A contribuição empresarial para o software livre como atividade socialmente responsável
Jesús García García, pesquisador da Universidade de Oviedo
María Isabel Alonso de Magdaleno, pesquisadora da Universidade de Oviedo
Data da publicação: maio 2014
Metodologia criativa baseada na melhoria contínua e participativa, para uns, ou movimento social que utiliza a tecnologia para construir suas próprias ferramentas a partir de uma visão sociopolítica com profundas implicações econômicas, para outros, o modelo de software livre ou de código aberto tem sido revolucionário nas duas últimas décadas e cresceu ao mesmo tempo em que estendia o papel da Internet na sociedade. Seu paradigma básico é o de que o conhecimento há de ser livre.
Mesmo tendo o conceito se originado no mundo da programação de computadores, seu âmbito de atuação se estende a praticamente toda a criação digital, científica ou cultural. A indústria do software, em seu modelo de negócio, oferece particularidades que a distinguem de outras indústrias. Amparado pelas legislações de propriedade intelectual, o desenvolvedor é quem decide as condições sob as quais seu programa vai ser usado. Seu modelo de negócio se baseia na criação de escassez artificial mediante a concessão de licenças para os usuários, licenças essas que especificam o que os usuários podem fazer com o software, sob a égide do princípio legal de que nada é permitido na falta de uma licença expressamente outorgada. A licença de software é tratada como um produto manufaturado vendido ao cliente, na qual o preço inclui o direito de uso do programa, ficando restrita qualquer modificação ou desenvolvimento nele baseado, inclusive o uso que possa ser feito do software além daquilo que tiver sido estabelecido nos termos da licença.
O modelo de software livre baseia-se no uso livre e na disponibilidade universal de conteúdos graças à abundância propiciada pelas tecnologias digitais, com as quais custos de cópia e distribuição ficam praticamente zerados. A partir do respeito à norma vigente de propriedade intelectual, o software livre propõe liberdade total de uso, modificação, reutilização e redistribuição do código-fonte do software. Essa liberdade é concedida voluntariamente pelo produtor e proprietário dos direitos autorais por meio de um tipo de licença específica chamada “licença livre” – ou, mais informalmente, “copyleft” na língua inglesa, lançando mão de um jogo de palavras em cima do conceito anglo-saxão de “copyright”. O modelo permite a livre transferência de conhecimento além das fronteiras organizacionais, não apenas em processos colaborativos entre organizações e/ou indivíduos mas também entre concorrentes, convertendo-se em criação de valor num sistema de transferência de tecnologia sem atritos.
Como amostra da geração de valor, Daffara (2012) estima uma economia de 114 bilhões de euros anuais como impacto direto do uso do software livre na economia europeia e, indiretamente, pela diminuição na falência de projetos e nos custos de manutenção, seriam possíveis economias ainda não quantificadas; além disso, estima em pelo menos 342 bilhões de euros anuais o impacto e o reinvestimento da referida economia em melhorias de produtividade e de eficiência. Supõe-se que uma única peça do ecossistema do software livre, tal como o núcleo do sistema operacional Linux – desenvolvido abertamente com a colaboração de mais de 500 empresas e 5 mil desenvolvedores individuais, e integrado gratuitamente em vários produtos ao longo de 20 anos – custaria investimentos em patamares superiores aos 1,2 bilhão de euros com cerca de 1.100 colaboradores trabalhando em tempo integral durante 15 anos para ser programada novamente desde o início até seu estado atual (García-García & Alonso de Magdaleno, 2010).
Como a maior parte do software livre, o núcleo do Linux é um expoente claro de bem comum digital desenvolvido em produção por pares (P2P). As raízes de sua origem se fundem na cultura hacker do início dos anos 90, e, em duas décadas, ele evoluiu até se tornar um estudo de caso para a compreensão do fenômeno de criação digital aberta e da participação empresarial no seu crescimento.
O modelo de desenvolvimento P2P do bem comum digital é caracterizado por Bauwens (2005) como um conjunto de processos:
• focados na geração de valor para ser usado por uma comunidade de indivíduos;
• desenvolvidos em cooperação voluntária dos produtores com livre acesso ao capital distribuído;
• regidos pela própria comunidade de produtores e não por relações de mercado nem por hierarquias corporativas; e
• voltados para a difusão livre e universal do valor de uso dos resultados mediante novos regimes de propriedade do bem comum. É possível observar todos esses processos nos projetos de software livre de certa envergadura:
• eles surgem como resposta à necessidade, a partir dos próprios programadores ou promotores iniciais, de dispor de uma nova ferramenta tecnológica, ou como desejo de melhoria de um projeto já existente;
• e crescem por meio de convocação pública para a cooperação de todos os interessados em participar, seja pela utilidade que geram ou pelos valores morais subjacentes ao projeto;
• são esses os cooperadores que integram os órgãos governamentais do projeto, propiciando estruturas organizacionais com diversos graus de formalização, desde o estabelecimento formal de uma fundação cuja direção pode ser composta por entidades sem fins lucrativos e/ou empresas até simples comunidades sem constituição jurídica que atuam em torno de uma ferramenta web (fóruns, núcleos de ação etc.);
• os resultados são colocados à disposição do público para livre uso, modificação ou reutilização com base em algum tipo de licença livre com maior ou menor grau de permissividade (GPL, BSD, Mozilla etc.).
Aparentemente, o desenvolvimento P2P deveria ser incompatível com um modo de produção capitalista centrado na maximização do lucro. Portanto, não é estranha a existência de grandes projetos de software livre sendo geridos por organizações sem fins lucrativos, como, por exemplo, o núcleo do sistema operacional Linux, o servidor Apache ou a distribuição Debian. Esses processos de desenvolvimento de software livre por entidades sem fins lucrativos vêm sendo estudados exaustivamente por Riehle (2010) e Riehle & Berschneider (2012). Em termos de contribuições individuais, as motivações dos programadores também têm sido estudadas por Raymond (1999), Lerner & Tirole (2002), Roberts et al. (2006) e Oreg & Nov (2008), cujos achados indicam motivações de caráter altruísta ou voltadas para o desenvolvimento profissional.
Não obstante, pela redefinição do conceito de software livre como de fonte aberta, ele começa a fazer parte da cultura, estratégia e operações de diversas empresas de tecnologia. Sem dúvida, como destacou Stallman (2007), pode ser que não tenham sido incorporados ao mundo empresarial os valores do software livre mas, sim, seu processo operacional de abertura e transparência para fora da organização, de forma a obter resultados produtivos. Apesar disso, podemos afirmar que os modos de produção P2P, tais como os descritos por Bauwens, saltaram para fora da órbita corporativa e se integraram às empresas como novos atores desses processos comunitários e somaram-se à criação de um amplo e eficiente ecossistema de inovação de livre acesso para a sociedade, que reduziu o software a produto de primeira necessidade de infraestrutura e levou à criação de valor a uma fase posterior da cadeia.
As motivações empresariais para juntar-se a um modelo em que os atores não podem se apropriar dos direitos sobre o conhecimento gerado com fins de exploração exclusiva podem ser tão amplas e variadas quanto as dos programadores individuais. Segundo o modelo oferecido pela teoria institucional clássica da empresa (Williamson, 2002), aplicada por Ostrom (1990; 2005) ao campo do bem comum, seria óbvio concluir que a principal motivação é o próprio interesse da empresa que encontra no modo de produção P2P uma vantagem importante para a economia de custos transacionais. Diante de uma escolha entre desenvolver com seus próprios meios um produto de seu controle exclusivo ou ir buscar em uma comunidade externa que detém os conhecimentos e as competências necessárias ao êxito em troca de socializar a propriedade e governança do conhecimento gerado, as empresas ficam com esta última opção, na qual os ganhos de eficiência provocados pela socialização da produção tornam-se o elemento-chave para a tomada de decisões.
Diferentemente de uma organização sem fins lucrativos que adota um projeto de software livre por apreço aos valores, empresas com tal postura não chegam com motivação altruísta, mas egoísta, para aproveitar as qualidades do modo de produção P2P. Entretanto, em ambos os casos, a sociedade vai se beneficiar da geração do conhecimento novo, em forma de código-fonte ofertado livremente para indivíduos e organizações. Portanto, existem dois caminhos para a geração desse novo repositório digital aberto que harmonizam interesses sociais com interesses corporativos: tanto valores morais quanto eficiência econômica levam ao mesmo resultado. A experiência nos mostra como esses dois caminhos acabam sendo inseparáveis, pois um projeto capaz de começar a se desenvolver a partir de valores morais pode contar com a multiplicação do seu processo de disseminação e da sua comunidade de contribuintes por meio da sua exploração empresarial, enquanto que indivíduos alheios à performance empresarial podem se converter em contribuintes atraídos pelo desejo do bem comum. Entre os dois extremos se encontram várias organizações e indivíduos pertencentes ao chamado “terceiro setor”, cujas atuações e contribuições responderão a posições intermediárias nessa escala.
Esta realidade, híbrida de uma lógica econômica e social, é coerente com a teoria econômica neoclássica, que maximiza o bemestar da sociedade quando os agentes econômicos maximizam seus resultados. Não obstante, essa mesma teoria econômica considerou que a forma de as empresas maximizarem seus resultados passa pela criação de vantagens competitivas das quais possam desfrutar com exclusividade. Limitar o acesso da concorrência ao conhecimento privado como recurso produtivo e dosar a o ferta de produto para alcançar os consumidores de maior poder aquisitivo têm sido práticas habituais que a ciência econômica considera como vetores para a maximização do benefício social através dos mecanismos de mercado, quando todas as teorias gerenciais da empresa estão voltadas para a maximização do desempenho empresarial. Em 1970, o economista Milton Friedman considerava a busca de objetivos sociais por parte das empresas quase uma atividade subversiva, até prejudicial para os investidores devido à apropriação dos recursos corporativos sob a pressão de grupos de interesse alheios aos processos democráticos; em sua visão, se a empresa não obtivesse resultados máximos para os investidores, o bem-estar de toda a sociedade seria reduzido. A atividade mais socialmente responsável de uma empresa seria, portanto, a obtenção direta de lucros para os seus proprietários.
Desde então, vários estudos com enfoque além de uma simples busca de justificativa moral para o papel da empresa na sociedade, e cujos resultados estão analisados em Margolis et al (2007), vêm manifestando que a empresa pode realizar atividades consideradas socialmente responsáveis que levem a uma maximização ainda maior dos seus resultados financeiros. Voltadas para questões ambientais, respeito à diversidade ou melhora das condições e vida de comunidades locais, essas atividades passaram para o primeiro plano do contrato social que une cidadãos e empresas na atividade produtiva, especialmente para empresas multinacionais cujas atividades são cada vez mais questionadas por grupos de consumidores socialmente responsáveis.
É nesse contexto de responsabilidade social que se deve interpretar o modelo de desenvolvimento P2P de software livre como um novo marco de relação que une o conceito de bem comum com a esfera privada dos agentes econômicos. Definido por Von Hippel & Von Krogh (2003) como um modelo de inovação privado-coletivo – de financiamento privado e resultados coletivos – o desenvolvimento de software livre deverá ser considerado como uma dimensão a mais do bem comum clássico dos recursos naturais, nos quais a problemática não se concentra numa impossível destruição por consumo excessivo mas sim na suficiência de contribuições para seu desenvolvimento sustentável. A análise institucional dos recursos comuns feita por Ostrom continua sendo um meio para se atingir a sustentabilidade desse novo bem comum digital. A governança das comunidades de contribuintes para o software livre, a gestão do capital distribuído que supõe o conhecimento de numerosos contribuintes individuais ou corporativos, ou a propriedade comum e universal dos produtos gerados são os meios que servem para nutrir de contribuições esse bem comum digital.
Sua fundamentação como atividade socialmente responsável por parte do setor empresarial, já sendo considerada como atividade geradora de benefícios, deve ser fundamental para a melhoria do fluxo de contribuições. A divulgação dessas contribuições nos relatórios corporativos, como já se dá com outras atividades socialmente responsáveis, deverá servir como estratégia de implementação desses modelos de participação empresarial na criação do bem comum digital. Um marco adequado de comunicação em relatórios de responsabilidade social corporativa pode gerar um reconhecimento institucional que resulte em um clima positivo para uma colaboração desinteressada no âmbito privado dos agentes econômicos.
A experiência acumulada pelo software livre nos mostra um caminho onde os agentes privados abriram novos espaços de criação com resultados publicamente acessíveis para a sociedade. Este caminho e seus resultados ainda podem ser potencializados se aqueles que buscam um benefício legítimo perceberem sua atividade como uma atividade socialmente responsável e se essa percepção funcionar como catalisador de novas contribuições para o acervo do bem comum digital.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
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