Ética jornalística, novas mídias e eleições no Brasil
Rogério Christofoletti, Professor do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e um dos coordenadores do Observatório da Ética Jornalística - objETHOS1
Data da publicação: dezembro 2010
O jornalismo é uma atividade permeada de situações-limite, de momentos de tensão e pressão permanentes. Tanto em coberturas de risco real quanto em circunstâncias cotidianas, os profissionais das redações são provocados a atuar em condições adversas: o tempo sempre é curto para apurar as informações, alguém se nega a fornecer dados, as versões são contraditórias, não convincentes ou de difícil acesso. Frequentemente, o acontecimento pode ser complexo o que pode demandar uma tradução clara e precisa; e somem-se a esse cenário a concorrência entre os jornalistas, a exigência e a ansiedade do público por informações com agilidade e credibilidade.
Não é fácil ser jornalista e fazer bom jornalismo nos tempos atuais. Na verdade, nunca foi, mas há períodos em que este exercício se torna ao mesmo tempo mais complicado e necessário. É assim em anos de eleição. À exceção de coberturas de guerra e de catástrofes, esses são tempos em que os profissionais da informação são mais exigidos e colocados à prova. Não só seus empregos e reputações estão em jogo como o próprio papel do jornalismo nas sociedades contemporâneas é questionado e avaliado. Afinal, o eleitor tende a depositar bastante confiança nos meios de comunicação para fortalecer seus pontos de vista e tomar decisões.
Historicamente, o jornalismo foi se desenvolvendo à luz da tecnologia, do capitalismo e da democracia. Os avanços técnicos permitiram que a busca da informação ganhasse velocidade, ampliasse o seu alcance e se fortalecesse. Equipamentos e sistemas possibilitaram que os sentidos humanos se alargassem. A expansão capitalista ajudou a moldar um modelo de negócio próprio para o jornalismo, transformando a notícia numa mercadoria e os veículos em difusores de produtos voltados a diversos públicos. O advento da democracia levou o jornalismo a buscar justificativas sociais para sua inserção junto aos públicos. Era necessário um papel social para esta atividade em definição. Um dos caminhos adotados foi considerar o jornalismo uma prática não apenas de registro dos acontecimentos, mas também de fiscalização dos poderes constituídos. O jornalismo passa a reivindicar para si a função de Quarto Poder, investigando o que alguns setores insistem em deixar oculto, denunciando abusos e prejuízos ao bem comum, e orientando-se pelo que convencionou chamar de interesse público. O cidadão passa a delegar aos veículos de informação a tarefa de atualizar diariamente os conhecimentos comuns da realidade. O jornalismo ganha, assim, novas utilidades e importâncias para a vida social.
Estas dimensões moldaram o jornalismo como o conhecemos hoje: é uma atividade técnica, sustentável comercialmente e com uma finalidade pública. Daí porque o público espere tanto dos jornalistas em tempos de eleição.
TOMADAS DE DECISÃO
O eleitor paralisa em frente à urna eletrônica. Pensa um instante, aperta as teclas correspondentes e segue sua vida. Decidir pela melhor proposta, por uma visão de futuro mais nítida não é tarefa fácil, e os meios de comunicação influenciam nesses processos. As informações que os veículos fornecem subsidiam a tomada de decisão. É claro que o eleitor não se baseia só nesses dados para fazer sua escolha, mas também não decide sem um mínimo de informação. Como grande parte de nosso sentido de realidade nos vem pela mídia, é natural que haja uma influência considerável dessas vias para o processo eletivo.
É natural também que o cotidiano jornalístico fique bastante tumultuado durante as disputas eleitorais. É um clichê comparar campanhas com batalhas, e já se disse também que, numa guerra, a primeira vítima é a verdade. Durante as coberturas de eleições, chegam às redações dossiês contra candidatos, boatos comprometedores, versões contraditórias, informação estratégica e contrainformação desnorteadora. Assim como o eleitor, o jornalista também se vê a todo momento instado a decidir, a optar por caminhos, a escolher como proceder: “Devo ir atrás daquele boato sobre o candidato?”; “Se a disputa eleitoral é desigual, como tratar com equilíbrio os concorrentes?”; “Que importância pode-se dar a denúncias feitas por rivais de campanha?”; “Podemos confiar em pesquisas de intenção de votos encomendadas por partidos?”; “É possível evitar que a mídia intensifique as baixarias de uma campanha suja?”... Os questionamentos são muitos, e os desafios são incontornáveis para a imprensa. Ainda mais num cenário como o atual, onde o jornalismo já não desfruta do privilégio de ser fonte exclusiva de informações.
Desde meados da década de 1990, com o surgimento da galáxia da internet2, os processos de comunicabilidade e sociabilidade vem sofrendo profundas transformações. O mundo tornou-se menor, as fronteiras diluíram-se, o tempo ficou mais curto, a ânsia por informações atuais e confiáveis aumentou, e os atores da equação comunicativa passaram a ter outros pesos. A internet tem permitido uma quase universalização de informações, a descentralização dos bancos de dados, a facilitação do acesso a saberes antes restritos. Mas tem possibilitado também superexposição, cacofonia informativa, disseminação desenfreada de inverdades, atentados à privacidade e à honra de pessoas e à reputação de organizações, violações de direitos, cibercrimes, entre outros riscos. Com as redes telemáticas, velhas formas associativistas foram retomadas, grupos antes dispersos puderam se estruturar e ganhar novos contornos, minorias amplificaram sua voz. Veio à tona a democratização de conteúdos, o ciberativismo e novas discussões em torno da propriedade intelectual, dos regimes de autoria e das próprias identidades no mundo virtual. As transformações contagiam a educação, a comunicação, a política, a cultura e a economia. Definem novos limites; debatem regras de convívio e litígio.
O capítulo mais recente e ruidoso dessa sequência de mudanças teve início nesta década e envolve as redes sociais na internet. Blogs, sites de relacionamento, microblogs e portais de compartilhamento de conteúdos ameaçam o protagonismo dos jornalistas no negócio de produzir e transmitir informações. Em episódios trágicos, como o Furacão Katrina nos Estados Unidos em 2005 ou nas enchentes em Santa Catarina em 2008, Orkut, Facebook, blogs e Twitter permitiram a ligação mais rápida e efetiva entre as vítimas, equipes de socorro, órgãos de governo e públicos ávidos por informação. Os meios de comunicação convencional, quando não atuaram como coadjuvantes, aderiram às mídias sociais para ganhar agilidade e ampliar seu alcance.
Cada vez mais poderosas3, essas redes sociais são hipertrofiadas por três influentes conceitos: mobilidade, convergência e multimidialidade. A chegada aos mercados consumidores de dispositivos de telefonia móvel cada vez mais baratos, com recursos diversos e com a possibilidade de auxiliarem na produção de conteúdo digital compartilhável causa tremores nas redações dos meios de comunicação tradicional. Afinal, o adolescente anônimo pode captar imagens com seu celular e dividi-lo com outros desconhecidos gratuitamente. Pode, inclusive, fazê-lo mais rapidamente que o jornal de sua comunidade, muitas vezes mimetizando as mesmas regras da gramática jornalística e atendendo ao mesmo interesse público no qual o jornalismo se apoiou décadas atrás.4
O “furo” jornalístico ganha novas nuances. Ganha importância num terreno onde a velocidade é um ativo essencial para os meios informativos. Perde a importância num cenário onde a informação é tão massivamente disponibilizada que ninguém consome tudo, e a dispersão corrói parte da exclusividade.
CONDUTA E ATITUDE
Mas os casos mais trágicos não são os únicos onde as redes sociais exibem sua força. Na política, a internet tem se mostrado uma influente arena. Não só na expressão e manifestação de posicionamentos ou no combate do pensamento contrário, mas também no campo da informação e contrainformação. São ainda dignos de citação a apropriação e uso desses recursos durante a campanha de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos em 2008. Não apenas para disseminar mensagens de apoio, conquistar novos votos e atrair recursos para a campanha. Mas também numa estratégia muito bem sucedida de ocupação de um terreno ainda não demarcado, mas muito receptivo.5
No Brasil, muitas expectativas foram alimentadas em torno da internet para o pleito de 2010, mas o que se percebeu foi frustrante para muitos analistas. Os partidos não conseguiram encontrar o caminho das pedras para arrecadar fundos por meio de seus sites, e de uma forma geral as coligações usaram apenas parte do potencial aglutinador das redes sociais. A primeira deficiência se deve tanto ao débil sistema de financiamento das campanhas – muito focado nas doações de grande monta e de pessoas jurídicas – quanto à inexistência de um modelo que tenha se mostrado atraente para os pequenos doadores. Assim, ao menos desta vez, a internet não foi uma porta de entrada de dinheiro para as campanhas.
Na disputa pela presidência da república, as coligações mais fortes montaram estratégias específicas para as redes sociais, contratando gestores exclusivos para esse fim. Junto a eles, “exércitos virtuais” se ocuparam mais de espalhar mentiras e rumores contra os adversários, ajudando a aumentar a temperatura na campanha.6 Eleitores e jornalistas se viram cercados de fofocas, calúnias e histórias desencontradas. No Twitter, contas falsas – os chamados fakes – promoviam debates acalorados e intensificavam esforços para colocar seus candidatos no topo dos assuntos mais falados, os Trending Topics. Isto é, contrainformação, formação de opinião, ocupação de espaço virtual e estratégias de marketing de guerrilha.Em paralelo, milhões de eleitores testemunharam avalanchas de emails difamatórios, denúncias ocas e piadas em suas caixas postais eletrônicas. Nos campos de comentários de blogs e sites, a gritaria acontecia conforme o humor e o bom senso dos moderadores. E em diversos momentos da campanha, os meios tradicionais de informação se viram enredados em discussões infrutíferas (catalisadas tanto pelos candidatos quanto por frouxidão das redações) e em escândalos de cores variadas (alguns procedentes e preocupantes, outros nem tanto).7 Isto é, na maior parte do tempo, o jornalismo ficou atordoado com a enxurrada de informações, muitas das quais não foram suficientemente checadas, e se deixou pautar por interesses não necessariamente públicos ou coletivos. A campanha ficou mais suja. O Twitter ajudou a destilar ódio, xenofobia e intolerância. Os sites de relacionamento ajudaram a cristalizar grupos antagônicos, intensificados ainda mais pela própria natureza de um segundo turno polarizador.
É claro que não se trata de satanizar as redes sociais ou suas apropriações pelos partidos. A montagem de arsenais e o uso das munições numa disputa que muito se assemelha a uma guerra é legítimo e esperado. Questiona-se a forma como os meios de comunicação e o jornalismo se orientam em períodos estratégicos como este; de que maneira se valem das redes sociais para apurar informações, ampliar episódios, incentivar a participação e colaboração dos públicos. Em outras palavras, é preocupante a forma como a mídia tradicional ainda pode sofrer reveses em coberturas de longo esforço como as eleitorais nas esferas técnica e ética. Seja pela ausência de parâmetros bem definidos de qualidade na produção de informação, seja pela dispersão e imprecisão de valores deontológicos que norteiam suas práticas.
Já se disse aqui que campanhas eleitorais demandam muito preparo técnico dos jornalistas, mas não se pode esquecer que é fundamental também que esses profissionais e as organizações que compõem estejam bem ancorados em princípios éticos nítidos. A internet reapresenta velhos dilemas e novos desafios para o jornalismo. É necessário que a conduta de repórteres e editores se escore na permanente reflexão sobre os fundamentos desta prática que se convencionou classificar de finalidade pública. É preciso ainda que a ousadia e a coragem, mas também a responsabilidade e a consciência balizem as atitudes de jornalistas e veículos de informação.
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1. Ver http://objethos.wordpress.com
2. Em setembro de 2010, a Internet World Stats estimava uma população de 1,96 bilhão de usuários online no planeta.
3. Uma medida disso é o Facebook que, em julho de 2010, chegou à marca de meio bilhão de usuários no planeta. Outro exemplo é o Twitter que registrou crescimento de 1400% entre 2008 e 2009.
4. Alimento uma hipótese de que uma ética hacker estaria contagiando o jornalismo convencional paulatinamente de forma a promover algumas mudanças de referenciais éticos. Para mais detalhes, ver Christofoletti (2008)
5. Gomes et all (2009) detalham este processo inovador e paradigmático.
6. Para mais detalhes, ver ARANHA, Ana e FERREIRA, Victor (2010).
7. Para uma discussão bem fundamentada, atual e ampla do tema escândalo, ver Thompson (2002).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
• ARANHA, Ana; FERREIRA, Victor. O lado B da rede na eleição. Época, nº 648, de 18 de outubro de 2010
• CHRISTOFOLETTI, Rogério. Ética no Jornalismo. São Paulo: Ed. Contexto, 2008
• GOMES, Wilson; FERNANDES, Breno; REIS, Lucas; SILVA, Tarcízio. “Politics 2.0” - A campanha online de Barack Obama em 2008. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e Política”, do XVIII Encontro da Compós, na PUC-MG, Belo Horizonte, MG, em junho de 2009.
• THOMPSON, John B. O escândalo político: poder e visibilidade na era da mídia. Petrópolis: Vozes, 2002