A democracia digital e o futuro dos cidadãos

A democracia digital e o futuro dos cidadãos

Renata Ávila, advogada internacional de direitos humanos, diretora executiva da Fundação Cidadão Inteligente, Chile

Data da publicação: junho 2019

(*) Este texto foi publicado originalmente em espanhol e em inglês em 18 de Janeiro de 2019, no sítio https://www.opendemocracy.net

Será que temos informação suficiente para poder regular a atividade dos provedores de dados que desempenham hoje um papel chave no desenvolvimento das campanhas eleitorais e de nossas democracias?

A vitória de Jair Bolsonaro no Brasil em 2018 colocou em evidência o papel das empresas de marketing nas redes sociais nas eleições e a sua poderosa influência na polarização dos processos políticos. Houve sem dúvida um impacto na deflagração da vitória de partidos políticos e de líderes outrora estranhos ao mundo da política.

Esta tendência é agora a regra e não a exceção nas sociedades democráticas. O que os meios de comunicação em todo o mundo qualificaram como excepcional, como a suposta intervenção estrangeira que levou à derrota de Hillary Clinton nas eleições presidenciais de 2016 nos Estados Unidos, ou a vitória do Brexit em um referendo no mesmo ano no Reino Unido, se converteu em um evidente padrão em todos os processos eleitorais desde então.

Com a crescente popularidade das redes sociais e da Internet, as técnicas de propaganda política e as campanhas online foram se adaptando para tirar proveito da enorme quantidade de dados pessoais disponíveis. As novas técnicas de publicidade utilizam dados (que se encontram disponíveis online), programas de aprendizado automático e pesquisa psicológica para gerar mensagens destinadas a públicos-alvos específicos.

Essas mensagens baseiam-se não apenas em dados demográficos refinados, como também em informações relativas ao nosso comportamento online. Os pontos que faltam para concluir um esboço de determinado perfil quase sempre são completados com base em semelhanças com outros usuários ou clientes que disponibilizam um conjunto de dados mais amplo. O interesse dos responsáveis nas campanhas eleitorais pelo uso de técnicas de publicidade o mais eficazes possível os tem levado a adotar essas abordagens de marketing baseada em dados.

Mas como uma campanha baseada em dados se dá por dentro? E quais as normas existentes para preservar a liberdade dos eleitores e garantir a imparcialidade durante a campanha e as eleições? São levados em conta os direitos digitais dos eleitores?

Anatomia das campanhas eleitorais baseadas em dados: o papel dos provedores privados

Nos últimos meses, o projeto Data Politics, coordenado pelo Transparency Toolkit,1 desenvolveu uma wiki para compilar informação sobre os provedores que oferecem serviços digitais para campanhas online. O objetivo desse repositório não é somente mostrar o alcance e a variedade dos atores envolvidos no marketing político, mas também proporcionar uma ferramenta colaborativa que ajude a aprofundar as pesquisas sobre a indústria do marketing político.

Até agora, o Data Politics identificou centenas de empresas que prestam serviços para diferentes fases das campanhas eleitorais baseadas em dados e que utilizam táticas de marketing. O acervo contém informações e referências de até 300 provedores envolvidos em campanhas eleitorais, ilustrando assim um fenômeno que vai muito além do célebre e triste escândalo da Cambridge Analytica.2 Ainda que a pesquisa inicial tenha enfocado provedores mexicanos, o objetivo do “Data Politics” é ampliar suas fontes.

Para uma melhor compreensão, vamos guiar o leitor através de cada fase do processo:

1. Coleta de dados dos eleitores

Para poder influenciar os eleitores, a primeira coisa a se fazer é estabelecer quem eles são e o que pensam. Isso se consegue através da coleta de listas de eleitores, dados demográficos e opiniões, crenças, comportamento ou preocupações. E isso se obtém por meio do acesso a dados oficiais, como listas de pessoas com direito a voto, facilitadas pelas autoridades eleitorais, dados públicos disponíveis, como o censo, além de informações comerciais e outras coletadas com objetivos políticos.

O problema nessa fase é a tênue linha que separa a coleta de dados com fins políticos e aqueles com fins comerciais, que permitem uma elaboração de perfis cada vez mais refinados em relação aos hábitos preferenciais dos consumidores. Esta informação está sendo vendida hoje aos responsáveis pelas campanhas eleitorais. Os “proprietários” desses dados são geralmente intermediários, de modo que o negócio emergente de intermediação de dados está começando a ter um papel relevante.

Um exemplo interessante é o caso de Pig.gi,3 uma empresa de pesquisas em Xochimilco, no México, e a iniciativa sem precedentes – vinculada à Cambridge Analytica –, levada a cabo por esta empresa, de proporcionar Internet gratuita a comunidades previamente desconectadas.

Tudo começou em Tizilingo, uma localidade tão pequena que não aparece no Google Maps. Ainda que nenhum dos residentes dispusesse de computador pessoal, uns 60 tinham telefones móveis, muitos dos quais podiam conectar-se à rede gratuita. Para muitos deles, então, o acesso gratuito à Internet chegou antes que a água encanada.

Mas o que fez Pig.gi nessa pequena comunidade de 100 pessoas ao sul da Cidade do México, em aparente coordenação com a Cambridge Analytica, apaga a linha que separa o altruísmo da exploração e camufla o custo oculto do acesso gratuito à Internet – algo que as comunidades pobres do México e outras muitas partes do mundo não conseguem compreender totalmente.

O que estamos presenciando, cada vez mais, é a realização de provas de práticas de coleta de dados em populações desfavorecidas para sua posterior exploração e reutilização. À primeira vista, um projeto como o de Pig.gi parece de caridade, mas na realidade a contrapartida é a obtenção de dados da comunidade. E a supervisão que exercem as autoridades eleitorais e as autoridades de proteção de dados na atualidade resulta inadequada em circunstâncias em que se utiliza esse tipo de ferramentas para monitorar e influenciar as opiniões dos eleitores pobres, que são geralmente votantes indecisos.

Também se tornaram atores fundamentais de todo o processo de coleta de dados os gigantes tecnológicos. As redes sociais são fantásticas fontes de informação sobre os eleitores. Seus sites servem para compilar dados demográficos, monitorar opiniões e conversas e coletar outras informações que os usuários expressam explicitamente.

Além disso, sobre essa base podem ser elaborados novos dados através de processos de inferência: existem estudos que mostram como se podem deduzir traços de personalidade, pontos de vista políticos e outras características através de dados como “curtir” do Facebook. Ademais, há empresas de escuta social (“social listening”) especializadas em monitorar, agregar e analisar discussões nas redes sociais sobre determinados temas, candidatos, partidos ou marcas.

Tais empresas coletam dados das plataformas das redes sociais mediante o uso de APIs públicas, rastreadores da rede (rastreador web) ou simplesmente os comprando. Portanto, utilizam suas próprias ferramentas ou software disponível no mercado para analisar tendências e identificar usuários influentes.

Outro tipo de empresa são as intermediárias de dados que coletam informações sobre pessoas a partir de fontes diversas: redes sociais, registros públicos e empresas privadas. Estas empresas partem, geralmente, de informações limitadas, como uma lista de e-mails de clientes ou contas de redes sociais, e as combinam com informações de contato mais detalhadas – comportamento de compra, detalhes demográficos e dados de pesquisa e navegação na Internet – de pessoas que aparecem na lista inicial.

A quantidade de dados disponíveis para esses intermediários depende das regulações dos países onde operam. Os atores mais recentes neste campo de coleta de dados são as empresas de psicologia política. Seus consultores realizam pesquisas para obter dados sobre os eleitores e desenvolver perfis psicológicos. Seus serviços incluem desde a coleta de dados a partir de simples levantamentos sobre as intenções de votos até a realização de pesquisas sobre opiniões e crenças.

As próprias campanhas eleitorais e as empresas de marketing baseado em dados que oferecem um serviço completo normalmente contratam empresas de psicologia política para realizar pesquisas de apoio (“background research”) que ajudam a criar perfis para o direcionamento de mensagens aos eleitores. Essas empresas são, até o momento, as de que menos se exige prestar contas.

2. Segmentação e identificação dos eleitores

Os dados demográficos, os perfis psicológicos e outras informações obtidas durante a fase de coleta de dados são combinados e utilizados para segmentar públicos – ou seja, para agrupar os eleitores em conjuntos menores. A informação acumulada durante a fase de coleta se guarda na mesma base de dados usada para administrar as listas de eleitores adquiridas na primeira fase do processo, ou em um software distinto.

Sempre que possível, os pacotes de dados são consolidados para gerar perfis pessoais mais completos. Alguns programas incluem visualizações de mapas, gráficos ou ferramentas de campanha para aproveitar os dados dos eleitores, como se pôde ver na ocasião da exitosa campanha eleitoral de Emmanuel Macron, que utilizou os serviços da empresa francesa Liegey Muller Pons.4

Devido à complexidade do marketing político baseado em dados, existe uma necessidade cada vez maior de que as empresas integrem todas as etapas do processo em uma solução completa para oferecer às campanhas, aos partidos ou aos candidatos. Esse é o papel de empresas como Cambridge Analytica.

O valor principal de sua oferta é a combinação de vários pacotes de dados da primeira fase do processo com as técnicas de difusão da última etapa. E isso se consegue por meio de um conjunto de elementos: pessoal próprio, ferramentas internas, software criado por outras empresas, dados adquiridos e a associação com outras organizações. As empresas de marketing político que oferecem o serviço completo vão desde pequenas companhias que prestam seus serviços a campanhas locais até grandes empresas internacionais que trabalham em várias campanhas de alto nível a cada ano.

As empresas internacionais geralmente trabalham associando-se a empreendimentos nacionais para conseguir proximidade com o contexto local, ou como forma de ocultar sua participação na campanha eleitoral. As companhias de marketing político que oferecem um “pacote completo” de soluções apresentam uma ampla gama de combinações de serviços.

Algumas dessas empresas seguem com rigor todas as regulações eleitorais e de uso de dados vigentes, criam anúncios identificados como tais, utilizam-se de técnicas de propaganda positiva e operam de maneira transparente sob seu próprio nome. Outras fazem um mau uso dos dados, de técnicas dissimuladas para manipular opiniões, criam anúncios que exploram os medos das pessoas, se envolvem em práticas duvidosas como chantagem e recorrem a empresas de fachada para ocultar sua participação nas campanhas eleitorais.

As fontes de dados e as técnicas de publicidade que utilizam umas e outras são determinadas pelo contexto local, a experiência, as associações e os distintos padrões éticos em relação à proteção de dados. As empresas de serviços não completos também podem se situar em qualquer ponto do espectro ético.

A criação de perfis completos dos eleitores permite aos responsáveis das campanhas dividi-los em segmentos de público mais concretos e detalhados de modo que possam ser objeto de mensagens específicas. Depois de identificar esses segmentos de público, criam conteúdos que se ajustam às opiniões e preocupações de cada subgrupo. Uma das técnicas em que se destacam as empresas de serviços completos é a de microtargeting, que requer combinar dados de muitas fontes com uma variedade de mecanismos de difusão das mensagens.

Na etapa de evolução das técnicas de marketing político em que nos encontramos, as autoridades eleitorais e de proteção de dados em grande medida se destacam por sua ausência. Não dispõem ainda de recursos e capacidades necessários para fiscalizar e avaliar os conteúdos e as práticas dos provedores de dados nas campanhas eleitorais.

Nenhum país desenvolveu ainda a legislação nem tampouco programas de formação necessários para poder implementar este nível de avaliação e garantir o cumprimento das normas.

Isso quer dizer que as eleições ficam expostas a perigosas manipulações de opiniões, distorcendo sua imparcialidade. Não parece haver vontade política para abordar as implicações que as campanhas eleitorais baseadas em dados e o modelo de negócios que as impulsiona têm para os direitos humanos.

Etapa final: difusão de mensagens e tentativas de influenciar os eleitores

Depois de identificar os eleitores (os públicos) e segmentá-los, as mensagens e outras formas de persuasão podem difundir-se através de distintos canais para incidir sobre seu voto. Além disso, meios oficiais de propaganda política, as redes sociais comerciais oferecem oportunidades adicionais para enviar mensagens tanto diretamente a partir das contas oficiais das campanhas ou indiretamente por meio de robôs (bots) e trolls.

Embora os anúncios possam ser exibidos em diferentes sites, utilizando por exemplo o Google Ads, os responsáveis pelas campanhas optam geralmente pelas plataformas de redes sociais. As pessoas passam, nelas, enorme quantidade de tempo ao longo do dia, o que faz delas um caminho fácil para se chegar aos eleitores. E ainda que as propagandas nas redes sociais sejam geralmente acompanhadas da sinalização de “conteúdo patrocinado”, um estudo revela que 32% dos usuários não percebem isso e aceitam a publicidade de maneira parecida com a que recebem conteúdos publicados por seus amigos.

As empresas que oferecem assessoria em temas de gestão de conteúdo nas redes sociais proliferam. Elas podem criar conteúdos para diferentes plataformas de redes sociais que se difundem diretamente a partir das contas da campanha do candidato. Em alguns casos, as campanhas podem assumir essa gestão, mas também existem empresas especializadas que oferecem como serviço campanhas tradicionais nas plataformas. Essas empresas podem utilizar também outras técnicas, como anúncios, robôs (bots) e trolls, no âmbito de uma estratégia abrangente de redes sociais.

Há também os anúncios, pagos através de canais oficiais, que se dirigem especificamente a pessoas em função de seu perfil – personalidade, histórico de compras ou de navegação, dados demográficos ou outros atributos. O nível de sofisticação varia: desde anúncios genéricos exibidos a muitas pessoas até mensagens muito específicas exibidas diversas vezes a pessoas que fazem parte de pequenos segmentos de público. Os destinatários também podem ser selecionados em função de sua interação com mensagens anteriores. Esta última fase é a mais preocupante do ponto de vista dos direitos digitais, já que é a que se encontra hoje menos regulada e menos transparente.

No entanto, é também a fase que oferece mais oportunidades para que as autoridades eleitorais realizem reformas que garantam que este tipo de avanço tecnológico não seja utilizado de maneira prejudicial à liberdade de pensamento dos eleitores, ou que se torne uma forma de realizar campanhas que minem o conceito de eleições livres e justas.

É precisamente neste ponto que as autoridades de proteção de dados e as organizações de consumidores poderiam desempenhar um importante papel de monitoramento – por exemplo, garantindo que todos os partidos gozem de igual acesso aos mesmos dados. E garantindo que os dados pessoais coletados para publicidade e marketing não sejam reutilizados com fins políticos.

Esta separação entre usos comerciais e eleitorais de nossos dados é muito importante. É a única forma de se exigir responsabilidades dos partidos políticos por seu investimento em infraestrutura de coleta de dados, obrigando-os a manter-se dentro dos limites legítimos de despesas com campanha política, bem como a demonstrar que seus métodos de compilação de dados foram éticos segundo a legislação de direitos humanos.

Busca-se: uma revisão urgente dos sistemas eleitorais online

A qualidade das eleições nos sistemas democráticos é medida pela imparcialidade e a atenção ao devido processo que garanta a liberdade do pleito eleitoral. Os desenvolvimentos tecnológicos nos contextos online nos obrigam a reexaminar se as salvaguardas atuais são suficientes para garantir o jogo limpo entre aquelas forças políticas que têm acesso às últimas tecnologias e a conjuntos de dados sofisticados para dirigir suas mensagens à população e as que não o têm.

Os níveis atuais de despesas com eleições dos partidos políticos foram fixados sobre a base do tipo de informação e divulgação analógica de tempos anteriores à Internet: outdoors, cartazes e tempo na TV e no rádio. Mas as campanhas eleitorais transformaram-se. Agora os partidos políticos estão investindo em ferramentas de campanha que escapam muito mais às prestações de contas, como a infraestrutura de dados e os algoritmos que os permitem direcionar suas mensagens aos eleitores.

As campanhas baseadas em grandes coletas de dados, em softwares sofisticados e em uma combinação de técnicas de publicidade online que utilizam algoritmos estão definindo nos dias de hoje os investimentos feitos pelos partidos políticos em futuras campanhas eleitorais. O que acontecerá com aqueles que não podem realizar tais investimentos? Como as campanhas futuras poderão ser iguais e justas existindo essas desigualdades entre os candidatos quanto ao acesso às bases de dados e aos sistemas de suporte? É alarmante o quão distante estamos de cumprir esses requisitos, considerando o número de países que carecem de leis básicas de privacidade e de proteção de dados.

Os reguladores e os encarregados de garantir que as eleições sigam sendo livres e justas não deram atenção às advertências feitas por Edward Snowden em 2013, quanto ao perigo que representa o uso indevido de dados pessoais para os direitos e liberdades fundamentais das pessoas e para os processos democráticos. Na época, já era preocupante saber como as tecnologias comerciais e os dispositivos utilizados diariamente por um cidadão médio estavam se convertendo em armas de vigilância e de manipulação e em ferramentas, por parte das autoridades e de empresas, para a utilização do que se sabe sobre os usuários de Internet em uma variedade de situações – por exemplo, para espionar missões humanitárias, conseguir uma injusta vantagem estratégica e comercial, infiltrando-se em sistemas informáticos dos concorrentes e de partes contrárias em negociações diplomáticas ou comerciais.

Ver o potencial que essas tecnologias têm para interferir na democracia e testemunhar a forma como alguns dos Estados mais poderosos do mundo as têm utilizado já deveria, então, ter-nos chamado a atenção para o que estava por vir. Mas, além da revisão da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD ou GDPR) europeia,5 o que tais revelações fizeram foi acelerar a regularização de muitas atividades ilegais das agências de espionagem. O escândalo da Cambridge Analytica só serviu para destacar a existência dessa nova realidade difícil de enfrentar: o uso estratégico das tecnologias digitais e em rede para enfraquecer os processos democráticos baseados na devida consulta, deliberação e avaliação.

Nem a Cambridge Analytica é um ator isolado nem as eleições nos Estados Unidos foram uma exceção, mas o caso ajudou a colocar luz sobre a existência de uma próspera indústria muito pouco regulada que, em diferentes etapas das campanhas eleitorais, com ou sem autorização, e geralmente sem fiscalização, utiliza dados públicos para tentar alterar o voto dos eleitores da mesma forma que se utilizam de nossos dados pessoais para vender produtos. A falta de ação já não é uma opção.

Adaptando-nos aos novos desafios: a atualização dos controles democráticos online

Esses acontecimentos trouxeram à tona o evidente conflito de interesses das plataformas comerciais considerando os diferentes papeis que desempenham durante as campanhas eleitorais.

As plataformas de redes sociais e os navegadores se tornaram atores chaves como provedores de dados neste contexto. No entanto, eles ainda precisam desenvolver políticas de transparência adequadas e melhores práticas responsáveis para demonstrar sua imparcialidade nas disputas eleitorais. Atualmente é impossível fazer auditorias nelas com base nos marcos regulatórios globais vigentes. E essas plataformas, além disso, mantêm o segredo como vantagem comercial.

Mas considerando-se o papel que desempenham hoje nas campanhas eleitorais, devem-se estabelecer exceções a suas práticas comerciais – por exemplo, regras para impedir que as plataformas “atraiam os votantes” de forma ativa, ou que ofereçam informação sobre em quem devem votar:

  • Sua função como provedores de dados entra em conflito não somente com a participação “cívica”, mas também com seu crescente papel na organização de debates online ou como “pontos de informação” para os eleitores. Dito de outro modo, as plataformas comerciais não devem extrapolar seu papel de provedores de propaganda política regulados.

  • Por essa razão, a transparência do algoritmo é também um elemento chave para garantir que não se dê, em um dado momento, uma vantagem injusta a algum candidato durante uma campanha eleitoral em função da quantidade de dados personalizados e específicos que o candidato em questão pode comprar.

  • Deve-se também obrigar as equipes de campanha a divulgar os tipos de dados que utilizam, a origem de tais dados e o seu projeto de utilização deles. Uma parceria entre associações de consumidores, autoridades de proteção de dados e eleitorais poderia supervisionar também o uso de dados pessoais compilados com fins comerciais para manter as bases de dados separadas e aferidas.

O problema hoje em dia é que, no lugar de se estabelecer limites, tanto as autoridades eleitorais como o público em geral estão pedindo que as empresas de redes sociais façam mais coisas – por exemplo, adotar medidas para abordar o tema da violência política, o assédio virtual (cyberbullying) ou para impedir a interferência de atores estrangeiros nas campanhas eleitorais. No contexto atual, essas demandas contraditórias conduzem a conflitos de interesse cada vez mais complexos.

Isso coloca a questão de se é possível que as plataformas comerciais se associem a organizações de direitos humanos e organismos de controle eleitoral, assim como a autoridades policiais, para responder rapidamente a possíveis sequestros de espaços eleitorais durante as campanhas com o objetivo de intimidar ou manipular os eleitores. E se isso for possível, como poderia funcionar essa parceria considerando que as plataformas comerciais não querem divulgar suas técnicas?

  • As mudanças nas legislações, entre elas o requisito para que os operadores comerciais abram sua “caixa-preta”, levarão tempo e precisarão de vontade política para avançar. Mas uma resposta imediata poderia ser as plataformas abrirem voluntariamente suas bases de dados a pesquisadores independentes interessados em estudar os processos eleitorais. Atualmente, o preço e a disponibilidade de dados estão fora do alcance de pesquisadores e auditores independentes.

  • Os governos devem ter também capacidade de adaptação e agilidade para enfrentar os desafios colocados pelas inovações tecnológicas aplicadas às campanhas eleitorais. Existem novas ameaças e novos repertórios de técnicas, inclusive de “truques”, que podem ser acessados pelos responsáveis das campanhas. Isso requer um monitoramento amplo, do qual poderiam participar ativistas digitais. A sociedade civil, os organismos de controle eleitoral e as missões de observação podem sem dúvida desempenhar um papel crucial em preservar a democracia na era digital mediante a atualização e adaptação de seus mecanismos e sistemas de supervisão. O que implica a necessidade de se contar com voluntários e funcionários formados em direitos humanos, além de especialistas em tecnologia.

  • A melhoria da transparência e da prestação de contas das campanhas em ambientes digitais e em rede poderia incluir a solicitação de uma lista de todos os provedores, produtos e serviços utilizados nas campanhas baseadas em dados (não somente de nível superior contratados pela campanha, como também a lista dos sistemas de onde os dados foram retirados e quem contratou tais provedores).

  • Também deveriam ser a norma a realização de auditorias completas e a divulgação dos detalhes das infraestruturas de dados usadas pelos partidos. Isso implica melhorar a forma de levar a contabilidade das despesas políticas com a gestão de dados, bases de dados e a gama de técnicas de segmentação à disposição das equipes de campanha.

  • Os requisitos de privacidade digital e online e o papel que podem desempenhar as autoridades de proteção de dados são também chave para preservar a liberdade dos eleitores na hora de decidir seu voto, sem manipulações indesejadas através das redes sociais de que são usuários, de seus aparelhos de telefonia móvel ou de seus amigos e familiares. O monitoramento do uso das bases de dados utilizadas pelos partidos nas campanhas é crucial para se conseguir zelar por essa liberdade.

As organizações da sociedade civil estão começando a realizar campanhas de crowdsourcing (colaboração aberta e distribuída) para implementar tarefas de monitoramento da propaganda política e poder, assim, identificar ao menos os que violam as regulações eleitorais vigentes. Mas poderiam ir mais longe:

  • Criando consciência entre os eleitores acerca da necessidade de monitorar a forma como se enquadram as mensagens para dirigi-las a diferentes grupos demográficos durante as campanhas eleitorais.

  • Desenvolvendo um plano ético: apesar dos aspectos preocupantes das campanhas baseadas em dados até hoje, as técnicas utilizadas poderiam se transformar, com políticas públicas adequadas e a coordenação entre diferentes autoridades, em oportunidades para o uso mais eficaz dos recursos – por exemplo, para potencializar a participação política através do tipo de divulgação facilitadas por elas. Por outro lado, as campanhas baseadas em meios digitais podem terminar sendo mais baratas que as convencionais para partidos políticos pequenos e candidatos independentes, desde que tenham habilidades e capacitação adequadas. E os robôs podem ser planejados não para tirar do prumo os processos eleitorais democráticos, mas para fazer chegar informação a populações absenteístas e animá-las a conhecer seus direitos e a votar. As autoridades eleitorais poderiam promover projetos deste tipo com fins cívicos em vez de comerciais.

  • Criando outro tipo de medida, que poderia ser a proibição, por parte das autoridades eleitorais, do intercâmbio de inteligência de marketing e de perfis de consumidores com os partidos políticos, para evitar formas ocultas de manipulação do comportamento eleitoral através da exploração das pegadas digitais dos eleitores.

A chave em todos os âmbitos é a adoção de medidas eficazes e eficientes com suficiente antecipação, sem dar por consolidada a democracia, e reconhecendo-a como um sistema em evolução que deve assegurar constantemente a sua resistência e atualização.

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1 https://transparencytoolkit.org
2 https://pt.wikipedia.org/wiki/Cambridge_Analytica
3 https://pig.gi(link is external)
4 A empresa agora tem o nome de Explain – https://explain.fr
5 https://eugdpr.org