Informações e governança democrática em assuntos ambientais
Rubens Harry Born*
O mundo humano apresenta desafios e situações paradoxais: o conhecimento científico e o avanço tecnológico têm oferecido contribuições importantes para o bem estar, seja na promoção da saúde e prevenção de enfermidades (por exemplo, a recente pandemia da Covid), para a produção de alimentos, de instrumentos e equipamentos em diversos segmentos econômicos, para o crescente uso de energia solar e eólica, para a comunicação por diversos meios, para a mobilidade, entre tantos outros campos das atividades econômicas, culturais, sociais etc. A evolução das tecnologias de informação e de comunicação alterou as dinâmicas das relações interpessoais, institucionais e empresariais; alavancou o conhecimento sobre a situação do planeta Terra, notadamente sobre os impactos ambientais, sanitários, migratórios e os decorrentes das várias formas de violência, entre povos, agrupamentos humanos, nações, e contra os bens e serviços ecossistêmicos essenciais à sobrevivência da Vida.
Muito se comenta sobre as atuais crises ambientais globais (mudanças do clima, poluição, degradação e perda da biodiversidade etc.) e as crises da desigualdade e da injustiça social afetam de forma diversa a sociedade. São percebidas pelo crescente número de pessoas deslocadas em razão da pobreza e da desigualdade. Essas crises se relacionam também com os desafios de gestão da sustentabilidade do desenvolvimento humano, integridade e salubridade de diversos territórios, por um lado, e com as oportunidades e barreiras para iniciativas da sociedade na governança de políticas, planos e empreendimentos. Em 1987, a Comissão Mundial de Desenvolvimento Sustentável, a Comissão Brundtland, em seu relatório “Nosso Futuro Comum”, afirmara que não são crises isoladas: são facetas de uma única crise civilizatória, de padrões perversos, injustos e degradantes de sistemas econômicos, e que tornam indigna a vida de bilhões de pessoas, não obstante o progresso científico e evolução de direitos humanos.
A lista de exemplos de tais crises é longa, seja no Brasil ou no mundo: as chuvas intensas no Rio Grande do Sul, em maio deste ano e no segundo semestre de 2023, após um período de severa estiagem no mesmo ano; seca em rios da Amazônia, queimadas no Pantanal e em regiões agrícolas no estado de São Paulo; a constatação de que áreas do semi-árido nordestino se tornaram áridas, agravando os desafios de sobrevivência e convivência digna na caatinga; temporais e deslizamentos de encostas no litoral paulista. Tais fenômenos geram prejuízos às atividades educacionais, econômicas, culturais, além de dramáticas conseqüências para as vítimas sobreviventes de tais tragédias.
Em outros países, há relatos de importantes impactos e transformações ambientais: neste ano, rios do Alasca, EUA, ficando alaranjados, por decorrência de efeitos combinados da liberação de elementos químicos após o derretimento anormal do permafrost (solo congelado), afetando a biodiversidade aquática; o calor excessivo na Índia, em faixas de temperatura acima dos 50oC; a redução em proporções acima do esperado do gelo na Antártida, o que afetará o aumento do nível dos oceanos e impactos em regiões costeiras.
A OMS – Organização Mundial da Saúde, em sua recente assembleia, no final de maio de 2024, adotou resolução para reconhecer as ameaças iminentes à saúde humana decorrentes das mudanças do clima. Globalmente, segundo relatório de 2023 da Organização Meteorológica Mundial, a temperatura média do planeta no decênio 2014-2023 foi de cerca de 1,20 oC acima da média de 1850 a 1900, sendo considerado então um período decenal mais quente já avaliado pelos cientistas. Estudos científicos também apontam que no ano de 2023 o planeta teve a maior temperatura média nos últimos 125 mil anos. Dessa forma, o planeta já sofreu um aquecimento médio muito próximo do objetivo do Acordo de Paris para limitar o aquecimento global ao aumento de 1,5 oC até o fim do século.
Segundo o IPCC – Painel Científico da ONU sobre Mudanças do Clima, as emissões antrópicas de gases de efeito estufa terão que ser reduzidas em 43% até 2030, em relação aos níveis existentes em 2019, e chegar a um balanço neutro (“emissões zero”, resultado da emissão e da captura de gás carbônico em atividades como recuperação de florestas) até 2050. E para que a chance de estabilizar a temperatura global do planeta, o IPCC indicou que será necessário reduzir em 60% o uso de petróleo, 45% do gás natural e 95% de carvão mineral.
Ora, as causas das mudanças do clima, da degradação da biodiversidade e da poluição são conhecidas há décadas. As convenções da ONU sobre clima, biodiversidade e desertificação são produtos da Cúpula da Terra ou Rio-92, a grande conferência realizada no Rio de Janeiro em 1992. Vinte anos depois, a Rio+20, outra conferência da ONU na mesma cidade, buscou retomar promessas e compromissos negligenciados, mediante pacto de ações para os ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, uma “nova narrativa” para as promessas da Agenda 21, adotada na Conferência Rio-92. Esses acordos internacionais consideram como relevante a participação do público (da sociedade) nas ações e planos decorrentes e a divulgação de informações e relatórios periódicos sobre o avanço e barreiras na sua implementação, como por exemplo a Comunicação Nacional que cada país deve apresentar à Convenção Quadro de Mudanças do Clima. A internet permite conhecer planos e ações, previstas ou em curso, para a maioria dos países.
Como tantas mazelas ocorrem em uma época de sociedades cada vez mais digitalizadas, mais conectadas? Parece um paradoxo que na contemporânea sociedade digital tenhamos informações quase que instantâneas da situação do ambiente planetário, da Natureza e das violências humanas, mas obviamente os instrumentos e tecnologias digitais, não obstante a sua utilidade, não podem por si só responder pela ocorrência de tais mazelas, que se distribuem de forma desigual no planeta.
As tragédias socioambientais, entre outras, ocorrem como desdobramento de estruturas políticas, econômicas e culturais que apresentam enorme inércia às transformações necessárias para a consecução de sociedades democráticas, justas e sustentáveis. Por exemplo, a prevenção de riscos de ocorrência de desastres associados às formas insustentáveis de uso do ambiente também têm sido “esquecidas” por muitas lideranças, no Poder Público e nos setores econômicos. Os desastres do rompimento de barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho e as enchentes no Rio Grande do Sul são alguns exemplos da negligência da avaliação de riscos, da insuficiente transparência das informações e do limitado controle social das políticas públicas e atividades empresariais.
A gestão de riscos climáticos está sendo incorporada, em 2024, na elaboração do Plano Nacional para Mudanças do Clima, o conjunto de propostas de políticas e ações em mitigação das causas, adaptação aos impactos e redução de vulnerabilidades aos efeitos das alterações do sistema climático e ambiental. Mas, por outro lado, cabe destacar que a incorporação de abordagens e instrumentos de gestão de riscos deve ir muito mais além do aspecto de medidas de prevenção de desastres e conseqüências humanitárias, sanitárias e econômicas. A análise de riscos deverá necessariamente contribuir para as políticas e medidas que sejam eficazes para a segurança alimentar, a segurança hídrica (tanto para abastecimento de águas como para a geração de energia elétrica), para as infraestruturas de mobilidade e de logística, enfim para promover profunda, urgente e justa transformação do “desenvolvimento”, contemplando suas diversas dimensões (cultural, tecnológica, econômica, social, ambiental, educacional).
O Acordo de Paris, de 2015, reconheceu, em seu preâmbulo, que os compromissos dos países (as NDCs – Contribuições nacionalmente determinadas), ainda que se plenamente cumpridos, não são suficientemente seguros para o objetivo de limitar o aquecimento global a 1,5 oC, e isso foi novamente reconhecido na recente 28ª Conferência das Partes (CoP 28) da Convenção da ONU sobre Mudanças do Clima, realizada em Dubai em dezembro de 2023. As emissões acumuladas de dióxido de carbono (CO2) já somam cerca de 80% do total que deveria ser o limite indicado pelos cientistas para se garantir a probabilidade de 50% de fazer o planeta não ultrapassar o limite delineado nesse Acordo.
Tal monumental esforço vai requerer, por exemplo, a recuperação de áreas que já foram florestas e outros ecossistemas de cobertura vegetal, o que nos ajudaria também a fortalecer a resiliência de áreas mais vulneráveis, a diminuir os riscos e impactos das crises ambientais. Isso é importante, sobretudo para Brasil e outros países em que o desmatamento e a perda da biodiversidade são componentes da crise ambiental. Mas só plantar árvores e proteger florestas não será suficiente. Será necessário fazer a transição para a agricultura ecológica e de baixo carbono, com produtos mais saudáveis; sistemas de mobilidade menos poluentes, de energias limpas e sustentáveis; reorientar as formas e padrões urbanísticos e das edificações, para que demandem menos energia (por ex: ar condicionado e iluminação). Também é importante a transição energética, para o mais rapidamente diminuir o uso de combustíveis fósseis, fonte de mais de 75% das emissões de gases de efeito estufa. A CoP28 sinalizou, em uma de suas decisões, tal diretriz, cujo cumprimento dependerá da “vigilância” de todas as pessoas.
Essa “vigilância” tem nome: governança democrática ambiental. Torna-se possível mediante condições de acesso a informação e participação, regras para tomada de decisão etc. que permitem à coletividade a gestão democrática dos rumos do Estado, da atividade econômica e da sociedade. Ou, como formulei o conceito, em 2007, de governança como “conjunto de iniciativas, regras, instâncias e processos que permitem às pessoas, por meio de suas comunidades e organizações civis, a exercer o controle social, público e transparente, das estruturas estatais e políticas públicas, por um lado, e das dinâmicas e das instituições do mercado, por outro lado, visando atingir objetivos comuns de bem estar, de direitos e dignidade de vidas.” Meios que precisam ser consistentes com a finalidade de sociedades justas, democráticas e sustentáveis. Enfim, ainda repetindo continuação da minha formulação, precisamos de “modos de vida e de organização social que viabilizam a vida digna de todos, da presente e das futuras gerações, com base em sistemas democráticos do exercício de direitos e deveres, para a fruição de ambientes saudáveis e com paz, conservando os processos ecológicos essenciais, os bens e serviços ecossistêmicos do planeta, assegurando a justiça e a equidade”.
Um importante tratado internacional estabeleceu, em 2018, que “em caso de ameaça iminente à saúde pública ou ao meio ambiente, que a autoridade competente divulgará e disseminará de forma imediata e pelos meios mais efetivos toda informação relevante que se encontre em seu poder e que permita ao público tomar medidas para prevenir ou limitar potenciais danos”. E mais, que cada país que ratificar esse tratado “deverá desenvolver e implementar um sistema de alerta precoce utilizando os mecanismos disponíveis”.
Trata-se do Acordo Regional sobre Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe, conhecido como Acordo de Escazú, em vigência internacional desde 2021. Assinado pelo Brasil em 2018, o acordo somente foi encaminhado ao Congresso Nacional em maio de 2023, mas sua tramitação não foi acelerada e sequer foi aprovado ainda na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. Esse tratado determina a máxima transparência das informações ambientais, a vedação ao retrocesso e o princípio da progressividade no cumprimento de tais direitos procedimentais, essenciais para a garantia do direito ao meio ambiente saudável. Estabelece compromissos para facilitar o acesso à informação e à participação de grupos e segmentos vulneráveis, povos originários e comunidades tradicionais. Tal acordo vinculante é o primeiro tratado em todo o mundo a determinar que aos Países as medidas (políticas, normas, mecanismos) que garantam a atuação livre de ameaças e violência das pessoas, grupos e organizações que defendem direitos humanos em questões ambientais.
As principais leis ambientais do País têm dois dos quatro pilares (a saber, os três direitos de acesso e a proteção de defensores de direitos humanos em questões ambientais) do Acordo de Escazú: informação e participação social. Alguns exemplos:
- A Lei no 6.938/1981 da Política Nacional do Meio Ambiente, que criou o SINIMA – Sistema Naciona de Informações Ambientais, o Conama – Conselho Nacional do Meio Ambientee, o SINAMA Sistema Nacional do Meio Ambiente, para articular órgãos governamentais e setores da sociedade;
- A Lei no 9433/1997, da Política Nacional de Recursos Hídricos, que criou ocria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, contemplando membros de representantes de vários segmentos da sociedade;
- Na área de políticas de saneamento básico, a implementação recente do Sistema Nacional de Informações em Saneamento Básico, dando continuidade ao legado do anterior sistema, atendendo ao disposto na Lei de Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007), atualizada pelo Novo Marco Regulatório do Saneamento (Lei nº 14.026/2020);
- No campo da legislação e políticas de proteção da vegetação nativa, com destaque para a Leino 12.651/2012, apelidada de Novo Código Florestal, destacam-se os sistemas de informações do Cadastro Ambiental (SICAR) e o Sistema Nacional de Controle da Origem e dos Produtos Florestais (Sinaflor), além do Sistema Nacional de Informações Florestais (SNIF) previsto em norma diversa.
A lista de sistemas de informações relativas ao meio ambiente é enorme; são também muitas as instâncias colegiadas, consultivas ou decisórias, com participação de interlocutores de instituições de pesquisa, de organizações da sociedade civil, de movimentos sociais e indígenas, entre outros.
Anos antes do advento da Lei de Acesso à Informação (LAI), houve a promulgação da Lei no 10650/2003 que normatizou o acesso público aos dados e informações ambientais existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama) e definiu que qualquer pessoa, independentemente da comprovação de interesse específico, terá acesso às informações de que trata tal Lei.
Entretanto, há muitas pendências na implementação dos vários sistemas de informações ambientais criados como instrumentos essenciais para a gestão de políticas públicas. Por serem decorrentes de políticas setoriais específicas, coordenadas por órgãos federais diversos, há desafios na integração das informações digitais desses sistemas. Alguns desses e suas normas surgiram em períodos em que as tecnologias e sistemas de informações geográficas (SIG) ainda não estavam tão avançados como atualmente.
Enfim, a existência de lacunas e barreiras na gestão das informações digitais sobre o meio ambiente nos sistemas a cargo de governos também criam dificuldades para um maior controle social e governança das políticas ambientais. É relevante que diversas instituições de pesquisa e da sociedade civil têm atuado no campo do uso e disponibilização de informações digitais, associadas aos mecanismos e referências de informações geográficas (SIG), com a produção de relatórios, mapas e conhecimentos sobre a situação ambiental do país. Dois exemplos significativos: o primeiro é o MapBiomas, uma rede colaborativa, formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia, para o mapeamento anual da cobertura de uso da terra, monitoramento de desmatamento, de superfície de água e ocorrência de queimadas, valendo-se inclusive mediante sensoriamento remoto e imagens de satélite; o segundo é o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), do Observatório do Clima, para a elaboração de estimativas anuais das emissões de gases de efeito estufa no Brasil, análises sobre tendências de tais emissões e desdobramentos à luz das políticas ambientais.
Ora, avançar a governança democrática ambiental , notadamente na eficaz aplicação dos direitos de acesso à informação, à participação e à justiça, deve ser compreendida como uma tarefa necessária e urgente, por um lado, e por outro, facilitada pelo acervo normativo da legislação de meio ambiente e por uma sociedade cada vez mais usuária de meios digitais de produção de conhecimentos e de relações sociais. Enfim, de construção de sociedade digital com responsabilidade ambiental.
(*) Rubens Harry Born é diretor da Fundação Esquel, presidente do Conselho Diretor do Idec – Instituto de Defesa do Consumidor, membro da coordenação do FBOMS – Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, colaborador do Fundo Casa Socioambiental; membro do Conama – Conselho Nacional do Meio Ambiente e da Conasq – Comissão Nacional de Segurança Química. Há 45 anos atuando em temas de Meio Ambiente. Engenheiro civil com especialização em engenharia ambiental, advogado, mestre e doutor em saúde pública ambiental. Este texto foi escrito especialmente para esta edição da poliTICs em agosto de 2024.