Por que o WikiLeaks polariza a política de Internet norte-americana

Por que o WikiLeaks polariza a política de Internet norte-americana

Milton Mueller, professor da Syracuse University School of Information Studies e coordenador do Internet Governance Project

Data da publicação: dezembro 2010

Aqui no IGP1 nós nos orgulhamos de ter uma visão bastante acurada em assuntos relativos à governança da Internet, mas temos que admitir que a emergência do caso WikiLeaks como uma questão de governança global nos pegou de surpresa. A Internet se mostrou uma fonte de ruptura política de uma maneira que não havíamos previsto.

Vazamentos de informações diplomáticas já aconteceram muitas vezes. Geralmente os autores dos vazamentos são diplomatas ou outros atores do meio político-militar-diplomático que usam este fato como forma de influência política. O que torna este caso diferente são os seguintes elementos:

a. a escala maciça da informação divulgada, algo que só poderia acontecer de forma digitalizada e em rede;

b. os princípios que sublinham as revelações, que são baseados não tanto em um debate político específico, mas sim numa ideologia generalizada de acesso à informação, adotada pelos movimentos de A2K2/código aberto e mais recentemente pelo Partido Pirata;

c. como o governo norte-americano e seus “parceiros” internacionais sistematicamente pressionaram as empresas privadas de Internet baseadas nos Estados Unidos para fechar o acesso ao Wikileaks, e também geraram ataques DDoS ilegais, em resposta. O jornal The Guardian publicou uma lista sequencial3 de atores estatais e empresas do setor privado que, sob pressão, abandonaram o WikiLeaks, muitas vezes fazendo argumentações falsas sobre violações a termos de serviço. (Conforme Eddan Katz, da EFF4, escreveu: “Liberdade de expressão: não tem preço; para tudo o mais, existe o Mastercard”).

d. na era pre-Internet, pelos menos nos EUA, durante um vazamento “normal” havia uma clara separação entre aquele que vazava a informação e aquele que a publicava. Os governos deviam manter seus segredos, mas se falhassem em fazê-lo e um jornalista pusesse as mãos em informações que pudessem interessar ao público, a Primeira Emenda e o respeito à prestação de contas devida pelo governo significavam que o jornalista estaria isento de perseguições, quase que a despeito do modo como a informação fora obtida. Era o informante que estava no alvo. Qualquer tentativa de suprimir ou censurar a informação divulgada devia seguir procedimentos legais. Estas distinções parecem ter sido jogadas pela janela, neste caso: Assange não é o informante, ele é aquele que publicou a informação - mas está sendo tratado por seus críticos como se tivesse roubado os documentos. E ele não apenas está sendo censurado, como também a pressão para censurá-lo vem por meios não-judiciais, extra-judiciais e ilegais.

Para chegarmos à raiz das implicações do episódio WikiLeaks para a governança da Internet, entretanto, é preciso examinar as explosões que vêm do American Enterprise Institute5, que em condições regulares é um respeitável distribuidor de estudos conservadores e aborrecidamente previsíveis sobre políticas. Assange, diz o AEI, é um “terrorista.” O Wikileaks está “em guerra” com os Estados Unidos. O mundo inteiro tem que polarizar em torno desta questão: ou vocês estão “do nosso lado, ou estão do lado do Wikileaks.6” Assange deveria ser condenado à morte ou assassinado. As forças armadas norte-americanas deveriam empreender uma ciberguerra em larga escala7 contra o Wikileaks e qualquer sítio Web que os apóie. Estes não são apenas um ou dois editoriais enfurecidos. Este discurso tem se estendido por dias. Notem também que esta histeria está em sua maior parte confinada aos Estados Unidos. Como escreveu um de nossos parceiros europeus, “a maioria das pessoas vê este caso como algo que vai um pouco além de fofoca, e, sim, há algumas “revelações” sobre as quais já sabíamos, na verdade. Sem querer trivializar, mas os estados [aqui] não respondem a este episódio como se fosse algum tipo de ameaça existencial”.

Então, umas poucas mensagens mal-educadas e revelações embaraçosas dão vazão a demandas por morte, assassinato, censura e ciberguerra. O que gera tamanha reação exagerada? Nós sabemos que não é nenhuma revelação em particular nas mensagens, nem nenhum prejuízo específico à segurança. Isso é um choque de princípios, uma ruptura nas regras do jogo que os profissionais de política externa dos EUA consideram atordoante e ameaçador. E é uma ruptura que só foi possível pela escala e pelo escopo internacional das comunicações feitas pela Internet. Não satisfeita em caracterizar computadores e redes como armas, a American Right agora está cada vez mais perto de se tornar inimiga da Internet em si. A despeito de todo o barulho que fazem sobre se oporem ao “grande governo” eles se revelam agora completa e evidentemente do lado Hamiltoniano do grande debate americano Jefferson-Hamilton. A nova polaridade está aqui: Internet livre versus poder estatal.

A AEI e os neoconservadores acusam Assange e o Wikileaks de serem anarquistas perigosos, mas este é um caso de projeção freudiana. São eles os anarquistas. A razão pela qual eles estão de tal forma aborrecidos é que eles acreditam profundamente no tipo de poder executivo sem limites8 que está associado à emergência de um estado nacional de segurança globalmente estendido. Impérios, esferas globais de influência e assuntos internacionais operam num ambiente de anarquia política. Dirigir um império requer um exército de diplomatas e espiões que devem manipular estrategicamente o acesso à informação, fazer acordos oportunistas com desagradáveis governantes estrangeiros, apoiar alguns títeres preferidos e prejudicar outros, tudo isso com a ameaça da força militar pairando sobre todo o processo. A tensão entre a república e o império tem sido um fato desde o tempo dos Romanos. Muita gente na política externa e nas instituições militares norte-americanas acredita que a supervisão pública é uma inconveniência em tais operações; de fato, os imperialistas mais canônicos abertamente argumentam que é impossível conciliar tais coisas. Os linha-dura da política externa querem poder irrestrito para vigiar o público e total preservação de qualquer vigilância recíproca sobre suas atividades.

O episódio recente do Wikileaks jogou uma granada de mão neste modus operandi; puxou o manto que cobria este mundo amoral e sem regras das relações internacionais. À parte dos vários perfis pessoais desqualificantes que há ali, nós podemos ver que todo o tipo de informação que está classificada como “secreta” na verdade não precisa ser classificada assim9. Assange revelou esta profunda contradição entre, de um lado, os valores liberal-democráticos relativos ao governo transparente e responsável, e de outro, a existência de um império norte-americano. Revelar esta contradição mina seriamente a prática dos negócios da maneira como costuma ser na política externa dos EUA. É isso que é tão imperdoável. Merece atenção o fato que tanto os liberais internacionalistas como Hilary Clinton e os gaviões neoconservadores da AEI estejam de acordo.

Qualquer que seja a opinião de uma pessoa sobre a sabedoria, responsabilidade e justificativa ética das revelações do Wikileaks, elas mostraram que há no mundo uma nova força de oposição que os militaristas e diplomatas ainda não sabem como controlar. Isso é, de maneira geral, uma coisa boa. É fato que o poder de revelação que o WikiLeaks evocou pode ser fonte de abusos. Pode causar danos verdadeiros. Mas, em termos relativos, é muito mais benigno do que o poder contra o qual está sendo usado neste caso - e sua legitimidade reside mais na opinião pública do que em qualquer outro lugar. A histeria gerada pelos gaviões da política externa polariza o mundo em torno da Internet e de suas possibilidades e mostra que, muito frequentemente, aqueles que alegam ser defensores da liberdade na verdade são seus piores inimigos.9

Tradução: Graciela Selaimen

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1. Internet Governance Project, projeto coordenado por Milton Mueller na Syracuse University, nos Estados Unidos. http://blog.internetgovernance.org
2. Sigla para Access to Knowledge – em português, acesso ao conhecimento.
3. Ver em http://www.guardian.co.uk/media/2010/dec/07/wikileaks-under-attack-defin...
4. Sigla para Eletronic Frontier Foundation
5. Ver em http://www.aei.org/”either with us, or you are with Wikileaks.”
6. http://www.aei.org/article/102869
7. Em http://www.aei.org/article/102863
8. Ver http://blog.washingtonpost.com/cheney/sidebars/cheney_on_presidential_po...
9.Ver http://www.syracuse.com/news/index.ssf/2010/12/wikileaks_and_secrets_fre...