poliTICs 37 - Editorial

O desafio de equilibrar direitos individuais e o bem-estar da comunidade no uso de serviços online é tão antigo quanto os primeiros serviços em rede baseados em conteúdos gerados pelos participantes. O aprendizado nos modelos de governança online -- que desde sempre envolveram formas de "atendimento ao cliente" -- começou nos primeiros serviços de troca de mensagens, nos serviços de e-mail e nos primeiros sistemas de conferências online. Esse processo histórico envolve inúmeras tentativas de moderação pelos próprios participantes, bem como o advento de um moderador ou administrador de sistema (o "sysop", especialmente representativo dessas tentativas nas múltiplas redes de "bulletin boards") e os moderadores de grupos organizados por afinidades ou temas.

Zuckerman e Rajendra-Nicolucci fazem uma detalhada resenha, suportada por uma extensa bibliografia, dessa jornada do que chamam de "governança comunitária" desde os primeiros serviços de troca de mensagens dos anos 80 até as modernas plataformas do século XXI.

Philip Seufert descreve as consequências de um processo de modernização do controle estatal sobre as propriedades agropecuárias, com a digitalização dos registros territoriais e a consequente perda de direitos sobre territórios cujas propriedades não estavam formalizadas. Descreve como exemplo os impactos, nas comunidades rurais da Índia, da imposição de registros de propriedade que atropelam tradicionais formas de posse da terra, desterrando muitas famílias camponesas.

A entidade civil Artigo 19 está acompanhando o avanço das tecnologias de vigilância, em especial as iniciativas de capturar via câmeras emoções que possam ser categorizadas em um banco de dados e incorporadas a perfis pessoais. Entrevistas em várias situações já são gravadas em vídeo há muito tempo, mas extrair emoções classificáveis em categorias bem definidas é novidade. No entanto, há imprecisões nesse processo (como em outros sistemas envolvendo inteligência artificial), em que as categorias comportamentais ou "emotivas" não obedecem a cânones predeterminados, levando a conclusões injustas ou perigosas.

Brenda Cunha e André Boselli sintetizam o avanço dos sistemas de reconhecimento de emoções baseados em premissas cientificamente frágeis ou defasadas e as decorrentes violações de direitos no emprego dessas tecnologias.

Flávia Lefèvre destaca as vulnerabilidades dos processos eleitorais no Brasil resultantes da não aprovação da chamada minirreforma eleitoral -- que mitigaria a influência das grandes plataformas de redes sociais sobre a propaganda na Internet --, em especial do projeto de lei 4438/2023. Em decorrência essas plataformas de empresas como Meta, Alphabet e X/Twitter seguirão sendo as principais praças de debate político eleitoral nas eleições municipais de 2024 sem a regulação que as compatibilize com a legislação eleitoral brasileira.

Steve Song, especialista em tecnologias de informação com longa experiência internacional na aplicação de novas tecnologias para a comunicação comunitária, analisa os impactos do provimento de acesso Internet com redes de satélites de baixa órbita (LEO), como o sistema Starlink da SpaceX e o projeto Kuiper da Amazon. Apesar do inegável avanço técnico (alta velocidade e baixa latência), há preocupações de ordem ambiental, da interferência na radioastronomia, e do fato que os serviços são controlados por uma empresa nos EUA praticando preços ao consumidor no padrão americano -- o que torna o serviço economicamente inviável para a grande maioria das comunidades menos favorecidas com boa conexão à Internet no mundo. Em especial, o autor mostra que há indícios claros de preços finais subfaturados em relação aos altos custos operacionais -- provavelmente para conquistar mercado. Um elemento adicional é a crescente concorrência de redes terrestres em expansão chegando a localidades antes desconectadas, tornando em vários casos o serviço supérfluo.

Ritse Erumi e Anita Gurumurthy fazem uma apresentação de uma pesquisa realizada em 2021 pela entidade IT for Change, sobre o impacto da digitalização da economia no trabalho e os direitos dos trabalhadores. A emergência generalizada do trabalho temporário sem as devidas proteções tradicionais das leis trabalhistas criou um exército de empregados subremunerados e sem estabilidade. Os sistemas automatizados de gestão baseados em inteligência artificial propagam essa instabilidade para setores tradicionais, e as mesmas tecnologias são utilizadas cada vez mais para monitorar as atividades dos empregados mesmo fora do trabalho. Nas palavras das autoras, "como intervenientes geoeconômicos cada vez mais poderosos, os titãs da tecnologia promovem novas formas de colonialismo digital: tanto nos países ricos, onde a população está sendo rapidamente classificada entre os que têm e os que não têm desta era, como no cenário global, à medida que os países ricos do Norte Global reproduzem relações de exploração em outras geografias".

Boa leitura!

 

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