participação da população é promovida nos vários usos da tecnologia biométrica e as pessoas indicam que desejam tais facilidades, o conforto, a agilidade e a sensação de ascenção à modernidade, ou a superação do atraso através da tecnologia. As novas formas de identificação não são, portanto, apenas uma imposição do Estado; tampouco são imposições vindas de fora. Pelo contrário; contam com a participação da população e parecem capturar seu desejo.
Em suma, se há elementos que diferenciam o processo de implantar um único documento de identificação e de usar a biometria no Brasil daquilo que aconteceu em outros países e que pode ser rastreado até o nível particular, também é necessário conectar esses elementos àqueles mais gerais vistos em outros países, pois trata-se de um fenômeno contemporâneo global que resulta em mudanças profundas nas sociedades. Há vários fatores interconectados, que reforçam a si mesmos e precisam ser separados para que os analisemos.
CONSTITUIÇÃO DE BANCOS DE DADOS E PERFIS
Para examinarmos este cenário, precisamos olhar para as mudanças feitas no sistema de passaportes no Brasil, que, diferente dos demais casos brasileiros de uso da identificação biométrica mencionados até o momento, foi impulsionado por fatores externos. Nos outros países, as mudanças nos passaportes resultaram numa reação em defesa da privacidade por parte de movimentos sociais e de intelectuais – tanto na América do Norte quanto na Europa. Por exemplo, em 2003 e 2004, houve intenso debate político nos Estados Unidos sobre tentativas de implantar um programa que incluísse nos passaportes uma nova tecnologia e uma forma de cruzar informações com outros bancos de dados, inclusive os comerciais.
O Departamento de Segurança do Transporte (Transportation Security Administration) dos Estados Unidos promoveu o CAPPS (Computer Assisted Passenger Pre-Screening System – Sistema Informatizado para Triagem Prévia de Passageiros), cujo objetivo era identificar passageiros que representassem maiores riscos e selecioná-los para procedimentos de segurança adicionais antes do seu embarque nos aviões. A verificação da identidade dos passageiros envolvia avaliação de risco usando bancos de dados comerciais bem como informações de inteligência do Estado. Em outras palavras, os dados contidos nos passaportes eram cruzados com aqueles contidos em outras instâncias de armazenamento para que fosse avaliado o potencial de ameaça que alguns passageiros poderiam representar.
A Electronic Frontier Foundation (EFF), uma ONG estadunidense, tentou dar maior visibilidade à questão: “O Departamento de Segurança do Transporte dos Estados Unidos divulgou plano de implantar o CAPPS II, um polêmico sistema para vigiar e traçar o perfil de passageiros que passaria a exigir a data de nascimento, telefone e endereço residencial antes de a pessoa embarcar num vôo no país. Na vigência do CAPPS II, as autoridades competentes verificariam a veracidade desses detalhes e de outros mais a partir das informações coletadas nos bancos de dados do governo e nos comerciais, “rotulando” em seguida o indivíduo com uma pontuação e um código em cores para indicar o nível de risco à segurança que ele pareça apresentar. Com base na pontuação/cor, ele pode ser detido, interrogado ou revistado. Caso lhe atribuam uma cor/pontuação errada, o indivíduo pode ficar proibido de tomar o avião.” (cf CAPPS II)
Curry (2004) destacou que sistemas que traçam perfis para identificar passageiros que possam ser perigosos só podem existir se criados estereótipos de grande abrangência e se a população for divida em grupos, neste caso, fiando-se não apenas em atributos definidos como também na probabilidade estatística de cada um desses indivíduos engajar-se em atividades consideradas perigosas. O uso da biometria nos passaportes, a maior capacidade para armazenar informações de que dispõem esses documentos e a construção de sistemas de identificação dos perfis das pessoas podem ser vistas da mesma maneira. Para Curry, a vigilância das mobilidades também requer uma busca por dados mais detalhados de forma a construir narrativas sobre as atividades das pessoas. Ele também destaca a maneira como as técnicas de pesquisa de mercado estão sendo usadas nos sistemas de identificação de perfis, por exemplo, por empresas de transporte aéreo. O autor sustenta que é construído um sofisticado sistema nessas conexões do pessoal e do comercial a partir de narrativas que incorporam opiniões sobre uma série de comportamentos e padrões móveis definidos como aceitáveis ou suspeitos. Argumenta também que esses perfis não visam identificar o viajante no qual se pode “confiar” mas sim naquele que apresenta “risco”.
Este caso está ligado ao problema com os bancos de dados, cruzamento de informações e uso de dados pessoais, conforme o caso do projeto RIC no Brasil. Continua em aberto para debate no Brasil um assunto em particular: fora do país, uma carteira de identidade que incorpora biometria, apoia-se num amplo banco de dados e concentra-se na mobilidade – contudo promove a seleção de passageiros. Será que o RIC promoveria coisas semelhantes?
CONCLUSÃO
Neste artigo pretendemos destacar alguns elementos que caracterizam a implantação da nova carteira de identidade (RIC) no Brasil, visando dar início a debates acadêmicos e políticos sobre o assunto. A mera implantação de uma carteira de identidade assim aponta para uma distribuição de poder desigual entre o Estado, as empresas e os cidadãos, enfraquecendo a alavancagem cidadã enquanto propicia para Estado e empresas mais meios de controlar a vida e as atividades do cidadão. No Brasil, esta situação é ainda pior devido ao fato de a implantação do RIC praticamente contornar a esfera jurídica e não ter sido visível o suficiente para incitar o debate público. E, fora a regulação jurídica básica, é óbvia a falta de mecanismos legais para o controle e supervisão do uso de uma nova carteira de identidade e das informações de cunho pessoal nela incorporadas.
Quanto à implantação do RIC, há pelo menos dois pontos que denotam falta de padrões de conduta democráticos: em primeiro lugar, a ausência de uma regulação específica relativa à lei 9.454/97, que fornece a base normativa para a implantação do RIC (e isso poderia também estar sujeito a um controle judicial prévio); e o fato de que o sistema proposto implica uma mudança concreta e qualitativa na distribuição de poder entre indivíduo e Estado (bem como certas entidades privadas) em relação ao controle efetivo de seus próprios dados pessoais. Esse desequilíbrio não pode ser compensado por soluções tecnológicas menos invasivas. Tampouco compensaria uma solução normativa, como um conjunto de leis de proteção de dados, que municiasse o indivíduo com instrumentos para o controle efetivo de suas próprias informações.
Aqui também tentamos identificar as particularidades que marcam o projeto de um único documento de identificação que incorpore tecnologia biométrica. Elas baseiam-se em noções tais como cidadania e modernização, que se encontram respectivamente conectadas à proposição de inclusão social (através da conexão entre a identificação dos cidadãos pelos estados brasileiros e os projetos de inclusão social), e a representação do uso de tecnologias avançadas no imaginário brasileiro (em conexão com a ideia de ascenção à modernidade). Estes elementos são a base para uma aceitação mais ampla dessas tecnologias no Brasil, incorporadas de maneira irracional e não crítica.
Tal aceitação se fi a noutro elemento importante: o uso das impressões digitais na atual carteira de identidade e a exigência de que os indivíduos forneçam dados pessoais em diversas situações do cotidiano. Essas características e a falta de leis ou movimentos sociais que visem discutir ou limitar a implantação do RIC criaram uma grande oportunidade para empresas especializadas em tecnologias eletrônicas de vigilância e identificação. Esse nível de particularidade, contudo, é constantemente influenciado e reforçado por um nível mais amplo, relacionado ao uso de novas tecnologias de vigilância e identificação em vários países. Nesse outro nível, podemos ver o uso da tecnologia biométrica em sua forma cotidiana como forma de capturar o desejo e a participação ativa das pessoas. E isto está relacionado com uma esfera mais ampla de mudança que inclui subjetividade.
Alguns países atribuem um número de identificação nacional aos seus cidadãos. mas o RIC vai além disso ao propor a unificação de alguns sistemas de identificação que foram originalmente separados e seguiam lógica e regras próprias. Portanto, a nova carteira de identidade brasileira unifica não apenas o número de identificação mas também outros documentos, como o CPF, o título de eleitor e outros. O cruzamento ou fusão dessas informações, desses bancos de dados, é visto por muita gente como um forte argumento para a implantação do RIC, mas, na verdade, trata-se de um dos seus aspectos mais questionáveis e a principal razão para a oposição a sistemas semelhantes noutros países. Ao mesmo tempo, um sistema informatizado facilita a obtenção de dados sobre uma pessoa em particular e torna essa pessoa mais suscetível à categorização por perfis e a uma classificação baseada exclusivamente nas suas informações pessoais. Esses dados também podem ser deslocados ou usados indevidamente, resultando em toda uma gama de problemas e complicações, desde a identificação equivocada até o “roubo de identidade”.
Finalmente, apontamos para o aumento de possibilidades de controle e monitoramento dos cidadãos no Brasil, enquanto os de outros países podem contar com normas e sistemas de identifi cação que lhes propiciam proteção contra os riscos concretos de um único sistema de identifi cação, além de outras garantias relativas aos seus dados pessoais. Nesse sentido, o chamado “abismo digital” pode aumentar entre os cidadãos de um país e os de outro, não exatamente por conta do acesso à informação e a serviços, mas por causa da facilidade de acesso a informações pessoais, o que permite controle intenso dos cidadãos de alguns países. No Brasil, parece que o projeto do RIC tomou uma via de mão única e apresenta o risco concreto de colocar o país decisivamente neste último grupo.
Este texto foi publicado originalmente na Revista Surveillance & Society: http://www.surveillance-and-society.org