Regulação dos serviços over-the-top
OBSERVACOM, Observatório Latinoamericano de Regulação, Meios e Convergência 1
Data da publicação: maio 2018
Leia aqui um preâmbulo para este texto.
Introdução
É inegável a importância crescente sobre serviços “over-the-top” (OTT)2 na economia mundial e seu papel fundamental no exercício de direitos humanos como a liberdade de expressão e o direito à informação. Também é inegável que sua irrupção desencadeou uma dura disputa econômica entre atores privados da economia digital que se traduz em debates regulatórios. É inevitável advertir, além disso, que este conflito econômico impacta a vida das pessoas e seus direitos.
Os temas centrais deste debate têm estado relacionados com a concorrência, os investimentos ou a tributação. Trata-se de aspectos sem dúvida importantes, mas um enfoque economicista limita a abordagem de um assunto tão complexo quanto vital para a humanidade e os direitos da pessoa humana.
Grande parte do debate sobre a neutralidade de rede e as assimetrias regulatórias provém de, ou está influenciado por, disputas entre importantes empresas de capital transnacional. Ademais, o atual desenvolvimento da Internet e o papel cada vez mais importante dos provedores de serviços OTT também põem em tensão o papel do Estado e a questão da soberania nacional, assim como os caminhos democráticas que se devem adotar para proteger o direito das pessoas no novo cenário convergente, enquanto se constroi um ambiente que garanta o desenvolvimento de uma Internet livre e aberta.
Tudo isso representa um forte desafio para que as organizações da sociedade civil adotem posições a partir de uma perspectiva independente,3 ainda que não tenhamos ainda todas as respostas e soluções. Para isto, deveríamos contar com mais pesquisas e dados revelados também de forma independente, e não - somente - a partir dos insumos oferecidos por empresas, especialistas ou think tanks das partes em disputa.
Ainda que efetivamente existam assimetrias regulatórias entre empresas que disputam similares mercados ou oferecem serviços comparáveis, os serviços OTT apresentam desafios regulatórios que, por si só, precisamos abordar. Em nossa opinião, essa tarefa deveria ser enfocada com uma perspectiva de direitos humanos, colocando as pessoas como o centro das preocupações, e não as empresas e seus (legítimos) interesses comerciais.
Grande parte das discussões se canalizam por organismos multilaterais que não consideram esse enfoque de direitos, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), ou a União Internacional de Telecomunicações (UIT)4 e que, portanto, não são os espaços mais adequados para tratar desses assuntos regulatórios. Por sorte, a Unesco e as relatorias para a Liberdade de Expressão das Nações Unidas ou da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) incluíram esses assuntos em suas pautas, convertendo-se em instâncias internacionais mais adequadas.
Desde a primeira metade do século XX, consolidou-se na maioria das democracias avançadas a perspectiva de que a regulação no setor de comunicações é fundamental como garantia da democracia. Isso se deve à centralidade que uma esfera pública plural e diversa tem para o seu bom funcionamento. A qualidade da democracia e um vigoroso debate cívico dependem amplamente da variedade de informações e visões que competem em um espaço público e que estão disponíveis para o cidadão. Em um cenário centralizado pelos meios de comunicação tradicionais, estava claro que o mercado não garantia – por si só – a diversidade, o pluralismo nem a liberdade de expressão fundamentais para a democracia. Com o surgimento da Internet, parecia que parte dos argumentos que davam sentido e fundamento à regulação democrática poderiam ter se perdido. De fato, alguns importantes atores do ecossistema digital afirmam que a regulação no âmbito da Internet não só é perigosa, como não deveria existir porque já nem sequer é necessária ou possível.
Entretanto, passada a fase inicial de funcionamento mais descentralizado e aberto da rede, novos gargalos se formam e a Internet passa por uma crescente centralização de alguns poucos agentes do ecossistema digital que afeta seu potencial de servir a toda a humanidade, como aponta o criador da Web, Tim Berners-Lee. A tendência à concentração e as ameaças à liberdade de expressão na rede mostram que a diversidade e a pluralidade – inclusive a noção de uma Internet aberta e livre – necessitam de garantias regulatórias para que possam ser mantidas como valores e paradigmas das comunicações digitais modernas.
Com esses conceitos e fundamentos, o OBSERVACOM elaborou este documento com propostas a respeito dos aspectos chaves que deveriam ser considerados para se estabelecer um ambiente regulatório democrático sobre os serviços de Internet denominados OTT, a partir da perspectiva dos direitos humanos e com o objetivo de garantir os direitos digitais e a liberdade de expressão, e uma Internet livre e aberta.
1. Uma única regulação para todos os serviços OTT não é adequada
Há aspectos da regulação que deveriam ser comuns a qualquer serviço com usuários e consumidores (obrigações de transparência ou proteção de direitos do consumidor, por exemplo) e que não devem ser ignorados. Mas as tentativas de aprovar uma legislação única para todos os provedores de serviços OTT é um erro, já que este setor inclui uma ampla diversidade de serviços.
As regulações, tomando como referência os princípios de interesse público que estão por trás da regulação de serviços similares deveriam levar em consideração, de maneira diferenciada e específica, o tipo de serviço e os direitos a proteger. Não se deveria regular de forma igual as atividades que oferecem serviços financeiros, locações de casas, entrega de pizzas ou que oferecem alternativas a transportes locais considerados como serviços públicos.
A proteção dos direitos humanos e da liberdade de expressão valem também para a Internet, mas precisam atender suas características específicas com relação a outros suportes tecnológicos, considerando ferramentas e medidas adequadas no ambiente digital. Por exemplo, precisa manter o serviço de proteção da infância em qualquer platafoma, mas o horário de proteção diário reconhecido internacionalmente como medida adequada para a TV aberta não é aplicável para determinados serviços na Internet.
As particularidades deveriam ser atendidas especialmente no caso dos provedores OTT que oferecem serviços audiovisuais – tanto lineares como não lineares.5 Estes bens e serviços culturais não são simples mercadorias sujeitas a regras de comércio, como afirma a Convenção sobre Diversidade Cultural da Unesco, de modo que a adoção de medidas de proteção e promoção das indústrias audiovisuais nacional e a diversidade cultural não só são um direito dos Estados como também uma obrigação. Os esforços da União Europeia para a regulação do vídeo sob demanda mostram a importância – bem como os limites – da busca da aplicação desses princípios.
2. Pagar impostos sem impedir inovação nem asfixiar empresas pequenas ou sem fins lucrativos
Existem assimetrias regulatórias em matéria tributária que geram concorrência desleal com empresas que oferecem serviços sobre outros suportes, em alguns casos com empresas de capital nacional que realizam investimentos e geram empregos diretos e indiretos no país onde operam. Por sua vez, essa situação implica uma grande extração de dinheiro para o exterior, que prejudica especialmente os países em desenvolvimento, que sofrem perdas econômicas e uma erosão constante de sua base tributária.
Para conseguir fazer isso, as principais empresas do setor nem sempre se estabelecem nos países onde oferecem seus serviços, seja por razões operativas como também como estratégia para maximizar seus lucros. O modelo tributário conhecido por “double Irish” implica a escolha de países que são paraísos fiscais ou com menores cargas tributárias para registrar formalmente suas operações comerciais.6 Os provedores de serviços OTT deveriam pagar impostos se desenvolvem atividades comerciais, como qualquer outra empresa de caráter lucrativo, em especial se oferecem serviços que são concorrentes ou substitutos de serviços existentes em determinado país. O princípio da cobrança nos lugares de consumo e realização do serviço deveria se sobrepor ao princípio de cobrança no país de onde o serviço é prestado.
Não obstante, as medidas tributárias e outras relacionadas também deveriam atender as diferenças entre pequenas e grandes empresas, entre start-ups e empresas de serviços OTT consolidados de alcance global, entre provedores de serviços OTT comerciais ou iniciativas sem fins de lucro ou educativas; entre outras razões, como forma de promover a concorrência, estimular a inovação e permitir o surgimento e desenvolvimento de pequenos e médios empreendimentos nacionais.
3. Provedores de serviços OTT não deveriam estar acima das leis nacionais
Os desafios de regulação colocados pelos serviços OTT incluem a dificuldade de aplicação de medidas regulatórias – e o questionamento do próprio papel dos Estados nacionais – por terem suas operações em um ou mais países, manterem sua operação global fora do lugar onde são prestados ou consumidos os serviços, e por trabalharem com transações internacionais. Estas dificuldades não podem justificar que os provedores de serviços OTT funcionem fora do marco legal, nacional ou supranacional, que cada Estado decide adotar.
A questão da jurisdição nacional é chave para garantir soberania em um ambiente global. Não há forma de avançar no debate de tributação ou de estabelecer mecanismos efetivos dos direitos das pessoas sem resolver adequadamente este assunto, que implica o respeito às normas locais sobre esses assuntos, começando pelo registro formal da empresa no país onde oferece seus serviços.7
Outras questões demandam, entretanto, soluções globais. Assim, será necessário combinar distintas estratégias e âmbitos de aplicação das medidas, de forma a combinar autorregulação, corregulação, regulação dos Estados nacionais, foros multissetoriais (com participação de empresas e organizações da sociedade civil), assim como acordos e compromissos internacionais.
Assuntos relacionados à governança global da Internet deveriam manter-se em espaços multissetoriais, de acordo com o princípio de participação ativa e democrática de representantes dos distintos interesses como caminho para garantir a globalidade da Internet e mitigar as possíveis violações e abusos, em sintonia com as recomendações da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e da Unesco.
Torna-se necessário, de maneira complementar, o estabelecimento de estratégias e mecanismos de atuação conjunta entre os países da região, de forma a conseguir a capacidade de negociação e de implementação frente a corporações privadas globais. A América Latina vive atualmente processos de análises e debates de iniciativas em busca de acordos regionais para uma atuação conjunta na economia digital.
4. Gatekeepers: os Estados deveriam garantir a neutralidade de rede como um princípio básico da Internet
Regular é, fundamentalmente, um ato necessário para garantir direitos. Neste caso, das empresas provedoras de serviços OTT, ante possíveis abusos estatais como de outros atores do ecossistema digital e para fortalecer seu papel como intermediários chaves no exercício de direitos por parte da população que utiliza seus serviços ou plataformas.
Em sintonia com as recomendações da Relatoria para a Liberdade de Expressão da CIDH, deveria incluir-se expressamente o princípio da neutralidade da rede nos marcos legais nacionais, com o alcance e as exceções que ela mesma reconhece. Este princípio foi reconhecido pela Relatoria Especial como uma “condição necessária para exercer a liberdade de expressão na Internet” que tem como objetivo garantir “a liberdade de acesso e escolha dos usuários de utilizar, enviar, receber e oferecer qualquer conteúdo, aplicação ou serviço legal por meio da Internet sem que seja condicionada, direcionada ou restringida, por meio de bloqueio, filtro ou interferência”.
Este princípio vale, em particular, para aqueles operadores de redes físicas que são provedores de acesso à Internet (ISP), de forma que não dêem um tratamento preferencial e discriminatório aos provedores de serviços OTT por acordos comerciais e outras razões.
Este princípio deveria ser aplicável também aos planos de “tarifa zero”, ou zero-rating, assim como as estratégias comerciais de alguns provedores de serviços OTT – como acontece em iniciativas de acesso parcial à Internet como Free Basics – quando afetam o princípio de acesso a uma Internet aberta e livre.
De forma alguma os princípios baseados no interesse público, como a neutralidade da rede, deveriam ser flexibilizados com a intenção de gerar algum tipo de equilíbrio ou compensação para superar as assimetrias regulatórias existentes.
5. Os Estados deveriam garantir a liberdade de expressão: sem responsabilização legal por conteúdos de terceiros
Os provedores de serviços OTT são atores privados que se converteram em ferramentas imprescindíveis para o exercício do direito à informação e à liberdade de expressão na Internet – como no caso das redes sociais, motores de busca e outras plataformas – de tal forma que é necessário preservar e potencializar esse papel. Este mesmo papel de intermediários, no entanto, os colocou sob pressões para “aproveitar a posição que ocupam como pontos de controle de acesso e uso da Internet”, afirma a Relatoria da CIDH.
Seja porque esse lugar torna mais fácil “identificar e coagir estes pequenos atores do que os responsáveis diretos da expressão que se busca inibir ou controlar” ou pelo impacto que uma pressão sobre uma só empresa tem sobre o total de usuários afetados, o regime de responsabilidade legal sobre os conteúdos de terceiros se converteu em um aspecto crucial para a garantia da liberdade de expressão. Por esta razão, os Estados deveriam promover e proteger o exercício da liberdade de expressão, adotando leis, políticas e práticas administrativas que favoreçam um ambiente regulatório adequado para que os prestadores de serviços OTT possam fazer frente a ameaças e pressões ilegítimas de remoção, filtro ou bloqueio de conteúdos por parte de autoridades estatais e outros atores privados.
Por essa razão, concordamos com a Relatoria que a responsabilidade objetiva ou “estrita”, que responsabiliza o intermediário por qualquer conteúdo considerado ilícito em sua plataforma é incompatível com a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos,8 e promove o monitoramento e a censura pelos intermediários, levando-os a ocupar uma função de autoridade legal que não lhes cabe.
A regulação deveria incorporar a noção de que “nenhuma pessoa que ofereça unicamente serviços técnicos de Internet como acesso, buscas ou conservação de informações em memória cachê deverá ser responsável por conteúdos gerados por terceiros e que se difundam por meio desses serviços, sempre que não intervir especificamente em tais conteúdos nem se negar a cumprir uma ordem judicial que exija a sua eliminação quando estiver em condições de fazê-lo ("princípio de mera transmissão")”, como afirmou a Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão e Internet de 2011.9
Essa questão não supõe afirmar que os intermediários não tenham “nenhuma responsabilidade” sobre a troca de conteúdo através de suas plataformas, já que não são meros serviços técnicos10 e intervêm – muitas vezes por suas próprias decisões editoriais ou comerciais, sem necessidade de pressões estatais – priorizando ou amplificando certos conteúdos de terceiros, por exemplo.
6. Os Estados e empresas OTT deveriam garantir direito à privacidade e à proteção de dados pessoais
O direito à privacidade é um direito humano e sua proteção está em risco porque as tecnologias digitais permitem, tecnicamente, uma crescente capacidade para reunir, armazenar e trocar informações pessoais em termos do que agora se denomina big data. Ele implica que uma enorme quantidade de informação sobre as pessoas pode ser interceptada e analisada sem conhecimento desta situação e sem consentimento expresso e prévio.
Diante desses desafios, os Estados deveriam respeitar e proteger o direito à privacidade na Internet e adaptar sua legislação e suas ações protegendo todas as pessoas sob sua jurisdição, o que inclui dar garantias à confidencialidade dos dados pessoais online e fazer frente à crescente e indiscriminada vigilância e interceptação de comunicações na Internet. Isso porque, quando essa vigilância se dá de maneira maciça, segundo o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, resulta em efeitos negativos no gozo e exercício dos direitos humanos.
Dever-se-ia garantir proteção aos provedores de serviços OTT com relação à prática de alguns governos, polícias e outras autoridades estatais que os pressionam para registrar ou compartilhar dados pessoais, quando não se cumprem as condições que outorgam legitimidade à solicitação, por exemplo quando se realiza através de um pedido concreto e expresso de uma instância judicial.
A regulação deveria proteger as pessoas também “frente a possíveis ingerências arbitrárias ou abusivas também de terceiros”, como recomenda a Relatoria para a Liberdade de Expressão da CIDH, na medida que “o modelo de negócios das empresas mais exitosas incide diretamente sobre o direito à privacidade”.
É imprescindível exigir maior transparência dos Estados – sobre suas políticas e protocolos de vigilância, por exemplo – bem como das corporações privadas que oferecem serviços OTT, tanto sobre as solicitações que recebem por parte dos Estados, e ações e razões para suas respostas, como sobre suas próprias políticas de uso dos dados pessoais e mecanismos de “vigilância privada” com fins comerciais das comunicações pessoais de seus usuários, incluindo conhecer como os algoritmos processam tais dados.
7. Novos gatekeepers: as empresas de serviços OTT deveriam garantir o acesso a uma Internet aberta e livre
Sem os intermediários seria humanamente impossível desfrutar do enorme potencial disponível na rede das redes. As empresas provedoras de plataformas e aplicações na Internet têm um papel chave para o acesso a uma Internet aberta e livre pelo papel que ocupam como intermediários entre os usuários e os conteúdos disponíveis na rede. Mas este novo e vital papel – paradoxalmente – as converte em um potencial risco para a liberdade de expressão e o livre fluxo de informação na Internet.
Esses intermediários já não são somente suportes técnicos e “estradas de passagem”, mas muitas vezes afetam os conteúdos que por ela circulam. Não só são capazes de monitorar todos os conteúdos produzidos por terceiros, mas também podem intervir neles, ordenando ou priorizando seu acesso e, portanto, determinando quais conteúdos e fontes de informação um usuário visualiza ou deixa de visualizar. Também bloqueiam, eliminam ou desindexam conteúdos – que podem ser discursos protegidos pelo direito à liberdade de expressão –, assim como contas ou perfis de usuários. Essa ações muitas vezes são obrigadas por pressões externas de autoridades governamentais ou outros atores privados, mas também por decisões próprias.
Os algoritmos são responsáveis por decisões fundamentais sobre os conteúdos que podemos acessar efetivamente, facilitando ou dificultando o acesso aos conteúdos disponíveis na Internet. Uma arquitetura de algoritmos e o uso de formas de inteligência artificial que selecionem os conteúdos que podemos visualizar em função das predileções das pessoas e que tenha como objetivo deixá-lo “satisfeito” e “confortável” poderá ter boas intenções e ser uma exitosa estratégia comercial para atrair usuários, mas não é necessariamente compatível com a diversidade e o pluralismo, um requisito fundamental para o bom funcionamento de uma sociedade democrática.11
Esse acesso condicionado aos conteúdos, assim como a remoção daqueles entendidos como “inapropriados” ou “ofensivos” - por avaliação das próprias empresas e seus “moderadores” - se realizam com falta de transparência e de um devido processo para a tomada de decisões ou para se recorrer delas. As principais empresas do setor sequer informam publicamente quantas remoções por decisão própria realizam. Tudo isso as distancia dos padrões internacionais sobre restrições legítimas à liberdade de expressão, inclusive dos Princípios de Manila Sobre Responsabilidade dos Intermediários.12
Os organismos internacionais de proteção da liberdade de expressão começaram a advertir sobre este problema. David Kaye, Relator da ONU, disse que “é comum as empresas privadas censurarem, vigiarem ou realizarem outras restrições à liberdade de expressão, geralmente pressionados pelos governos, mas algumas vezes, por sua própria iniciativa”. Para Edison Lanza, relator da CIDH, “a falta de transparência no processo de adoção de decisões por parte dos intermediários frequentemente encobre práticas discriminatórias ou pressões políticas que determinam as decisões das empresas”. Em uma declaração conjunta sobre fake news, entretanto, as Relatorias para a Liberdade de Expressão, por sua vez, mostraram-se “consternadas por algumas medidas tomadas por intermediários para limitar a consulta ou a difusão de conteúdos digitais”, tais como “sistemas de eliminação de conteúdos baseados em algoritmos ou no reconhecimento digital”. Estes mecanismos, segundos os relatores, “não são transparentes, não cumprem os padrões mínimos de devido processo e/ou limitam de maneira indevida o acesso a conteúdos ou sua difusão”.
8. A neutralidade das plataformas também deveria ser um princípio básico da Internet
Os padrões interamericanos incluem o princípio da neutralidade da rede como uma condição indispensável para a liberdade de expressão na Internet. O objetivo é, como se mencionou anteriormente, evitar que “a liberdade de acesso e escolha dos usuários de utilizar, enviar, receber ou oferecer qualquer conteúdo, aplicação ou serviço legal por meio da Internet não seja condicionada, direcionada ou restringida, por meio de bloqueio, filtragem ou interferência”.
O mesmo princípio deveria alcançar outros intermediários – quer dizer, não apenas os provedores de serviços Internet (ISPs) – com o mesmo objetivo de garantir a diversidade, o pluralismo e o acesso a uma Internet livre e aberta. Isso é importante, pois muitas dessas plataformas – e os algoritmos que utilizam – são crescentemente responsáveis por decisões fundamentais sobre o conteúdo que as pessoas acessam.
O nível de interferência potencial ou efetiva sobre os conteúdos na Internet coloca uma enorme responsabilidade nos intermediários que, na prática – e se existe algum tipo de regulação democrática –, se transforma em uma forma de regulação privada nunca antes vista. Uma situação agravada pela debilidade dos Estados democráticos para regular fenômenos que transcendem suas fronteiras administrativas. O conceito de “neutralidade” também é válido para este ator do ecossistema digital porque as corporações provedoras de serviços OTT têm o potencial de afetar a liberdade de expressão “condicionando, direcionando ou restringindo” conteúdos “por meio de bloqueio, filtro ou interferência” se não atuam de maneira neutra sobre as informações e opiniões que circulam por suas plataformas e aplicações.
Essa capacidade de ser um gatekeeper que reside no controle de uma camada física ou virtual de acesso não deveria afetar o princípio que deu origem à noção de neutralidade da rede e que o colocou como um tema chave da agenda de liberdade de expressão na Internet. De fato, não foi necessária uma evidência sistemática e ampla de uma violação da liberdade de expressão motivada por razões políticas ou ideológicas por parte dos ISPs para identificar um grave problema para este direito fundamental, e concluir que se tratava de um princípio básico da Internet que deveria ser regulado mediante a aprovação de leis nacionais.
9. Na Internet também há concentração, é crescente e impacta negativamente na liberdade de expressão
A existência de monopólios e oligopólios dos meios de comunicação tradicionais é uma realidade na região latinoamericana, constatada por inúmeras pesquisas acadêmicas e registrada por organizações internacionais como Unesco, entre outras.
A chegada da Internet supôs a eliminação de obstáculos para produzir, difundir e encontrar uma tão ampla gama de informações e opiniões que pareceria anacrônico e impertinente sequer mencionar a ideia de “concentração”. No entanto, os processos de concentração e de constituição de posições dominantes também se encontram no novo ecossistema digital. Isso acontece tanto no âmbito dos ISPs e empresas de telecomunicações como também dos provedores de serviços OTT ou intermediários, em áreas chaves relacionadas com a liberdade de expressão e o direito à informação.
As evidências mostram uma tendência a uma maior concentração nas mãos de umas poucas corporações transnacionais como resultado da própria dinâmica do atual modelo de negócios de Internet. Essa acumulação de poder não só é resultado do êxito dos serviços e bens prestados entre os usuários, mas pelas próprias características de uma “economia de rede”: escala global do negócio, capacidade de obter capitais para os investimentos necessários, dusão ou compra de outras empresas competidoras ou complementárias, entre outras razões. A disputa pelo espectro radioelétrico e a Internet das coisas (IoT) e, em especial, a capacidade de monetizar o big data resultante, parecem indicar processos de aprofundação da concentração atual.
A preocupação com relação à concentração na camada de serviços OTT se justifica, além dos aspectos de concorrência econômica, porque várias das corporações empresariais que têm um poder de mercado significativo e uma posição dominante na Internet são proprietárias de plataformas que habilitam o livre fluxo de informação e outros conteúdos relevantes, tais como redes sociais, motores de busca, aplicações de comunicação e plataformas de intercâmbio de vídeos. Neste ambiente concentrado, os riscos potenciais para o acesso, a diversidade e a pluralidade de ideias e informações já mencionados se agravam de forma notável.
10. Nem desregular para resolver assimetrias, nem a autorregulação como única solução
Ainda quando há dificuldades para encontrar uma forma de regulação adequada para os serviços OTT e existem riscos de intervenções estatais abusivas, não é aceitável fragilizar a busca de regras de jogo democráticas para o funcionamento de nossas sociedades, inclusive no ambiente digital.
A autorregulação é parte da resposta a estes desafios, desde que se realize respeitando o março internacional de direitos humanos e seja compatível com padrões como os “Princípios Orientadores Sobre Empresas e Direitos Humanos” do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.13 Seus termos de uso e código de ética, por exemplo, não deveriam estabelecer regras próprias que sejam contrárias à liberdade de expressão.
Quanto mais autorregulação e melhores práticas empresariais existirem, menos será a necessidade de intervenção estatal, o que é desejável. Mas não pode ser a única solução. Não se deveria privatizar o estabelecimento das regras de jogo democráticas de nossas sociedades. O mercado, por si só, não pode garantir a liberdade de expressão de todas as pessoas nem a existência de democracias inclusivas.
Por outro lado, tratar de resolver as assimetrias entre serviços comparáveis eliminando toda a regulação dos setores já regulados seria um grave retrocesso em uma sociedade democrática e na conquista de direitos humanos fundamentais, assim como a renúncia à obrigação de proteção desses direitos que têm os Estados. Por exemplo, se isso supõe remover todas as obrigações e contraprestações dessas empresas, e acabar com as garantias para uma efetiva proteção dos direitos das pessoas diante delas.
Eventualmente, poderia ser simplificado ou revisado o alcance de algumas das regulações econômicas ou administrativas, sempre que seja estritamente necessário e não signifiquem uma diminuição na proteção dos direitos humanos.
Diante do temor de intervenções estatais abusivas e toda forma de censura, o melhor antídoto é o mesmo que organismos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e das Nações Unidas elaboraram para orientar a proteção dos direitos: as regulações devem cumprir os padrões internacionais de liberdade de expressão para serem legítimas. Não deveria ser diferente para abordar os debates regulatórios sobre Internet e os serviços OTT.
---
1 OBSERVACOM é um think-tank regional sem fins de lucro, profissional e independente, integrado por especialistas e pesquisadores da comunicação comprometidos com a proteção e a promoção da democracia, diversidade cultural, direitos humanos e a liberdade de expressão. Para mais informações: contacto@observacom.org
2 Apenas por razões práticas, neste documento vamos usar o termo amplo "over-the-top", uma definição também de debate.
3 Embora em alguns casos essas posições possam coincidir com os interesses de uma das partes. O caso do debate sobre a neutralidade da rede é um exemplo sobre a confluência de posições, não sempre com base nas mesmas razões e interesses.
4 Este documento é motivado pela consulta pública sobre a regulação dos serviços OTT, realizada pela UIT e encerrada em 29 de agosto de 2017.
5 A OBSERVACOM publicará em breve um documento com propostas de regulamentação de serviços de comunicação audiovisuais na Internet. Os autores seguem o modelo europeu que classifica esses serviços em "lineares" y "não lineares". Os primeiros são serviços como a TV aberta ou paga, cujas características são prefixadas pelo operador e o usuário não pode modificar. Os segundos são serviços como Netflix e similares, onde são oferecidos conteúdos audiovisuais que o usuário pode baixar ou visualizar no momento que deseje.
6 Sobre o modelo “double Irish”, ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Arranjo_duplo_irland%C3%AAs
7 O registo não implica a obrigação de obter uma licença através de um procedimento concorrencial prévio, e suas demandas devem contemplar as condições propostas no ponto 3 deste documento em relação a start-ups, iniciativas sem fins lucrativos, entre outras.
8 Ver https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm
9 Ver http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/showarticle.asp?artID=849&lID=4
10 Ver o ponto 9 deste documento.
11 O impacto na campanha eleitoral nos Estados Unidos, os resultados da busca de informação e opiniões sobre judeus e o holocausto, ou a remoção das fotos de Kim Phuc, a “menina de napalm”, e de indígenas brasileiros ou australianos seminus, são alguns dos exemplos mais conhecidos.
12 Ver https://www.eff.org/files/2015/07/02/manila_principles_1.0_pt.pdf
13 Ver http://www.ohchr.org/Documents/Publications/GuidingPrinciplesBusinessHR_...