NETmundial+10: Evoluindo a Governança Multissetorial da Internet e Processos de Políticas Digitais

Net Mundial + 10

(...) 1, Everton T. Rodrigues 2, Flávio R. Wagner 3, Vinicius W. O. Santos 4

A crescente complexidade das discussões relacionadas à Internet e seus mecanismos de governança tem nos anos de 2024 e 2025 um momento crítico. Diferentes espaços competem pelo protagonismo da discussão de temas caros ao cotidiano de uso da Internet, sem necessariamente considerar seus aspectos de governança de maneira mais dedicada. De forma simplificada, iniciativas decorrentes dos processos WSIS5 e do Pacto Digital Global proposto pelo Secretário Geral da ONU são alguns exemplos de esforços que têm movimentado as discussões no campo6.

O uso intercambiável de termos como “governança da Internet”, “governança digital”, “políticas digitais” e outros para tratar de assuntos muito similares dá pistas sobre a fragmentação dos debates e dos temas discutidos, indicando uma demanda crescente por coordenação nesse ambiente. Para enfrentar esses e outros desafios, principalmente a partir da promoção e expansão das práticas multissetoriais, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), com o apoio de interlocutores relevantes de diferentes países e setores, aprovou a realização do evento NETmundial+107, como um espaço para reforçar a relevância da governança multissetorial da Internet e dos processos de políticas digitais nos mais diversos níveis.

Antecedentes do NETmundial+10

As disputas entre diferentes grupos de atores em torno dos mecanismos institucionais que pretendem ter poder decisivo sobre a Internet não são novidade. Há como rastreá-las até os antecedentes da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) e das discussões em torno da criação da ICANN8, entre inúmeros outros processos do campo. O avanço da chamada Agenda Digital é algo que se materializa nos mais diversos processos e arenas, em contextos nacionais, regionais e globais, seja do ponto de vista individual dos Estados, seja em processos globais multilaterais e multissetoriais. Este avanço é também bastante visível em agências das Nações Unidas tais como a UIT, que consolida sua atuação em torno das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) de maneira ampla, a Unesco e sua forte atuação no campo da Inteligência Artificial e outros assuntos como a governança de plataformas digitais, assim como o próprio Fórum de Governança da Internet (IGF), que há vários anos já debate temas bem mais abrangentes sobre o ambiente digital como um todo.

A Agenda de Túnis9 criou o Fórum de Governança da Internet (IGF)10, uma plataforma global multissetorial que facilita a discussão de questões de políticas públicas relativas à Internet, com um mandato inicial de 5 anos. Em 2010 esse mandato foi renovado por outros 5 anos; a segunda renovação de mandato foi feita durante o processo WSIS+10, com a aprovação de 10 anos adicionais, a serem encerrados em 202511, quando acontecerá a Revisão WSIS+20. O sucesso da Internet decorre precisamente do esforço de incontáveis atores, tanto na sua implementação como nos seus mecanismos de governança. É por isso que a Agenda de Túnis reconhece que a Governança da Internet se dá “com base na plena participação de todas as partes interessadas, tanto dos países desenvolvidos como dos países em desenvolvimento, dentro dos seus respectivos papéis e responsabilidades”. Esse espírito de colaboração não deveria ser restrito somente às camadas de operação técnica da Internet, mas também deve permear todos os seus pontos de coordenação e governança, inclusive na camada de aplicações e serviços.

Tensões políticas, com potencial de impacto para instituições-chave do funcionamento da Internet, que não haviam sido resolvidas desde a CMSI, chegaram ao seu ápice durante a primeira metade da década de 2010. O vínculo da ICANN com o governo dos Estados Unidos da América, por meio de um contrato que supervisionava as funções da IANA12, foi tópico permanente de discussão até meados dessa década, já que alguns atores entendiam que esse contrato daria preponderância ao governo daquele país no controle do sistema de nomes de domínios (DNS) e da Internet.

Tal percepção e outras preocupações ganharam força quando Edward Snowden revelou, em meados de junho de 2013, um esquema em escala global de vigilância em massa e espionagem pelo governo dos EUA. Snowden mostrou que a espionagem era realizada contra cidadãos e autoridades de todo o planeta, incluindo a presidenta brasileira à época, Dilma Rousseff, que se reuniu em setembro13 com o CGI.br para debater esse assunto e a tramitação do Marco Civil da Internet14. Posteriormente, Dilma utilizou o decálogo de princípios do CGI.br em seu discurso na abertura da Assembleia Geral da ONU em setembro de 2013, quando abordou os casos de espionagem e chamou a comunidade internacional para debater, no Brasil, a governança global da Internet. Em outubro, uma carta conjunta de atores-chave da comunidade técnica da Internet, reunidos em Montevidéu (Uruguai), apontou a clara necessidade de reforçar e desenvolver continuamente os mecanismos para a cooperação global multissetorial na Internet15. Mesmo com a mobilização de atores em escala global para discutir esse e outros assuntos, faltava um espaço de debate com as condições apropriadas, inexistentes nos fóruns estabelecidos à época, o que culminou no anúncio do evento NETmundial para 2014.

A reunião do NETmundial ocorreu nos dias 23 e 24 de abril de 2014, em São Paulo, reunindo 1.480 participantes presencialmente e remotamente, de uma diversidade de 97 países. Ele foi baseado em um modelo multissetorial com real igualdade de participação para todos (“equal footing”), organizado em comitês, que objetivou uma participação ampla e diversa. Um Comitê de Alto Nível e um Comitê Executivo Multissetorial, com atores variados, incluindo membros governamentais de alto escalão de diversos países, cuidaram da dinâmica e da programação do evento, que foi realizado em uma parceria entre o CGI.br e a rede /1Net, um fórum que abrigava diferentes organizações técnicas globais envolvidas com a governança da Internet. Como resultado, o evento produziu a “Declaração Multissetorial NETmundial”16, também conhecida como “Declaração Multissetorial de São Paulo”, que contém duas partes: um conjunto de princípios para o desenvolvimento, o uso e a governança da Internet global; e um roteiro para a evolução futura da Internet.

Nos anos subsequentes ao NETmundial, diversos atores consideraram a possibilidade de se fazer um evento de seguimento, para dar continuidade ao sucesso do primeiro. Duas sessões foram organizadas nos IGFs de 2018 e 2019, para dar continuidade ao legado do NETmundial. No IGF 201817, em Paris, um workshop focou em avaliar a evolução dos debates de Governança da Internet, a implementação dos princípios de 2014 e a realização de um evento de revisão do NETmundial no ano seguinte. No IGF de Berlim, em 2019, uma atividade do “dia zero” foi realizada, além de um pré-evento chamado “NETmundial+5”18, que debateu a sequência e implementação dos princípios adotados em 2014. Embora essa ação não tenha angariado articulações sólidas o suficiente para a continuidade das discussões, ela serviu para que diferentes atores resguardassem o legado do NETmundial para eventualmente realizar outra rodada de discussão nos mesmos moldes.

Em 2018, em uma espécie de ponto de inflexão no campo, o Secretário-Geral da ONU constituiu um painel de alto nível para tratar de temas relacionados com o tema da Cooperação Digital. O painel foi constituído por profissionais de diversos países, e entregou, em 2019, um relatório sobre seu trabalho, intitulado “A Era da Interdependência Digital: Relatório do Painel de Alto Nível sobre Cooperação Digital”19. O relatório lida com uma diversidade de temas e gerou uma série de respostas, contribuições e processos posteriores, engajando stakeholders globais os mais variados.

Mais recentemente, em 2020, o Secretário-Geral da ONU, como parte das comemorações de 75 anos da entidade, publicou o relatório “Nossa Agenda Comum” (Our Common Agenda), no qual propôs um Pacto Digital Global (GDC)20, que será aprovado durante a Cúpula do Futuro21, a ser realizada em 2024. Junto a isso, a comunidade global prepara-se, ainda, para a revisão WSIS+20, a ser realizada em 2025, em que se discutirá, entre outros, os caminhos e o futuro do IGF. Todo esse arcabouço de debates e processos decisórios, muitos concorrentes e em paralelo, dão o tom da complexidade do ecossistema, que precisa lidar com diversas sobreposições e pouca coordenação, elementos principais das discussões relacionadas à fragmentação da governança da Internet e processos de políticas digitais. A essa fragmentação acrescenta-se uma multiplicidade de outros espaços globais de discussão de temas específicos, tais como Inteligência Artificial e Segurança Cibernética, em grande parte em um contexto intergovernamental, com baixa oportunidade de participação significativa dos demais setores.

A condução das negociações do GDC22 tem levantado diversos questionamentos pela comunidade global, principalmente do ponto de vista da transparência e participação de atores não governamentais. Tais preocupações não se relacionam unicamente com a atuação de governos, mas também com a forma como esse processo enxerga os demais atores relevantes. Em junho de 2023, o Enviado de Tecnologia do Secretário-Geral das Nações Unidas (UN Tech Envoy), Embaixador Amandeep Singh Gill, declarou que um modelo tripartite seria o necessário para compor um novo Fórum de Cooperação Digital, e dele participariam o setor privado, os governos e a “sociedade civil”, entendida aqui de maneira ampliada, também agregando a comunidade técnica e a academia. A declaração provocou uma reação de atores relevantes da comunidade técnica: ICANN, ARIN23 e APNIC24 publicaram um comunicado conjunto25 com fortes críticas às declarações do Tech Envoy e em defesa do modelo multissetorial da Internet que trate a comunidade técnica como um ator com interesses distintos dos demais setores.26

Desde a publicação do relatório Nossa Agenda Comum, pelo Secretário-Geral da ONU, a realização da Cúpula do Futuro apresentou-se como um risco concreto para as discussões abertas e multissetoriais, voltadas à obtenção de consenso entre diferentes grupos de atores interessados no desenvolvimento e uso da Internet, levando-se em conta que o condão decisório desta cúpula é restrito ao âmbito governamental. No mesmo sentido, o reforço de espaços multilaterais trazido pelas discussões atualmente em andamento a respeito do GDC traz riscos ao IGF como um esforço global multissetorial capaz de ser aprimorado para entregar resultados ainda mais relevantes. Dessa forma, dada a preponderância atual de iniciativas multilaterais que pretendem ser responsáveis pelo desenvolvimento e uso da Internet, o modelo de governança multissetorial precisaria ser reafirmado antes que esses processos decisórios avançassem ainda mais.

Entendendo o momento como crítico para a definição dos rumos da governança do ecossistema digital, diversos atores da comunidade global interessada, principalmente aqueles já tradicionalmente envolvidos com a governança da Internet, identificaram a necessidade de um espaço de discussão essencialmente multissetorial que pudesse proporcionar um ambiente adequado para os atores dos diferentes setores se encontrarem e acordarem mensagens fortes, com recomendações concretas sobre a preservação e aplicação do multissetorialismo nos mais diversos espaços de governança, inclusive em espaços multilaterais. Assim, após diversos diálogos e articulações no interior dessa comunidade, o NETmundial+10 foi proposto enquanto uma possível ferramenta para tratar todas essas questões.

A concepção do NETmundial+10

Em setembro de 2023, a partir de uma análise do cenário descrito acima, o CGI.br aprovou a realização do evento NETmundial+10 para debater os desafios de governança globais relacionados à Internet e ao “digital”, com a condição de que o evento somente seria viável do ponto de vista político a partir de uma articulação com parceiros internacionais. Dessa forma, o CGI.br passou a dialogar com atores e potenciais parceiros nos principais eventos de governança da Internet, como o IGF 2023, realizado em Quioto, Japão; a ICANN78, realizada em Hamburgo, Alemanha; e a World Internet Conference, realizada em Wuzhen, China; entre outros. Esses primeiros contatos proporcionaram as linhas gerais do que um NETmundial+10 deveria abordar, atendendo tanto ao que foi aprovado pelo CGI.br como aos anseios dos diferentes atores consultados. Durante essas reuniões, buscou-se também eventual apoio institucional para a realização do evento. Dentre os tópicos mais frequentes nas reuniões, pode-se destacar:

  • a defesa do modelo multissetorial para a governança da Internet;
  • o NETmundial+10 não deveria sobrepor atividades ou replicar estruturas do IGF;
  • o reforço do papel do IGF; e
  • a necessidade de uma metodologia leve de trabalho, dado o curto prazo para a organização do evento.

Linha do tempo resumida

  • 22 de setembro de 2023: Aprovação da realização do NETmundial+10 pelo CGI.br: https://cgi.br/reunioes/ata/2023/09/22/
  • Outubro e novembro de 2023: reuniões com potenciais apoiadores e parceiros, durante o IGF em Quioto, no Japão; a ICANN78, em Hamburgo, na Alemanha; e a Conferência Mundial da Internet, em Wuzhen, China.
  • 23 de novembro de 2023: publicação da nota “NETmundial+10 – Global challenges for the governance of the digital world”:
  • https://cgi.br/noticia/notas/netmundial-10-global-challenges-for-the-governance-of-the-digital-world/.
  • Dezembro de 2023: reuniões do grupo de escopo do NETmundial+10, que definiu as linhas principais do evento.
  • 22 de dezembro de 2023: Declaração conjunta do NETmundial+10: https://netmundial.br/statement/joint-statement-of-the-netmundial10.
  • Janeiro de 2024: coleta de assinaturas à Declaração Conjunta.
  • Fevereiro de 2024: composição e início dos trabalhos do Comitê Executivo de Alto Nível (HLEC).
  • Março de 2024: processo para o Registro de Intenção (Expression of Interest) em participar do evento.
  • 22 de março de 2024: lançamento da consulta online do NETmundial+10 e da programação preliminar.
  • 10 de abril de 2024: encerramento da consulta online do NETmundial+10.
  • 25 de abril de 2024: publicação da versão preliminar da declaração final, com base no conteúdo recebido por meio da consulta online.
  • 29 e 30 de abril de 2024: realização do evento e coleta de contribuições nas Sessões de Trabalho.
  • 30 de abril de 2024: reunião final do HLEC e publicação do Documento Final do NETmundial+10, ao final do evento.

Processo antes e durante o evento

O NETmundial+10 foi fortemente baseado no evento de 2014, com necessárias adaptações de conteúdos e dinâmicas. Tal como em 2014, o evento foi construído de forma a propiciar diálogos multissetoriais significativos que pudessem gerar resultados concretos, tangíveis, sobre os temas em discussão. Diferentemente de 2014, quando o evento se focou em discussões temáticas do campo da governança da Internet e gerou princípios em diversas áreas, tais como inovação, segurança e direitos humanos, o evento de 2024 atuou sobre um recorte mais restrito da agenda, buscando oferecer propostas concretas de mecanismos e diretrizes para o avanço das práticas multissetoriais em todas as esferas relevantes.

No início, foram realizados diálogos informais com potenciais parceiros da iniciativa, oriundos de diferentes setores e regiões geográficas, de forma a identificar forças, fraquezas, riscos e oportunidades, bem como estabelecer a rede de apoiadores-chave para viabilizar o evento politicamente. Após diversos diálogos e devolutivas positivas sobre a ideia e os objetivos, as linhas gerais de um evento foram aprimoradas e o CGI.br passou a de fato construir uma rede para o NETmundial+10. O primeiro passo foi estabelecer um “grupo de escopo”, que trabalhou basicamente durante o mês de dezembro de 2023 e definiu as bases e as linhas mestras do evento, materializadas na declaração conjunta que foi amplamente disseminada no início de janeiro de 2024, para coleta de assinaturas. O grupo foi montado a partir, principalmente, do grupo de pessoas e organizações com quem o CGI.br havia conversado durante os eventos de governança no segundo semestre de 2023. Foi um grupo formado por cerca de 15 pessoas, com diversidade de gênero, setores e regiões. Com reuniões remotas no mês de dezembro de 2023, o grupo debateu e construiu uma declaração conjunta, por meio da qual o CGI.br e seus parceiros divulgaram para a comunidade global o processo em andamento para organizar o evento, além de especificar o escopo das discussões no avanço do multissetorialismo para a governança do mundo digital, especialmente no que se refere aos mecanismos e práticas que devem estar na base de seu funcionamento.

Com a declaração publicada no início de janeiro, um processo de coleta de assinaturas foi iniciado e durou até o fim do mês, tendo sido recebidos cerca de 300 apoios de indivíduos e organizações de todo o mundo. Todos os apoios foram registrados e documentados no site do evento. Dali em diante foi iniciado o processo de composição do que seria o Comitê Executivo do evento. Em 2014, o evento havia contado com uma estrutura em torno de 4 comitês diferentes, com missões bem estabelecidas. Para 2024, houve uma redução dessa estrutura, de modo a adequar as expectativas ao tempo e recursos disponíveis para a realização do evento. A estrutura do Comitê Executivo de 2014 foi tomada como base e acoplada às demais, dando origem ao que ficou conhecido como Comitê Executivo de Alto Nível, ou High Level Executive Committee, em inglês (HLEC). O HLEC foi composto e iniciou seus trabalhos em meados de fevereiro de 2024, quando o processo de produção do evento foi acelerado.

Com pouco mais de dois meses de trabalho intenso, o HLEC, apoiado por um Secretariado reduzido, fez diversas reuniões online de modo a debater e tomar as diversas decisões relacionadas com a organização do evento. Pela estrutura mais compacta, algumas funções foram separadas. Enquanto o HLEC ficou responsável pelo conteúdo do evento, o anfitrião, o CGI.br, ficou totalmente responsável pelas decisões de infraestrutura e logística para o evento. O CGI.br, por meio do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), organizou toda a infraestrutura física necessária. Também o CGI.br/NIC.br, por meio da alocação de recursos e pessoal, proveu o Secretariado necessário às atividades do HLEC desde outubro de 2023 até a finalização de todos os processos relativos ao evento.

Para viabilizar e dinamizar a organização do evento, o HLEC foi dividido em 3 subgrupos: Participação, Programação e Consulta. O subgrupo de Participação ficou responsável pela definição de critérios para a seleção de participantes, regras e orientações sobre a participação no processo, além de outras questões relacionadas com informação, participação e engajamento. O subgrupo de Programação ficou responsável por toda a construção da programação do evento, debatendo os critérios, linhas gerais, formatos dominantes, dinâmicas de interação e composição de sessões. O subgrupo de Consulta foi responsável por projetar a consulta online que preparou as bases para o evento, definindo os temas e conteúdo da consulta, bem como outros aspectos de implementação necessários, além de uma apreciação posterior dos resultados.

Ao longo do processo, a dinâmica era, basicamente, a de reuniões de subgrupos seguidas de reuniões gerais do HLEC. Cada reunião individual de subgrupo tratava de aspectos específicos das pautas daquele subgrupo, com posterior relato na reunião geral do HLEC. As reuniões do HLEC também tinham o papel de pautar tópicos em aberto, além de encaminhar questões para os subgrupos, ou mesmo tratar de outras questões não previstas e/ou pendentes. No total, foram 7 reuniões online do HLEC, antes do evento. Na sequência, o HLEC realizou sua primeira reunião presencial no dia anterior ao NETmundial+10, 28 de abril de 2024. O comitê se reuniu ainda nos dias 29 e 30, durante o evento, para continuar processando contribuições da comunidade e preparar o documento final. No dia 30, o HLEC permaneceu em reunião durante toda a tarde, para conseguir processar todas as contribuições recebidas e finalizar o documento que foi apresentado na plenária final. Os subgrupos, por sua vez, realizaram diversas reuniões ao longo do processo de organização do evento, de maneira não necessariamente uniforme, sempre dependendo das demandas de cada grupo.

A consulta online foi a espinha dorsal de todo o processo até a declaração final do evento. O subgrupo do HLEC responsável por delinear o conteúdo e o processo da consulta fez diversas reuniões para chegar a uma versão final da consulta que foi publicada na plataforma. O formato final envolveu uma mescla de perguntas abertas e fechadas, sendo estas últimas baseadas em estrutura de escala Likert, em que os respondentes precisavam indicar o nível de acordo ou desacordo com determinadas afirmações. O conjunto de questões ainda contou com uma questão do tipo ranqueamento e outra de priorização. A consulta foi lançada no dia 22 de março de 2024, sendo encerrada no dia 10 de abril seguinte, recebendo contribuições diversas de um total de 154 respondentes. Um time dedicado analisou e categorizou os conteúdos recebidos, produzindo um relatório que foi utilizado pelo Secretariado e pelo HLEC nas discussões do documento final do evento. A partir do relatório da consulta, o Secretariado preparou um conjunto de conteúdos estruturados pelas contribuições, de modo que este foi o insumo inicial de trabalho do HLEC para a elaboração da declaração final.

Passada a primeira fase de processamento da consulta, passou-se à segunda fase, em que o HLEC escolheu membros responsáveis pela redação de partes específicas do documento final (“pen holders”). Os pen holders trabalharam por um espaço de tempo muito curto e entregaram propostas de consolidação dos trechos com base nos insumos a eles providos. A estrutura do documento final foi quase que totalmente baseada na estrutura de tópicos da consulta online, de modo a manter a coerência do processo e garantir a adição de contribuições da comunidade de maneira mais direta. Após esse primeiro trabalho de consolidação dos pen holders, o HLEC se reuniu e finalizou a versão preliminar do documento, que foi publicada em 25 de abril de 2024, poucos dias antes do evento, de modo a dar conhecimento prévio dos conteúdos à comunidade, para proporcionar tempo e espaço para debates dentro dos setores.

Com o documento preliminar publicado, o HLEC continuou os debates e a preparação para o evento, já debatendo e definindo questões metodológicas e de processo. Membros do HLEC continuaram responsáveis por partes específicas do documento, tendo a missão de processar contribuições recebidas dos participantes durante o evento para propor versões finais das seções do documento. O evento contou com três sessões de trabalho, focadas em cada uma das principais seções temáticas do documento final. Após cada sessão, uma equipe de relatoria enviava sumários das contribuições dos participantes para que os membros do HLEC pudessem processar os conteúdos. Esse trabalho alimentou uma versão final do documento, que foi debatida pelo HLEC durante toda a tarde do segundo e último dia de evento. A versão final resultante dessa reunião foi apresentada na plenária final, com leitura completa pelos membros do HLEC que estavam na sessão. O resultado foi muito bem recebido, tanto pelos participantes do evento como por muitos outros atores da comunidade de governança da Internet.


Esquema simplificado de como se deu o processo de construção da declaração final

Na sequência do evento, diversos diálogos foram iniciados para a divulgação do documento final e aumento de seu impacto. Atores da comunidade global têm utilizado os resultados do NETmundial+10 em diálogos dentro de suas próprias comunidades, além de mencioná-los em outros processos relevantes. Muito se tem conversado sobre a necessidade de expandir tais diálogos e aumentar a conscientização sobre a declaração NETmundial+10, de forma a qualificar os debates e levar consensos multissetoriais para outros processos decisórios. Diversos membros da comunidade já têm feito referência explícita, inclusive, ao que passou a ser identificado como “Diretrizes de São Paulo”, que correspondem a uma parte importante do documento, com recomendações essenciais para a implementação de mecanismos multissetoriais de governança. A comunidade também já começa a pensar na possível implementação de outra recomendação expressa incluída no documento final do NETmundial+10, que indica o Fórum de Governança da Internet – IGF, como o guardião dessas diretrizes.

Declaração final e as Diretrizes Multissetoriais de São Paulo

Assim como em 2014, o principal produto do NETmundial+10 foi sua declaração final27. O documento seguiu quase que totalmente a estrutura apresentada durante a consulta online, preservando suas três principais seções temáticas: “Princípios para a Governança da Internet”; “Diretrizes para a Implementação de Mecanismos Multissetoriais”; e “Contribuições a Processos em Curso”. Dado que o evento durou apenas dois dias, e a fim de adiantar o trabalho de redação, uma versão preliminar do documento foi elaborada pelo HLEC com base nas contribuições enviadas em resposta à consulta online. Diversas alterações de redação foram efetuadas durante os dois dias do evento, como resultado do processo de engajamento da comunidade, e materializadas no texto do documento final.

A declaração final contém, já em sua seção inicial, os seus principais objetivos. Dessa forma, o NETmundial+10:

  • Ratifica a declaração do NETmundial de 2014, que afirma que a Internet é um recurso global que deve ser gerido no interesse público, em conformidade com o direito internacional e a legislação internacional de direitos humanos;
  • Reconhece a relevância da transparência e da prestação de contas para melhorar a governança da Internet e os processos de políticas digitais;
  • Reafirma que os 10 princípios para os processos de governança da Internet adotados em 2014 permanecem relevantes e recomenda a sua aplicação no tratamento dos desafios atuais e futuros das políticas digitais;
  • Propõe diretrizes operacionais para a implementação desses princípios em diferentes situações;
  • Faz contribuições para diversos processos em andamento relacionados à evolução da arquitetura de governança para as políticas digitais; e 
  • Recomenda que os princípios e as diretrizes apresentados neste documento sejam implementados por todas as partes interessadas, em todos os níveis.

Dessa forma, a declaração multissetorial do NETmundial+10 tem basicamente três pilares: reafirmação dos princípios de processos de governança adotados em 2014, recomendação de diretrizes operacionais para a implementação dos princípios e consolidação de mensagens para outros processos em curso que podem se beneficiar dos conteúdos da declaração.

O documento apresenta diversos conteúdos relevantes que merecem análise detida, como as recomendações de implementação do princípio multissetorial e as mensagens sobre coordenação dos espaços de governança. O coração da declaração, contudo, é o conjunto de diretrizes e etapas de processo para a colaboração e tomada de decisão multissetorial, as “Diretrizes Multissetoriais de São Paulo”. No total, são 13 diretrizes, passando por aspectos específicos de como deve se dar a participação multissetorial, a necessidade de deliberação, transparência e prestação de contas, entre outros. As etapas de processo, por sua vez, envolvem orientações que passam pela identificação e engajamento de atores, compartilhamento de informações, participação equitativa, poderes da comunidade, entre outros. Espera-se que as diretrizes e etapas de processo possam ser integradas aos mais diversos processos multissetoriais e/ou multilaterais, em todos os níveis.

Um outro aspecto forte no documento é a seção dedicada a enviar mensagens a outros processos em curso. Dentre as mensagens expressas, pode-se destacar a recomendação para que o Pacto Digital Global não crie espaços novos que possam se sobrepor com outros já existentes, indicando que os espaços atuais sejam reforçados para atingirem os objetivos esperados. Outro aspecto relevante foi a defesa do Fórum de Governança da Internet (IGF) como espaço preferencial para a coordenação de processos e monitoramento de decisões relevantes. Para além disso, o documento do NETmundial+10 também recomenda que o IGF seja o guardião das Diretrizes Multissetoriais de São Paulo, acompanhando sua implementação e evolução no ecossistema.

Como parte do próprio processo de debate multissetorial, e mesmo como parte do processo de escutar a comunidade, é também resultado do NETmundial+10 uma expressão “nova” para se referir ao campo: “Governança da Internet e Processos de Políticas Digitais”. A expressão foi resultado do consenso multissetorial do Comitê Executivo, quando o mesmo debatia as contribuições da comunidade e tentava consolidar as diferentes visões. A adoção dessa expressão foi uma tentativa de resolver a cacofonia apontada em diversas contribuições, sobre o uso de diferentes expressões para se referir às mesmas coisas, de maneira intercambiável (e.g.: governança digital, governança da Internet, políticas digitais, etc).

O sucesso do NETmundial+10 se conjuga no futuro

O NETmundial+10 foi um esforço multissetorial de sucesso incontestável do ponto de vista logístico e político. A decisão de realizá-lo no primeiro semestre de 2024 não atendeu somente a um anseio por repetir ou comemorar o evento de 2014, mas também de proporcionar uma oportunidade para que o documento final pudesse ser utilizado nos eventos-chave na agenda de 2024-2025. Dessa forma, todos os interessados em defender o modelo multissetorial de governança da Internet e processos de políticas digitais têm a oportunidade de se apropriarem do formato de realização do evento e dos seus resultados, como o seu documento final e as Diretrizes de São Paulo, nele contidas, aplicando-as em todos os espaços de governança multissetoriais e multilaterais. O impacto real do NETmundial+10 não se constitui na realização do evento, mas no aprimoramento efetivo da arquitetura e dos mecanismos de Governança da Internet e Processos de Políticas Digitais.

Apesar da urgência permanente que permeou toda a organização e realização do evento, a comunidade interessada em defender o modelo multissetorial saiu fortalecida com a mobilização que foi proporcionada. O NETmundial+10 possibilitou que os interessados em continuar a construir e evoluir os mecanismos de Governança da Internet e Processos de Políticas Digitais dessem vários passos concretos na direção da construção de consensos para o futuro da Internet. Esse feito, em si, já constitui um forte recado para as negociações crescentemente realizadas em silos, conduzidos por diferentes atores, especialmente intergovernamentais, em espaços cada vez mais fragmentados e sobrepostos, sem que a comunidade tenha uma ferramenta forte e adequada para avançar em ações e posições realmente concretas para o aprimoramento da governança do ecossistema digital global.


1 Este texto foi escrito por integrantes do Secretariado do NETmundial+10.

2 Mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp e Assessor especialista do CGI.br.

3 Doutor em Engenharia da Computação pela Rheinland-Pfälzische Technische Universität Kaiserslautern-Landau (RPTU) e Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

4 Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Unicamp e Coordenador de Governança e Políticas de Internet no CGI.br.

5 World Summit on the Information Society, ou Cúpula Mundial da Sociedade da Informação - CMSI, no acrônimo em português.

7 Diversas informações e detalhes sobre o processo serão tratados neste texto. Ainda assim, muitos outros detalhes, materiais e referências diversas estarão acessíveis no site oficial do evento em https://netmundial.br/.

8 Corporação da Internet para a Atribuição de Nomes e Números, https://www.icann.org/.

9 Documento resultante da segunda fase da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação, realizada em 2005. Ver Cadernos CGI.br | Documentos da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação: Genebra 2003 e Túnis 2005, disponível em https://cgi.br/publicacao/cadernos-cgi-br-documentos-cmsi/.

12 A Internet Assigned Numbers Authority (IANA) tem como função principal a atribuição e alocação de identificadores únicos que dão base ao funcionamento da Internet globalmente. De maneira geral, a IANA é responsável pelo gerenciamento do que se conhece por recursos críticos da Internet: nomes de domínio, recursos de numeração e a base de protocolos para a operação da rede globalmente.

16 Declaração Multissetorial de São Paulo (NETmundial). Disponível em https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/4/Documento_NETmundial_pt.pdf

17 IGF 2018 WS #178 Towards NetMundial +5: Disponível em https://www.intgovforum.org/en/content/igf-2018-ws-178-towards-netmundial-5

18 IGF 2019 Pre-Event #32 NETmundial+5: The Legacy and Implications for Future Internet Governance https://www.intgovforum.org/en/content/igf-2019-pre-event-32-netmundial5-the-legacy-and-implications-for-future-internet-governance

19 “The Age of Digital Interdependence: Report of the High-level Panel on Digital Cooperation”, no original em inglês. Ver https://cgi.br/publicacao/cadernos-cgi-br-a-era-da-interdependencia-digital/.

22 A negociação e aprovação do GDC se dará entre os Estados-membros da Organização das Nações Unidas.

23 Um dos 5 Registros Regionais da Internet, responsável principalmente pela América do Norte.

24 Um dos 5 Registros Regionais da Internet, responsável pela região da Ásia-Pacífico.

26 Como crítica ao conteúdo publicado no site da ICANN, em https://www.internetgovernance.org/2023/08/22/the-technical-community-and-internet-governance-a-response-to-the-costerton-curran-wilson-letter/, Milton Mueller argumenta que a ONU não tem poder para impor qualquer modelo de governança da Internet. No entanto, o autor não considera a relevância do papel dos Estados-Membros para não só apoiar a coordenação de esforços no espaço da ONU como para replicar o modelo de escala global para suas próprias jurisdições.