O nexo entre o ambiental e o digital

O nexo entre o ambiental e o digital

Rafael A. F. Zanatta, Gabriela Vergili e Pedro Saliba*

A grande transformação produzida pelo uso das tecnologias da informação e sistemas de inteligência artificial tem produzido um debate novo e muito pertinente sobre a relação entre sustentabilidade ambiental e o atual modelo de capitalismo informacional (Cohen, 2019), caracterizado por datificação, acumulação e extrativismo de dados (Sadowski, 2019).

Essa relação é bastante abrangente, pois são elementos inseparáveis. Como já argumentou Stefano Quintarelli no seu livro Capitalismo Immateriale, toda a infraestrutura informacional da Internet, e sua amplíssima camada de aplicações na qual operam as grandes corporações de hoje, depende de um conjunto de infraestruturas físicas e recursos biológicos (Quintarelli, 2019). Bits e computadores exigem suportes físicos. Organizações civis como Association for Progressive Communication também têm argumentado que, pensar o avanço da tecnologia e do digital hoje (APC, 2021), implica em considerarmos as cadeias de produção de minérios e lítio que permitem a produção de microprocessadores (APC, 2023). A “nuvem”, afinal, é “material” (Monserrate, 2022).

A maior capacidade computacional implica em datacenters de altíssima geração, que demandam alto consumo energético e crescente consumo de recursos hídricos (Hogan, 2015). Dados compilados pela UNCTAD mostram que, desde 2010, os usuários globais da internet mais que dobraram e o tráfego de dados se expandiu 25 vezes. Um aumento nas atividades online, como streaming de vídeos e download de arquivos, demanda mais energia e gera mais emissões. Os data centers e redes que alimentam serviços online e em nuvem geram cerca de 1% das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE) relacionadas à energia. E dispositivos, data centers e redes de TIC respondem por 6% a 12% do uso global de energia, de acordo com o Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (UNCTAD, 2023).

Neste ensaio, argumentamos que a intersecção entre o ambiental e o digital na sociedade contemporânea configura-se em um “nexus” que se desdobra em múltiplas dimensões, envolvendo desde o acesso à informação até o impacto ambiental da infraestrutura digital. Este ensaio explora três dimensões centrais dessa intersecção: (1) a ampliação do acesso à informação digital e sua relação com políticas ambientais bem formuladas; (2) o consumo de recursos energéticos na produção tecnológica; e (3) a interação entre clima, recursos hídricos e datacenters.

Acreditamos que este nexus, que é complexo e envolve muitas camadas de interseção, apresenta-se como agenda a ser explorada pelas organizações da sociedade civil e pelos institutos de pesquisa no Brasil, como os mobilizados no G20 (T20 Brasil, 2024). Exploramos, a seguir, três dimensões dessa intersecção. Buscamos apresentar exemplos claros, com base na literatura especializada em estudos de ciência e tecnologia.

1 Ampliação do acesso à informação e políticas ambientais

O Acordo de Escazú é o instrumento jurídico que mais bem exemplifica a primeira dimensão desse nexus entre o ambiental e o digital, por meio dos direitos fundamentais de acesso à informação e sua relação crucial para o avanço de políticas ambientais (Cepal, 2018). Elaborado com grande participação brasileira, o Acordo de Escazú é um tratado internacional sobre acesso à justiça e sobre as condições nas quais Estados precisam se esforçar para garantir os direitos fundamentais de acesso à informação para jornalistas e lideranças ambientais (Data Privacy Brasil, 2023). A garantia do acesso à informação como direito fundamental é pré-condição dos exercícios cívicos de cidadania, que habilitam lideranças e organizações cívicas a monitorar os impactos ambientais em seus territórios, lutando por justiça climática e por responsabilização dos agentes envolvidos com processos de desflorestamento.

O acordo também considera a realidade fática ao abordar a necessidade de proteção dos defensores de direitos humanos em questões ambientais, mais um ponto em que a proteção de dados pessoais, ainda que não apresentada expressamente no texto, pode ser uma ferramenta chave para resguardar outros direitos e contribuir para avanços na pauta ambiental.

Apesar de o Brasil não ter introduzido em seu ordenamento jurídico o Acordo de Escazú, o país tem uma tradição jurídica orientada à proteção ambiental, que também influencia o campo dos direitos digitais (Zanatta, 2023). O Código Florestal é um exemplo desta tradição, que busca concretizar valores previstos na Constituição Federal (Brasil, 2012). É em razão do Código Florestal que surgiram políticas públicas como o Cadastro Ambiental Rural, que busca organizar as informações sobre propriedade rural no Brasil e permitir formas efetivas de monitoramento de cumprimento das regras de proteção das florestas no Brasil (Vergili & Saliba, 2023).

A relação entre a ampliação do acesso à informação digital e a efetividade das políticas ambientais se materializa em iniciativas como o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Esta infraestrutura pública digital é um exemplo notável de como o acesso a dados pode potencializar a eficácia da regulação ambiental (Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, 2023; Benelli et al., 2024). O CAR permite o mapeamento e monitoramento das propriedades rurais, facilitando a identificação de áreas desmatadas ilegalmente.

A correta interpretação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que não impede a divulgação de dados de proprietários envolvidos em desmatamento, mostra a possibilidade de conciliar a proteção de dados pessoais com o direito à informação (Vergili & Saliba, 2023). Nesse contexto, a transparência dos dados se torna um aliado essencial na implementação de políticas públicas ambientais, permitindo um monitoramento mais rigoroso e, consequentemente, uma maior responsabilização dos agentes envolvidos em práticas ilegais (Arcoverde; Ramos; Zanatta, 2021). Bases de dados públicas que já contém informações necessárias para o cumprimento de preceitos da legislação ambiental devem ser utilizadas para esse fim, quando a legitimidade deste uso puder ser amparada pelos requisitos da LGPD e pela persecução do interesse público.

No entanto, a prática atual do Poder Público tem sido reforçar medidas de opacidade já existentes utilizando  a LGPD para justificar restrições de acesso e sigilo a dados pessoais de potenciais desmatadores, ainda que haja fortes indícios de ilegalidades (Vergili & Saliba, 2023). Nesse sentido, o Estado brasileiro limita o controle social de políticas ambientais ao perpetuar limites à transparência pública de bases como o CAR.

2 Consumo de recursos energéticos na produção tecnológica

A expansão da capacidade computacional, impulsionada pela crescente demanda por serviços digitais, tem gerado um aumento significativo no consumo de recursos energéticos.

Um único data center pode consumir o equivalente a eletricidade de cinquenta mil lares. A 200 terawatts-hora (TWh) anualmente, os data centers devoram coletivamente mais energia do que alguns estados-nação (Monserrate, 2022). Apenas 6–12 por cento da energia consumida é dedicada a processos computacionais ativos. O restante é alocado para resfriamento e manutenção de cadeias e mais cadeias de dispositivos de segurança redundantes para evitar tempo de inatividade dispendioso (Monserrate, 2022).

Os datacenters, que sustentam a infraestrutura digital global, são grandes consumidores de energia, o que levanta preocupações ambientais. Pesquisas apontam que, apesar do discurso de ser uma tecnologia verde, as emissões de carbono de sistemas de inteligência artificial tendem a contribuir para as mudanças climáticas diante do consumo energético (Nordgren, 2022).

Dados mostram que a operação desses centros de dados pode consumir tanta energia quanto pequenas cidades, o que tem levado a discussões sobre a necessidade de regulamentações específicas, como abertura de dados e metodologias uniformes para mensuração de eficiência energética em data centers com enfoque em sustentabilidade (De Brito et al., 2024).

Propostas de leis que visam à regulação da inteligência artificial (IA) incluem a sustentabilidade energética como um princípio jurídico fundamental (Barreto, 2024), o que pressiona órgãos reguladores, como a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), a implementar normas que promovam a eficiência energética. Atores do campo econômico também monitoram a situação, pressionando por uma regulamentação menor para garantia de investimentos e implementação de datacenters no Brasil (Teixeira, 2024). Essa abordagem não apenas visa a reduzir o impacto ambiental da tecnologia, mas também incentivar o desenvolvimento de soluções tecnológicas mais sustentáveis.

Há diversas métricas para data centers, como o Power Usage Effectiveness (PUE - eficácia do uso de energia), o Data Center Infrastructure Efficiency (DCiE - eficiência da infraestrutura do data center), o Carbon Usage Effectiveness (CUE - eficiência do uso do carbono), Water Usage Effectiveness (WUE - eficácia do uso de água), entre muitos outros (Araújo Neto, 2023). Organizações civis como The Green Grid desenvolvem métricas para eficiência energética e há um grande interesse científico nas pesquisas sobre Green Data Center, com métricas internacionais, conectando-se com a agenda de “TI verde” no Brasil (Schulz & Silva, 2012; De Brito et al., 2023).

3 Clima, recursos hídricos e infraestruturas digitais

A relação entre clima e recursos hídricos é um fator crucial na operação de datacenters, que dependem de água para a refrigeração de seus sistemas (Hogan, 2015). O uso de IA pela Microsoft produziu um efeito notável: seus datacenters passaram a exigir maior consumo de água, com aumento de 34% no último ano (O’Brien & Fingerhut, 2023).

Este aumento da demanda por recursos hídricos tem preocupado gestores públicos e cidadãos de cidades que optaram pela atração de capital ao criar condições facilitadas de instalação de datacenters. O caso mais importante, neste sentido, é o de Oregon. Os cidadãos enfrentaram uma batalha judicial de mais de um ano para conseguirem dados sobre o consumo de água da Google. A empresa argumentou que a informação de consumo de água é um segredo industrial que não pode ser revelado publicamente. Foi preciso uma longa batalha judicial para garantia de um direito básico de informação, que resultou em um acordo de apresentação dessas informações por um período de dez anos (Rogoway, 2022).

Em regiões com climas mais amenos e alta umidade, como Curitiba, as condições são mais favoráveis para a instalação de datacenters, pois a demanda por água para resfriamento é menor. Em contraste, cidades no Oeste dos Estados Unidos enfrentam desafios críticos, onde o consumo excessivo de água por parte de empresas de tecnologia tem causado escassez hídrica em bairros inteiros (Hogan, 2015). Isso demonstra a importância de considerar as características climáticas e a disponibilidade de recursos hídricos ao planejar a localização e a operação de infraestruturas digitais. A gestão sustentável desses recursos é essencial para evitar impactos negativos tanto para a população local quanto para o meio ambiente.

Como lembrado por Steven Montserrate, nós precisamos “desvendar as bobinas de cabos coaxiais, tubos de fibra óptica, torres de celular, condicionadores de ar, unidades de distribuição de energia, transformadores, canos de água, servidores de computador” para pensarmos as infraestruturas digitais. O capitalismo informacional depende de fluxos materiais de eletricidade, água, ar, calor, metais, minerais e elementos raros da Terra que sustentam nossas vidas digitais. Como observado por pesquisadores de orientação crítica, “o acesso a recursos hídricos baratos, como energia hidroelétrica e água para refrigeração, terras baratas e proximidade de redes submarinas criaram um ponto ideal espacial para grandes empresas de tecnologia como Google, Apple, Facebook, Microsoft e Amazon” (Levenda & Mahmoudi, 2019).

REFERÊNCIAS

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ZANATTA, Rafael A. F. A proteção coletiva dos dados pessoais no Brasil: vetores de interpretação. Belo Horizonte: Letramento, 2023.

(*) Rafael Zanatta, codiretor da Data Privacy Brasil é pesquisador de pós-doutorado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e doutor pelo Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo.

Pedro Saliba é advogado e sociólogo, doutorando em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio) e mestre em Sociologia e Antropologia pelo PPGSA/UFRJ. Atualmente trabalha como coordenador de Assimetrias e Poder na Data Privacy Brasil.

Gabriela Vergili é bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora no Data Privacy Brasil desde 2019. Atualmente é pesquisadora no projeto “Ambiente e informação: contestando a instrumentalização política da LGPD na regulação ambiental”.