Marco Civil, NETmundial e a modernidade do Brasil na internet
Virgilio A. F. Almeida, Secretário, de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e coordenador do Comitê Gestor da Internet no Brasil
Data da publicação: agosto de 2014
Em discurso na cerimônia de abertura da reunião da ICANN1 em Londres, o ministro chinês para o ciberespaço apresentou alguns números da Internet na China, que indubitavelmente demonstram o papel central da Internet no mundo moderno.2 São 600 milhões de usuários chineses, 1,2 bilhão de smartphones e mais de 20 bilhões de mensagens postadas por dia na China. O volume de transações de comércio eletrônico excede 1,7 trilhão de dólares, sendo responsável por mais de 10% do crescimento econômico da China. Subjacente a esse crescimento astronômico do ciberespaço, os países organizam-se para construir suas políticas locais e o arcabouço legal para a governança global e segurança da Internet. A política, a economia, o trabalho, o lazer e as relações interpessoais desenvolvem-se cada vez mais no ciberespaço, criado pela Internet. O ciberespaço é portanto chave estratégica para o desenvolvimento social e econômico de todos países.
O Brasil, sob a determinação da presidenta Dilma Rousseff, tem construído políticas de Estado para Internet, que dão a segurança necessária para o país desenvolver plenamente uma agenda digital, que criam condições novas para o crescimento econômico e social. A Internet com suas características inovadoras e sua capacidade de gerar riquezas deve necessariamente ser levada a todos os cantos do planeta, não somente aos países desenvolvidos ou às regiões mais desenvolvidas dos países em desenvolvimento. A acelerada participação da Internet na vida das pessoas, no dia-a-dia das empresas e nas ações de governo mostram que a Internet deixou de ser apenas uma questão tecnológica e tem hoje u m forte viés social, econômico e político, com impacto na vida das pessoas e no desenvolvimento das nações.
Com a crescente importância da Internet na política, nas relações internacionais e na economia, há uma tendência para a intensificação dos conflitos e disputas no ciberespaço. As grandes redes de comunicação, as empresas de Internet, as operadoras de telecomunicações e o sistema financeiro têm e terão interesses conflitantes permanentemente em disputa. As questões de impostos sobre os serviços globais na Internet estarão cada vez mais nas agendas das relações internacionais. As grandes empresas de Internet, como Google, Facebook, Twitter e outras, têm hoje um papel chave na sociedade brasileira, com mais de 100 milhões de usuários fazendo uso constante desses serviços, que embora privados, têm características notadamente públicas. Além disso, pairam no ar também as ameaças de guerras e conflitos internacionais no ciberespaço. Tudo isso aponta em uma direção: a necessidade de termos estruturas sólidas e políticas de Estado para a governança da Internet, com as características locais do Brasil, porém inseridas no contexto global da Internet.
O Brasil é moderno na Internet. Está na vanguarda da formulação e implantação de políticas públicas para a governança global da Internet. Políticas que valorizam modelos multiparticipativos, envolvendo governo e sociedade. O Marco Civil, o Comitê Gestor da Internet e o encontro NETmundial são iniciativas brasileiras que têm um amplo reconhecimento internacional. São exemplos concretos da modernidade brasileira no ciberespaço. O Comitê Gestor da Internet (CGI.br) funciona há quase 20 anos, seguindo um modelo de governança multissetorial, aberto e transparente, com a participação efetiva da sociedade civil, empresas, academia e governo. Esse arranjo tem sido reconhecido internacionalmente como avançado e apropriado para a Internet global.
A Lei do Marco Civil da Internet3, aprovada pelo Congresso e sancionada pela presidenta Dilma Rousseff durante o NETmundial, estabelece princípios e garantias para o uso da rede no Brasil. O Marco Civil é o primeiro passo em direção a um arco de legislações sobre Internet no país. Ainda será necessário um decreto da presidenta para regulamentar aspectos específicos do Marco Civil. Novos projetos de lei virão. Um exemplo é o anteprojeto da Lei de Proteção de Dados Pessoais, que encontra-se em preparação pelo governo federal.
O NETmundial, que ocorreu em São Paulo em abril último, foi idealizado a partir do discurso da presidenta Dilma Rousseff nas Nações Unidas no ano passado4, em resposta às denúncias de monitoramento e espionagem eletrônica das comunicações e da Internet pelo governo americano. Nesse discurso, a presidenta chama a atenção para necessidade de se discutir mecanismos globais de governança e uso da Internet e de medidas que garantam uma efetiva proteção dos dados. A partir dessa determinação, o governo brasileiro, o CGI.br e várias organizações internacionais, como ICANN e outras, trabalharam na construção desse encontro multissetorial, o NETmundial, com o objetivo de se discutir a evolução da governança global da Internet. O balanço dos resultados foi claramente positivo. Ficou evidente a liderança do Brasil no assunto, confirmado pela expressiva presença de representantes de todos os setores envolvidos, num total de quase 1000 representantes de 110 países.
A Declaração Multissetorial de São Paulo, aprovada por amplo consenso nos momentos finais da reunião, apresenta sólidos princípios globais para governança da Internet e um roteiro de medidas para aperfeiçoamento do ecossistema global da Internet. O documento, o primeiro desse tipo aprovado internacionalmente por todos setores, incluindo governos, enfatiza a gestão multissetorial da Internet, transparente e democrática, com o pleno envolvimento de governos, setor privado, sociedade civil, comunidades técnica e acadêmica. O documento ressalta no entanto que os papéis e responsabilidades das partes interessadas no processo de governança devem ser interpretados de modo flexível, dependendo do tema em discussão. Por exemplo, nas questões que envolvem cibercrimes o papel predominante é dos governos. O documento aponta também os problemas causados pelo monitoramento em massa na Internet, por governos e empresas, e demanda respeito aos direitos humanos nessas questões.
Várias lições podem ser tiradas do processo de preparação do NETmundial. A primeira delas diz respeito à importância de preservar o caráter multissetorial em todas as frentes da organização de um evento dessa natureza. Como exemplo, no NETmundial os organizadores tiveram o cuidado de adequar o evento às especificidades das múltiplas partes envolvidas, como governos, organizações da sociedade civil, empresas e comunidades técnica e acadêmica. Outro aspecto fundamental foi o constante cuidado de se ter u m processo de preparação aberto, transparente, participativo, inclusivo e multissetorial. Em termos práticos, observou-se a necessidade de melhorar os métodos de trabalho para ambientes multissetoriais, especialmente em relação aos procedimentos de tomada de decisão. O detalhamento de temas importantes, como a neutralidade de rede e jurisdição internacional para serviços da Internet, foram deixadas para discussões futuras. O NETmundial deve ser visto como um bem sucedido início de uma longa jornada para encontrar soluções para os desafios que a expansão global da Internet apresenta.
Embora o NETmundial tenha sido uma discussão global, os valores locais, a cultura local e as condições locais são chaves para entender a amplitude desse debate sobre o futuro da Internet. Não podem ser ignorados. Na clássica obra de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, o mítico personagem do romance, levanta a seguinte observação: “Não me assente o senhor por beócio. Uma coisa é por ideias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil e tantas misérias…’’ Pois isso nos ajuda a compreender a importância da formulação de regras para a governança da Internet. Regras que têm um caráter global, mas que não são estranhas às características locais dos países. E o Congresso Brasileiro, ao aprovar o Marco Civil da Internet, colocou as necessidades e aspirações da sociedade brasileira no devido lugar nas discussões sobre as regras globais da Internet.
---
1. Corporação de Internet para a Designação de Nomes e Números. Ver https://www.icann.org
2. Ver a transcrição em português da cerimônia de abertura do evento da ICANN, em 23 de junho de 2014, onde o ministro chinês Lu Wei refere-se ao NETmundial: http://london50.icann.org/pt/schedule/mon-welcome/transcript-welcome-23j...
3. Ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
4. O discurso completo está nesta edição da poliTICs