A agenda de comércio digital: interesses, regras e as posições do Brasil
Lucas da Silva Tasquetto, professor do bacharelado e do programa de pós-graduação em relações internacionais da Universidade Federal do ABC.
Data da publicação: setembro 2022
A digitalização da economia e o crescente papel do comércio digital nos fluxos globais de bens e serviços conduziram a pressões sobre reguladores e formuladores de políticas para o desenvolvimento de arcabouços legais específicos. Assim, por meio de conceitos e da linguagem técnica do comércio internacional, o regime de comércio avança sobre questões de governança da Internet, proteção de dados pessoais e privacidade, direitos do consumidor e cibersegurança – são temas tradicionalmente tratados em outros regimes, em um contexto distinto de negociações, e que apresentam políticas de interesse público passíveis de serem lidas como barreiras ao comércio internacional a partir de sua inclusão em acordos comerciais.
Rapidamente, as negociações sobre o assunto aumentaram em número e em complexidade. A regulação do comércio digital possui uma natureza estrutural, com aplicação a diferentes formas de regulação de dados e implicações para outras áreas, como telecomunicações e propriedade intelectual. Na interface entre economia digital e questões de política digital, os capítulos de comércio digital em acordos internacionais de comércio passaram a incluir dispositivos, entre outros, sobre livre fluxo de dados, localização de servidores, acesso a código fonte e algoritmos, proteção do consumidor online e privacidade, spam, neutralidade da rede, assinaturas e autenticação eletrônicas, e direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas. Ao se apropriarem de outros campos regulatórios, os acordos de comércio colocam-se no papel de potencialmente construírem uma concepção particular de regulação de dados.
Como definir comércio digital?
O comércio digital ainda é um termo muito vagamente definido e as implicações das regras do comércio digital igualmente não são bem compreendidas. Para começar, não há uma definição de consenso para “comércio eletrônico” ou “comércio digital”. Ambas as expressões são frequentemente usadas de forma intercambiável, ainda que a adoção de “comércio digital” busque evitar parte da confusão causada pelo uso coloquial de “comércio eletrônico” para compras online.1 O conceito remonta à definição de comércio eletrônico dada pelo Programa de Trabalho sobre Comércio Eletrônico da Organização Mundial do Comércio (OMC), de 1998. Segundo este, o comércio eletrônico envolveria a “produção, distribuição, comercialização, venda ou fornecimento de bens e serviços por meios eletrônicos”2. Já o comércio digital extrapola a noção de comércio eletrônico e abarca também novos serviços baseados em dados, enquanto para a UNCTAD3 o mais adequado seria referir-se a esse fenômeno como comércio na economia digital em vez de comércio digital.
Para fins desse relatório, apesar da diferença conceitual, como a OMC e muitos acordos de livre comércio ainda utilizam o termo comércio eletrônico, este será usado por vezes como sinônimo de comércio digital quando em referência a documentos que façam uso expresso desta terminologia. De todo o modo, é fundamental compreender o amplo alcance das regras que vêm sendo negociadas sobre a arquitetura da economia digital. Muito além do corriqueiro comércio eletrônico em marketplaces, essas regras incidem sobre o fluxo transfronteiriço de dados e seu papel em tecnologias ainda em desenvolvimento, potencialmente restringindo a capacidade dos países de regularem essas novas fronteiras tecnológicas.
Em quais instâncias as negociações sobre comércio digital têm se desenvolvido?
Mesmo que o tema remonte ao Programa de Trabalho sobre Comércio Eletrônico da OMC (WPEC), de 1998, não há ainda um sistema de regras universal ou mesmo plurilateral para governar os fluxos transfronteiriços de dados. A organização conta com diversos acordos que abrangem questões que afetam dados e o comércio digital, como o Acordo Geral Sobre o Comércio de Serviços (GATS), o Acordo Sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS) e o Acordo Sobre Tecnologia da Informação (ITA).
O GATS possui capítulos sobre serviços financeiros, telecomunicações e serviços computacionais, mas antecede à Internet como a conhecemos hoje e não trata explicitamente de fluxos transfronteiriços de dados. No entanto, muitos têm interpretado o acordo como aplicável a vários serviços computacionais e de telecomunicação, sob o argumento de que o GATS é tecnicamente neutro, no sentido de que foi redigido para tratar de tecnologias que poderiam mudar ao longo do tempo.4 Contudo, de concreto, ao longo dos anos, renovou-se a cada Conferência Ministerial a moratória sobre a cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas.
O comércio eletrônico volta ao centro das negociações na OMC em 2016, no contexto da preparação para a 11ª Conferência Ministerial (MC11), em Buenos Aires. Em dezembro de 2017, ao final da MC11, 71 membros da organização, incluindo o Brasil, foram signatários de uma Declaração Conjunta sobre Comércio Eletrônico, voltada ao início de trabalhos exploratórios para futuras negociações da OMC sobre os aspectos relacionados ao tema. Ausente nesse primeiro documento, o mandato negocial para novas regras iria aparecer em uma segunda declaração, de janeiro de 2019, durante o encontro anual do Fórum Econômico Mundial, em Davos. Por meio de uma iniciativa plurilateral, os signatários deram início às negociações na OMC sobre comércio eletrônico. Enquanto o WPEC e a declaração conjunta de 2017 mantinham o caráter exploratório e informativo, a WTO Joint Statement Initiative (JSI) on E-commerce envolve um subconjunto de membros da OMC e visa alcançar um resultado negocial ambicioso. Entre os 86 membros que vêm participando da JSI, algumas regiões continuam notavelmente sub-representadas, caso da África, com seis participantes, e do Caribe, ausente das negociações.
As regras sobre comércio digital que vêm sendo negociadas na OMC se desenvolveram a partir dos acordos regionais de comércio. Dos 354 acordos assinados entre 2000 e 2021, 185 contêm provisões relevantes para a área.5 A posição de um país sobre regulação da Internet e de dados em acordos de comércio é geralmente influenciada por sua abordagem regulatória doméstica. Os Estados Unidos historicamente procuram consolidar sua posição de liderança na economia digital. Defensores de um mercado digital aberto, para garantir e aumentar os ganhos de escala de suas empresas, têm hoje uma proposta extensiva a partir do modelo da Parceria Transpacífica (TPP, agora CPTPP)6, aprofundado no Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA).
A União Europeia (UE) compartilha parte significativa da agenda dos Estados Unidos, em torno de princípios de livre mercado, mas busca conciliá-la com preocupações de resguardar sua regulação doméstica e o direito de regular, principalmente no que diz respeito à proteção de dados pessoais e direitos de privacidade, a partir do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR).
Por sua vez, a China compete com os EUA pela liderança na economia digital e aproveita as vantagens do seu enorme mercado interno e do elevado volume de dados que este gera. Busca garantir uma política industrial digital ativa com segurança nacional e ordem interna. Tradicionalmente para os chineses, isso tem se traduzido em um foco nos acordos de comércio em aspectos relacionados à facilitação de comércio eletrônico, aos pagamentos eletrônicos, e ao destaque a questões de desenvolvimento e do hiato digital. A força política e econômica dos Estados Unidos, da UE e da China faz com que os demais países majoritariamente orbitem e façam escolhas ao redor dessas três abordagens regulatórias principais ao comércio eletrônico.
Quais os interesses e os atores envolvidos na gênese da agenda de comércio digital?
A demanda por regras de comércio digital corresponde ao momento da ascensão econômica das grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos e o processo que as levou a se tornarem atores políticos importantes em Washington. O aumento vertiginoso do lobby do Vale Silício envolveu pressões coordenadas para que questões de comércio digital passassem a ser resolvidas por meio de acordos internacionais de comércio. Documentos de posição e relatórios do setor advogaram constantemente pelo tratamento conjunto das políticas de Internet e do comércio digital7, bem como pela centralidade da eliminação de barreiras ao comércio digital na agenda de comércio estadunidense.8 Assim, representativa do conjunto de demandas do seu setor tecnológico privado, a agenda de comércio digital é conduzida pelo Escritório do Representante de Comércio dos Estados Unidos (USTR) e expressa em um documento chamado de Digital2Dozen9 como o caminho a se perseguir para a economia digital global.
No que diz respeito ao setor privado brasileiro, a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e de Tecnologias Digitais (Brasscom) subscreveu uma petição ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil e ao Representante de Comércio dos EUA solicitando que ambos os países garantissem compromissos específicos de comércio digital, incluindo aqueles relacionados ao livre fluxo de dados, à proibição de exigências de localização, à proibição da cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas, à vedação de exigências para divulgar código-fonte, algoritmos e informações proprietárias relacionadas à criptografia, entre outras medidas, todas minimamente abarcadas pelo Digital2Dozen.10
Por sua vez, a Conferência Nacional da Indústria (CNI), em documento preparatório à 12ª Conferência Ministerial da OMC, realizada em junho de 2022, defendeu o avanço do tema na organização, com regras sobre o fluxo transfronteiriço de dados e a moratória permanente sobre a cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas.11 Antes, em 2018, o Mercado Livre, empresa argentina de comércio eletrônico com profunda presença no Brasil, já havia se manifestado pela discussão dos pontos que circulam nos grupos de trabalho da OMC, particularmente pela moratória e pelo desenvolvimento de um sistema que atestasse a confiabilidade das transações internacionais.12
Quais as principais regras do regime de comércio internacional?
Os acordos internacionais de comércio mais recentes têm representado um espaço privilegiado para a criação de regras vinculantes em diferentes âmbitos. Cada vez mais cobrem um espectro ampliado de temas, que extrapolam as questões comerciais tradicionais e restringem o desenho de políticas públicas e regulações nas jurisdições internas. A dinâmica de mudança de regimes (regime shifting) tem sido mobilizada pelos países desenvolvidos para incluir novas áreas da economia no regime de comércio, de forma a reconfigurar regimes de acordo com seus interesses e superar obstáculos, normalmente vinculados a resistências por parte de países em desenvolvimento.13
No âmbito das relações internacionais, em comparação com outros regimes internacionais, o regime de comércio apresenta maior capacidade de coercibilidade, com o potencial uso de retaliações econômicas para garantir o cumprimento de suas regras e compromissos. Isso em decorrência de robustos mecanismos de solução de controvérsias previstos nos instrumentos internacionais. Além do mais, traz a possibilidade de escolha de caminhos diferentes, com os acordos preferenciais e regionais de comércio como alternativas adotadas para avançar em negociações difíceis de serem concluídas inicialmente no âmbito multilateral. Igualmente fundamental, o procedimento de formulação de políticas comerciais é diametralmente oposto ao tipo de processo aberto de múltiplas partes interessadas em que a comunidade global da Internet está acostumada a se engajar em torno de questões relacionadas a direitos digitais.14 As negociações comerciais tendem a se dar em segredo e possuir maior abertura aos interesses comerciais privados.
Assim, a maneira mais fácil de entender o que são as regras sobre comércio digital é olhar para o conteúdo do CPTPP, que rapidamente se tornou o modelo para outras negociações sobre a economia digital. Dirigido inicialmente a conter a ascensão comercial e tecnológica da China, o acordo transcreveu em seu capítulo sobre comércio digital as regras propostas por meio do Digital2Dozen. Nesse sentido, foi pioneiro em reunir em sua estrutura as regras que se tornaram a base para regular a economia digital, de forma a manter e reforçar o status quo no setor de tecnologia.15 A partir dessa estrutura, novas proteções legais para as grandes plataformas online são inseridas em negociações subsequentes, ampliando globalmente um quadro jurídico mais favorável a esses atores.
O conjunto de regras de comércio digital do CPTPP pode ser categorizado de diferentes maneiras. Streinz o classifica em seis eixos: i) aplicação e adaptação de conceitos estabelecidos de comércio internacional e direito dos investimentos à economia digital; ii) incentivo aos estados a aproveitarem as tecnologias digitais para facilitar o comércio e a administração alfandegária; iii) expansão e reequilíbrio das proteções dos direitos de propriedade intelectual; iv) criação de regras para facilitar o comércio eletrônico transfronteiriço; v) disciplina do envolvimento dos estados na economia digital; e vi) abordagem de uma série de questões de direitos e políticas da Internet, sobretudo aquelas relacionadas a questões de governança de dados.16 Entre as principais e mais sujeitas à discussão sob a perspectiva dos direitos digitais e do espaço para políticas industrias digitais estão a garantia do livre fluxo transfronteiriço de dados, a proibição de localização de servidores, as restrições de acesso ao código-fonte e algoritmos, e a proibição à cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas.
Dispositivo mais importante sob a perspectiva das grandes empresas de tecnologia, a regra sobre o fluxo transfronteiriço de dados garante a liberalização dos fluxos de dados e estabelece limites à interferência das regras internas sobre os compromissos comerciais assumidos. Envolve, assim, o direito irrestrito de coletar, armazenar, transferir, processar, usar, vender e explorar dados em qualquer jurisdição. Conta com a previsão de uma exceção para medidas voltadas a “objetivos legítimos de política pública”, desde que essas não sejam aplicadas de maneira a constituir um meio de discriminação arbitrário ou injustificável, ou uma restrição encoberta ao comércio.
Interpretados sob a linguagem do comércio internacional, padrões regulatórios e de proteção da privacidade mais amplos potencialmente não passariam no teste imposto pela exceção prevista no dispositivo, ainda mais restritivo sob a forma de teste de necessidade em acordos subsequentes. Por exemplo, segundo Yakoleva, sob o direito internacional do comércio, as decisões de adequação da UE podem incorrer em discriminação, violando as obrigações de tratamento nacional e o princípio da nação mais favorecida, passíveis, assim, de contestação no sistema de solução de controvérsias da OMC ou de outros arranjos de comércio.17
Central também no conjunto de regras mais liberais sobre o tema, a proibição de localização de servidores busca evitar exigências de localização de instalações informáticas, descritas como barreiras ao comércio digital. Entre as várias formas de localização de dados estão medidas que não permitem a transferência de dados para fora das fronteiras nacionais; medidas que permitem transferências transfronteiriças, mas exigem uma cópia para ser mantida internamente; exigências de consenso dos provedores de dados antes de dados pessoais serem transferidos para o exterior; e exigências de que empresas prestadoras de serviços de fora do país tenham presença local no país.
É prevista, sob idênticas condições, a mesma exceção do dispositivo sobre livre circulação de dados. Contudo, nas negociações em torno do USMCA, acordo que substituiu o NAFTA, a exceção foi retirada do dispositivo sobre localização de servidores, significando a proibição absoluta de exigências de localização.
As restrições de acesso ao código-fonte e algoritmos estabelecem o compromisso de não exigir que as empresas forneçam o código-fonte como condição de entrada no mercado e para permitir o uso de todos os dispositivos na Internet. Tal medida coloca em questão o direito de um estado de regular contra vulnerabilidades de segurança, por exemplo, decorrentes de software malicioso.18 A proteção de segredo comercial atua também como uma barreira à informação e, assim, pode criar profundas dificuldades para expor preconceitos raciais ou de gênero em testes psicométricos ou sentenças, caracterizar imigrantes como terroristas, expor práticas anticompetitivas ou fraudulentas, verificar a vulnerabilidade de produtos inteligentes, entre outras práticas que afetam questões de direitos humanos e justiça social.19 O USMCA estendeu a proibição de acesso ao código-fonte também para algoritmos.
Por fim, tem-se a proibição à cobrança de direitos aduaneiros sobre transmissões eletrônicas. O comércio online de produtos digitalizáveis é denominado como transmissão eletrônica, o que envolve a distribuição online, por exemplo, de músicas, livros eletrônicos, filmes, softwares e jogos. O CPTPP define uma transmissão eletrônica como “uma transmissão feita usando qualquer meio eletromagnético, inclusive por meios fotônicos”, e proíbe a cobrança de direitos aduaneiros sobre “transmissões eletrônicas, incluindo o conteúdo transmitido eletronicamente.” Na OMC, em especial, não se tem consenso sobre a definição de transmissões eletrônicas. Alguns interpretam o alcance potencial da moratória de forma ampla para incluir a entrega digital de serviços, não apenas de produtos digitalizados.20 Sob uma interpretação extensiva, a proibição da cobrança de direitos aduaneiros se aplicaria a qualquer produto digital, de livros eletrônicos, filmes por streaming até projetos impressos em 3D. Com o desenvolvimento de tecnologias digitais como análise de big data, robótica e impressão 3D, a perda potencial de receita tarifária anual após uma moratória será muito maior para os países em desenvolvimento em comparação com os países desenvolvidos.21
Como o Brasil tem se colocado nas negociações internacionais sobre a economia digital?
O Brasil é um dos países mais engajados nas negociações na OMC. Depois da União Europeia, do Canadá e da Nova Zelândia, coloca-se ao lado de Austrália, Cingapura e Estados Unidos como um dos membros com o maior número de comunicações sobre comércio eletrônico submetidas à organização.22 Além das propostas gerais sobre comércio eletrônico, o país apresentou também propostas de facilitação do comércio eletrônico. Na OMC, desde os trabalhos preparatórios da 11ª Conferência Ministerial de Buenos Aires, em dezembro de 2017, a delegação brasileira apresentou 10 documentos até o momento.23
As mudanças na orientação da política comercial do Brasil, intensificadas após 2016 com o governo de Michel Temer, impactaram o desenho de suas propostas multilaterais e negociações bilaterais sobre comércio digital. Relativamente rápido, o Brasil passou de uma posição defensiva na negociação de novas regras sobre comércio eletrônico para uma postura mais próxima à agenda de comércio digital nos termos daquela posta originalmente pelos Estados Unidos, no modelo CPTPP. Finalmente, em 25 de janeiro de 2019, em paralelo ao Fórum Econômico Mundial, o Brasil se juntou a um grupo de 76 países e assinou a Declaração Conjunta de Davos sobre Comércio Eletrônico (WT/ L/1056), dando início às negociações plurilaterais de comércio eletrônico na OMC.
Ainda que se reafirme a orientação das propostas brasileiras pelo marco jurídico interno, em especial pelo Marco Civil e pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)24, paulatinamente o país foi retirando de suas propostas elementos advindos da legislação doméstica de governança da Internet e de proteção de dados pessoais, bem como as flexibilidades para políticas de desenvolvimento. Tal posicionamento do governo brasileiro se sustenta na percepção de que a linguagem das exceções seria suficiente para salvaguardar os seus interesses não-comerciais, apesar de evidências empíricas contrárias.25
A profunda alteração na postura negocial sobre comércio eletrônico na OMC corresponde também às posições que o Brasil passa a adotar em suas negociações comerciais bilaterais e regionais. Brasil e Chile assinaram, em 21 de novembro de 2018, um acordo bilateral de livre comércio. No campo do comércio eletrônico, com um capítulo específico, o acordo adotou como referência a estrutura e a linguagem do CPTPP. Amesma estratégia foi seguida no Acordo sobre Comércio Eletrônico do Mercosul, assinado no dia 29 de abril de 2021, em Montevidéu, e apresentado pela Chancelaria brasileira como “mais ambicioso já concluído pelo Brasil em matéria de comércio eletrônico”.26 Já no contexto da conclusão das negociações em torno do Acordo de Associação União Europeia-Mercosul, o bloco se adaptou à proposta europeia. De forma mais singela, em subseções específicas, foram adotadas disciplinas relativas à regulamentação de telecomunicações e comércio eletrônico. Foram adotados dispositivos vinculantes que proíbem a imposição de direitos aduaneiros sobre as transmissões eletrônicas e promovem o reconhecimento de documentos e assinaturas eletrônicas, além do compromisso das Partes de trabalharem conjuntamente no combate ao spam e na proteção ao consumidor.
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1 STREINZ, Thomas. Digital megaregulation uncostested? TPP's model for the global digital economy. In: KINGSBURY, Benedict; MALONE, David M.; MERTENSKÖTTER, Paul: STEWART, Richard B.; STREINZ, Thomas; SUNAMI, Atsushi (edit.). Megaregulation Constested: Global Economic Ordering After TPP. New York: Oxford University Press, 2019, p. 312-342.
2 OMC. Work Programme on Electronic Commerce. WT/L/274, 30 set. 2014. Disponível em: https://docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/WT/L/274.... Acesso: 05 fev. 2022.
3 UNCTAD. The value and role of data in electronic commerce and the digital economy and its implications for inclusive trade and development. New York and Geneva: United Nations, 2019.
4 AARONSON, Susan Ariel. Data Is Different: Why the World Needs a New Approach to Governing Cross-border Data Flows. CIGI Papers n. 197, Waterloo, Canada: Centre for International Governance Innovation, nov. 2018.
5 BURRI, Mira. Approaches to Digital Trade and Data Flow Regulation Across Jurisdictions: Implications for the Future EU-ASEAN Agreement. Legal Issues of Economic Integration, v. 49, n. 2, p. 149-168, mar. 2022.
6 “Comprehensive and Progressive Agreement for Trans-Pacific Partnership” -- https://en.wikipedia.org/wiki/Comprehensive_and_Progressive_Agreement_fo...
7 GOOGLE. Enabling Trade in the Era of Information Technologies: Breaking Down Barriers to the Free Flow of Information. White Paper. Montain View: Google Inc., 2010.
8 BUSINESS SOFTWARE ALLIANCE. Lockout: How a New Wave of Trade Protectionism is Spreading through the World’s Fastest- Growing IT Markets. Business Software Alliance, Washington, 2012; BUSINESS SOFTWARE ALLIANCE. Powering the Digital Economy: A Trade Agenda to Drive Growth. Business Software Alliance, Washington, 2015.
9 USTR. The Digital 2 Dozen, 2016. Disponível em: https://ustr.gov/about-us/policy-offices/press-office/reports-and-public....
10 BRASSCOM et al. Brazil Digital Trade Letter, 10 de setembro de 2020. Disponível em: https://www.itic.org/policy/ITIMultiassociationUSBrazilDigitalTradeLette....
11 CNI. A indústria em favor da OMC: Prioridades para a 12ª Conferência Ministerial (MC 12). Brasília: CNI, 2022.
12 Posições como essas estão expressas no documento com as principais demandas do empresariado nacional depois de reunião promovida pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), em parceria com o então Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC). Pelo empresariado nacional, além do Mercado Livre, estiveram presentes representantes do Ingresso.com; Visa; Mercado Livre; Via Varejo; Grupo Daffiti; e Peixe Urbano (CNCC - Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Economia Digital e Comércio Eletrônico: Pautas e Propostas do setor produtivo. Brasília: Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, 2018).
13 AZMEH, Shamel; FOSTER, Christopher; ECHAVARRI, Jaime. The international trade regime and the quest for free digital trade. International Studies Review, v. 22, n. 3, p. 671-672, 2020.
14 DRAKE, William. Background Paper for the Workshop on Data Localization and Barriers to Transborder Data Flows. Geneva: World Economic Forum, 2016.
15 KILIC, Burcu. Digital trade rules: Big Tech’s end run around domestic regulations. Brussels and Washington: Heinrich-Böll-Stiftung, 2021.
16 STREINZ, Thomas. Digital megaregulation uncostested? TPP's model for the global digital economy. In: KINGSBURY, Benedict; MALONE, David M.; MERTENSKÖTTER, Paul: STEWART, Richard B.; STREINZ, Thomas; SUNAMI, Atsushi (edit.). Megaregulation Constested: Global Economic Ordering After TPP. New York: Oxford University Press, 2019, p. 312-342.
17 YAKOVLEVA, Svetlana. Personal Data Transfers in International Trade and EU Law: A Tale of Two ‘Necessities’. Journal of World Investment & Trade, p. 1-39, 2020.
18 NEERAJ, RS. Trade Rules for the Digital Economy: Charting New Waters at the WTO. World Trade Review, v. 18, p. 1-21, 2019.
19 KELSEY, Jane. Digital trade rules and big tech: surrendering public good to private power. Ferney-Voltaire, France: Public Services International, 2020; KILIC, Burcu. Digital trade rules: Big Tech’s end run around domestic regulations. Brussels and Washington: Heinrich-Böll-Stiftung, 2021.
20 KELSEY, Jane; BUSH, John; MONTES, Manuel; NDUBAI, Joy. How ‘Digital Trade’ Rules Would Impede Taxation of the Digitalised Economy in the Global South. Penang, Malaysia: Third World Network, 2020.
21 BANGA, Rashmi. Growing trade in electronic transmissions and implications for the south. UNCTAD Research Paper n. 29. Genebra: UNCTAD, 2019.
22 AARONSON, Susan Ariel; STRUETT, Thomas. Data Is Divisive: A History of Public Communications on E-commerce, 1998–2020. CIGI Papers No. 247, Waterloo, Canada: Centre for International Governance Innovation, dec. 2020; ISMAIL, Yasmim. E-commerce in the World Trade Organization: History and latest developments in the negotiations under the Joint Statement. Winnipeg and Geneva: The International Institute for Sustainable Development and CUTS Internacional, 2020.
23 O primeiro deles ainda apresentado durante a saída de Dilma da Presidência, outros 5 originalmente durante o mandato do Presidente Michel Temer – 3 deles circularam novamente em 2019 – e os demais já durante o governo de Jair Bolsonaro e no contexto das negociações plurilaterais de comércio eletrônico na Organização.
24 Segundo Miriam Wimmer: “nós somos sempre orientados pelo nosso marco jurídico interno, que tem duas normas muito relevantes nesse contexto. De um lado, o Marco Civil da Internet, que estabelece regras sobre a neutralidade de rede, remoção de conteúdo, liberdade de expressão on-line; e, de outro, a LGPD, que nesse momento ainda possuir uma grande incerteza acerca da data de sua entrada em vigor e da constituição da sua autoridade nacional de dados, que vai desempenhar um papel superimportante na conformação desses fluxos internacionais de dados.” (WITcast. Digital Trade. Entrevistadas: Daniela Matos e Miriam Wimmer. Entrevistadoras: Verônica Prates e Marina Carvalho. [S. l.]: Women Inside Trade, Ago. 2020. Podcast. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/4p1VRNAQBZkSnGCI9FDSfq?si=f35681e647e041bc.
25 PUBLIC CITIZEN. Only One of 40 Attempts to Use the GATT Article XX/GATS Article XIV “General Exception” Has Ever Succeeded: Replicating the WTO Exception Construct Will Not Provide for an Effective TPP General Exception. Washington: Public Citizen's Global Trade Watch, Agosto de 2019. Disponível em: https://www.citizen.org/article/only-one-of-44-attempts-to-use-the-wtos-....
26 BRASIL. Assinado Acordo sobre Comércio Eletrônico do Mercosul – Nota Conjunta do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Economia. Nota à Imprensa n. 50, 30 de abril de 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprens....