Zero-rating: uma introdução ao debate

Por Pedro Henrique Soares Ramos, Pesquisador associado do InternetLab. Graduado pela USP e Mestre em Direito FGV/SP

Data da publicação: 

Agosto 2015

O objetivo deste artigo é apresentar um panorama geral de como os estudos acadêmicos têm abordado os efeitos econômicos e sociais de estratégias zero-rating no mercado mobile, e como essa discussão tem afetado o posicionamento dos principais stakeholders no Brasil. Este ensaio está dividido em três partes: na primeira, vamos rapidamente contextualizar o que é zero-rating, sua relação com a neutralidade da rede e algumas de suas espécies. Em seguida, elencaremos os principais modelos de análise que têm sido utilizados para o estudo sobre zero-rating na literatura acadêmica, especialmente nas áreas de Direito, Economia e Ciências Sociais. Finalmente, vamos organizar um mapa das discussões no Brasil, expondo a posição dos atores e seus principais argumentos em favor ou contra planos de zero-rating no país.

O QUE É ZERO-RATING

Zero-rating refere-se a uma série de estratégias comerciais desenvolvidas por operadoras em parceria com provedores de aplicações que visam oferecer gratuidade no tráfego de dados para determinada aplicação e serviço específico - em outras palavras, trata-se de um modelo de negócio no qual a operadora, após o cliente esgotar sua franquia de dados, permite que ele continue usando um determinado serviço, sem custos.

Ao contrário do mercado de banda larga, é comum que operadoras ofereçam a seus usuários planos de acesso à internet com limites de volume de tráfego mensais – por exemplo, em um plano de 100 MB, o usuário somente poderá utilizar internet 3G em seu dispositivo móvel até o limite de 100 megabytes de tráfego download e upload por mês. Por meio de estratégias de zero-rating, operadoras permitem que o cliente, após esgotar sua franquia de dados, continue usando um determinado serviço sem custos, independente da contratação de uma nova franquia de dados.

Na visão atualmente majoritária da academia, estratégias de zero-rating têm entrado diretamente em conflito com a neutralidade da rede, princípio de arquitetura de rede que endereça a provedores de acesso o dever de tratar os pacotes de dados que trafegam em suas redes de forma isonômica, não os discriminando em razão de seu conteúdo ou origem. Planos de zero-rating, ao permitir que determinadas aplicações trafeguem de forma gratuita e que outras sejam bloqueadas ao término da franquia, feririam essa isonomia, fortalecendo, no caso dos provedores de acesso, seu papel de gatekeepers da rede, com a capacidade de escolher quais conteúdos serão ou não disponíveis para usuários de forma diferenciada.

Zero-rating refere-se, naturalmente, a um gênero de estratégias comerciais: em vários países e em estudos específicos, identifica-se diferentes espécies dessa modalidade, como por exemplo:

(i) tarifação zero para aplicações e serviços de emergência – mesmo ao término da franquia de dados, o usuário deveria ter acesso a aplicações que possam auxiliar serviços públicos, como envio de mensagens para polícia e pronto-socorro, e mesmo serviços de localização do dispositivo do usuário;

(ii) acesso patrocinado – nesses casos, o provedor de aplicação paga diretamente a operadora pelo tráfego gerado por seus usuários (tarifação reversa), por meio de uma tabela de preços pública e isonômica, em formato semelhante ao que ocorre no formato 0800 da telefonia tradicional;

(iii) tarifação zero por escolha da própria operadora – são iniciativas de zero-rating em que a operadora, por meio de decisões estratégicas internas, seleciona uma aplicação específica para que o tráfego gerado pelo acesso a essas aplicações não seja cobrado do usuário; não há, nesse caso, uma oportunidade para quaisquer serviços serem elegíveis à tarifação zero, mas somente aqueles escolhidos pela operadora.

Há consenso acadêmico sobre os benefícios sociais relacionados com a modalidade (i) acima. No caso (ii), há uma posição majoritária de que essas estratégias não ferem a neutralidade da rede, em que se pesem argumentos sobre seus eventuais efeitos econômicos (van Schewick, 2015). Logo, a grande discussão atual gira em torno do cenário (iii), em que a posição de gatekeeper do provedor de acesso fica não só evidente como potencializada.

ZERO-RATING NA ACADEMIA

A discussão acadêmica sobre o assunto ainda é embrionária. Entre os trabalhos publicados, observa-se poucas iniciativas empíricas; a maior parte dos trabalhos e artigos procura realizar discussões à nível mais teórico, adotando perspectivas como os efeitos do zero-rating para os usuários e sua relação com o acesso à rede, os efeitos dessas iniciativas na competição e as consequências adversas dessas estratégias para o desenvolvimento tecnológico de países em desenvolvimento. Discutiremos um pouco desses trabalhos e perspectivas nas próximas páginas.

ESTUDOS EMPÍRICOS SOBRE OS EFEITOS DE ESTRATÉGIAS ZERO-RATING

Poucos estudos empíricos têm sido dedicados para entender quais as consequências de planos de zero-rating para o desenvolvimento do mercado mobile. Em Ramos (2014), conduzimos um estudo para identificar o que há de comum entre países em que planos de zero-rating estabeleceram-se primeiro e com mais sucesso, e quais as possíveis consequências dessas práticas.

Para responder a essas perguntas, analisamos países em que Facebook, Google, Twitter e Wikimedia Foundation desenvolvem ou desenvolveram, entre 2010 e o primeiro semestre de 2014, estratégias de zero-rating em parceria com operadoras locais. Os resultados do estudo apontaram que: (i) há uma posição dominante dos quatro grandes provedores de conteúdo analisados entre os sites mais acessados desses países, o que permite assumir que dar acesso gratuito a usuários desses países tenderá a satisfazer melhor as expectativas que esses usuários possuem sobre quais sites gostariam de acessar na internet; (ii) o número de planos de telefonia móvel ativos nos países analisados é bastante alto, mas a penetração da internet ainda é baixa (em geral, abaixo de 50%), e o preço de um plano de internet no celular é muito caro, custando uma média de 9,76% do PIB per capita (em países como no Congo, esse custo pode chegar a 126% do PIB per capita); (iii) há relevantes barreiras para o desenvolvimento de uma indústria tecnológica local; e (iv) dentre todos os países analisados, poucos começaram a promover discussões regulatórias mais sofisticadas sobre o papel da tecnologia no desenvolvimento local e a importância de regras de neutralidade da rede1.

Em novembro de 2014, o relatório da Digital Fuel Monitor (2014) sobre a competitividade no setor mobile comparou diversos países pertencentes à União Europeia e à OCDE para investigar o impacto do zero-rating nesses países. O relatório traz três resultados importantes: (i) dentre os 41 países analisados, estratégias de zero-rating foram implementadas a partir do segundo semestre de 2014 em 32 desses países, beneficiando ao menos 75 aplicações mobile diferentes; (ii) entre essas operadoras, o custo de planos de acesso 3G e 4G aumentaram de forma expressiva ao longo de 2014, especialmente entre operadoras que oferecem serviços zero-rated de vídeo, por meio de parceiros ou empresas de seu mesmo grupo econômico (em um dos casos, uma operadora zero-rated triplicou o preço de seus planos de acesso 4G), e (iii) entre os países que não adotaram o modelo, tem sido observada uma tendência das operadoras locais em aumentar o limite da franquia de seus usuários, sem alteração dos preços – a operadora KPN da Holanda, por exemplo, dobrou o limite de franquia de seus planos, o que gerou uma redução, pela metade, do preço médio por gigabyte na banda larga mobile.

O estudo da Digital Fuel Monitor conclui que a oferta de zero-rating, aliada ao aumento dos preços da banda larga móvel, possui consequências adversas para a competitividade e para o acesso à rede, reduzindo a capacidade de escolha dos usuários (que, caso não queiram usar determinado serviço zero-rated, enfrentarão custos altos de banda larga) e a competitividade em relação a outras aplicações (enfrentarão altas barreiras de acesso para competir com aplicações zero-rated). Ainda, o relatório afirma que o estudo sugere que, caso o zero-rating seja proibido, pode haver incentivos econômicos para que operadoras reduzam o custo de seus planos de banda larga mobile, com o objetivo de incentivar o uso geral da internet por seus usuários, beneficiando inclusive serviços oferecidos pela própria operadora.

ZERO-RATING E A PERSPECTIVA DO USUÁRIO

Mas, afinal, planos de zero-rating são benéficos para os usuários? Ou os usuários são prejudicados com a proliferação desse tipo de iniciativa? Essas são questões difíceis de responder, na medida em que contrapõem dois diferentes referenciais analíticos. O primeiro referencial parte da premissa de que “qualquer acesso gratuito é benéfico, ainda que seja limitado a uma ou poucas aplicações”2. Por essa perspectiva, usuários de planos zero-rating estão sendo beneficiados com a possibilidade de acessar o seu conteúdo favorito gratuitamente, o que significa que a internet é, para esses usuários, mais valiosa e útil. Especialmente no caso de redes sociais e sites de conteúdo educativo, dar a usuários a capacidade de acessarem esses conteúdos gratuitamente pode expandir suas capacidades, promover a participação social e política e dar acesso a mais informação.

Por sua vez, o segundo referencial parte da premissa de que “o acesso a somente um ou poucos conteúdos selecionados pode reduzir as capacidades dos usuários”. Essa é a perspectiva adotada por Susan Crawford (in Talbot, 2014), quando esta afirma que “for poorer people, Internet access will equal Facebook. That’s not the Internet — that’s being fodder for someone else’s ad-targeting business [...] that’s entrenching and amplifying existing inequalities and contributing to poverty of imagination – a crucial limitation on human life”. Essa abordagem considera que o zero-rating traz pelo menos três consequências negativas para os usuários. A primeira é a possibilidade de que governos utilizem o zero-rating para aumentar o filtro de informações na rede e influenciar o consumo de conteúdo dos usuários, especialmente em países em desenvolvimento sujeitos a regimes autoritários.

A segunda consequência seria a criação de barreiras de exclusão social e a potencial divisão entre a “internet dos ricos” e a “internet dos pobres”: esta última seria a periferia do sistema, com acesso limitado a recursos e que, a longo prazo, tenderia a aumentar barreiras de exclusão social, na medida em que os mais pobres seriam cada vez mais diferentes dos ricos no que se refere a acesso a informação, ferramentas de comunicação e interação social (Ramos, 2014). Com a cobrança diferenciada, poderia ser reproduzida a mesma separação social que ocorre nas cidades brasileiras hoje: periferias com acesso limitado a equipamentos culturais e serviços de qualidade, e anéis de riqueza em que seriam construídas barreiras de estratificação social com o objetivo de afastar a presença e entrada da periferia nessas praças.

Finalmente, a proliferação de modelos de zero-rating pode criar efeitos de walled- gardens, em que os usuários reduzem o interesse em sair das aplicações gratuitas e explorar os demais conteúdos da rede, reduzindo a possibilidade de que esses usuários venham, no futuro, a aprofundar-se em determinados temas e construir seus próprios conteúdos (Surman et al., 2014).

ZERO-RATING E DESENVOLVIMENTO: UMA ANÁLISE CONCORRENCIAL

O tema do zero-rating também está intimamente ligado aos estudos que analisam a competição no setor de tecnologia. Esses trabalhos apontam que estratégias de zero-rating podem potencialmente levar a uma maior concentração de mercado e à persistência de situações de monopólio que podem gerar consequências adversas à indústria local de conteúdo e aplicações, aumentando as barreiras para inovadores que desejam competir com players já estabelecidos e cujo mercado encontra-se resguardado por estratégias de zero-rating.

Ao permitir que provedores de acesso tenham a capacidade de escolher qual conteúdo ou aplicação ficará sujeita à gratuidade de tráfego – logo, podendo escolher os vencedores e perdedores de determinado setor do mercado –, a dinâmica da inovação altera-se profundamente (Berners-Lee, 2015; Van Schewick, 2014). Essa tem sido a principal lente teórica adotada no debate acadêmico, inclusive em carta enviada no início de 2015 à FCC por diversos pesquisadores estadunidenses3. Nesse cenário, as aplicações de maior sucesso não serão necessariamente aquelas que possuem a melhor tecnologia e desenvolvem o melhor produto, mas sim as aplicações que conseguirem a melhor condição de acesso junto a provedores de acesso4. Destarte, se determinada startup resolve competir em um setor em que já existe u m concorrente que possui um acordo de zero-rating com um provedor de acesso, essa startup deverá enfrentar a barreira de que, pela perspectiva do usuário, a aplicação oferecida por esta é paga, enquanto a do concorrente é gratuita.

ZERO-RATING E CICLOS DE DEPENDÊNCIA TECNOLÓGICA

Outra lente de análise para o tema parte da perspectiva da dependência tecnológica entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento5. Na medida em que grandes provedores de conteúdo precisam aumentar suas bases de dados para a oferta de serviços de publicidade, é racional que essas empresas busquem uma atuação mais forte em grandes mercados consumidores localizados em países em desenvolvimento. Todavia, quando essas empresas iniciam suas operações nesses países, estas se veem em condições econômicas adversas para o desenvolvimento de operações locais, tendo em vista que a penetração da internet é baixa, os custos de acesso são ainda altos e celulares ainda são a principal porta de entrada para a internet. Uma das formas que provedores de aplicação encontram para desenvolver suas operações locais e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do ecossistema local, são parcerias como zero-rating, oferecendo assim planos de acesso patrocinado a usuários de operadoras locais.

Como uma consequência macro dessa estratégia, há potenciais desincentivos para a inovação e conteúdo local, bem como menores incentivos para o investimento de venture capital nesse setor, o que pode levar à maior dependência dos usuários locais por conteúdo e aplicações externas. Em última instância, a persistência de microciclos de dependência tecnológica, que podem ocorrer em virtude de iniciativas de zero-rating, pode levar a ciclos em que países em desenvolvimento, incapazes de desenvolver sua própria indústria de inovação, serão utilizados como combustível para o financiamento da inovação em países desenvolvidos, levando a baixas taxas de transferência tecnológica entre os países.

ZERO-RATING NO BRASIL

No Brasil, estratégias de zero-rating não são recentes. As primeiras estratégias desse tipo remetem à pré-história da internet móvel no País, com os chamados portais WAP, que permitiam a oferta de conteúdo multimídia em aparelhos de celular pré-smartphones, com baixíssimo uso de dados da rede (HCI Blog, 2004). Na era 3G, operadoras como a Claro mantiveram parcerias zero-rating com a Facebook e Twitter até o primeiro semestre de 20156, em parceria que atualmente é oferecida pela Oi em alguns de seus planos. A TIM já desenvolveu parcerias nesse sentido com aplicações de GPS como Moovit e Waze, e atualmente possui parceria com o aplicativo WhatsApp (de titularidade da Facebook).

O MAPA DAS DISCUSSÕES NO BRASIL

Com a aprovação do Marco Civil, o zero-rating tornou-se uma das primeiras (senão a primeira) grandes discussões hermenêuticas sobre o Marco Civil. Setores ligados a operadoras defenderam em comunicados e artigos de imprensa que essas iniciativas não estão compreendidas na regra do art. 9o, encontrando respaldo na liberdade de modelos de negócio estabelecida pela lei (De Luca, 2014).

Por outro lado, outros comentários têm apontado para a clara inadequação entre esses planos e a redação aprovada, não encontrando espaço para o entendimento de que o zero-rating estaria permitido. O debate foi amplificado recentemente, com o anúncio sobre a parceria entre o governo federal e a Facebook a respeito do projeto Internet.org que, entre algumas de suas iniciativas, também desenvolve, em parceria com operadoras locais, iniciativas de zero-rating em países em desenvolvimento.

O mapeamento organizado pelo InternetLab7 traz alguns resultados que ajudam a entender melhor o posicionamento do mercado de internet a respeito do zero-rating. Por meio da análise das contribuições realizadas à plataforma de consulta pública do Ministério da Justiça, é possível identificar ao menos duas posições majoritárias sobre o assunto.

A primeira posição foi defendida por empresas e representantes do setor de telecomunicações como a FEBRATEL, SINDITEBRASIL, SINDISAT, TELCOMP, TELEBRASIL, ABRAFIX, ACEL, ABINEE, Claro, Tim e Cisco. Para esse grupo, que a obrigação de não discriminação de dados prevista no artigo 9o do Marco Civil abrange tão somente as atividades relacionadas com o tráfego de pacotes de dados, e não alcançam discriminações entre pacotes de dados que possam ocorrer em nível comercial. Defensores desse posicionamento argumentam que planos de zero rating proporcionam um aumento do acesso à internet, principalmente entre as classes sociais menos favorecidas, e que não necessariamente levam a efeitos negativos para a concorrência. Posicionamento semelhante também foi defendido pela Brasscom, associação que possui entre seus membros grandes provedores de aplicações como Google, Facebook, Microsoft, IBM, SAP, TOTVS e Locaweb.

A segunda posição interpreta o artigo 9o do Marco Civil de forma diversa: para estes, o Marco Civil prescreve a provedores de acesso o dever de tratar pacotes de dados de forma isonômica em qualquer modalidade, seja este no nível lógico, de infraestrutura ou de ofertas comerciais. Para essa posição, a existência de planos de zero-rating possui efeitos concorrenciais adversos, e também gera efeitos nocivos para usuários, na medida em que contribuem para replicar uma divisão entre o pleno acesso a internet para quem pode pagar e o acesso limitado a algumas aplicações para as populações mais carentes.

Ao contrário da primeira posição, em que seus defensores estão claramente mais concentrados no setor de telecomunicações e entre os grandes provedores de aplicações, os defensores dessa segunda posição estão mais difusamente distribuídos entre diversos setores, como o governo (por meio de pareceres das consultorias do Senado, Câmara e da SEAE/MF), academia (CTS/FGV), associações representativas de pequenos provedores de aplicações (ABStartups) e representantes da sociedade civil (e.g., AccessNow, Artigo 19, IDEC, Instituto Telecom, Intervozes, PROTESTE).

CONCLUSÕES E APONTAMENTOS PARA FUTUROS ESTUDOS

Como vimos acima, a discussão acadêmica é embrionária; embora haja uma tendência em apresentar evidências sobre os efeitos adversos de iniciativas de zero-rating, há ainda base empírica pouco sólida para confirmar ou não algumas das hipóteses levantadas, especialmente àquelas relacionadas à perspectiva do usuário, cujas pesquisas encontram dificuldade no levantamento de dados confiáveis que possam fundamentá-las.

Ao mesmo tempo, o debate público é enviesado: nos debates regulatórios, há uma clara tendência de polarização de acordo com os interesses institucionais de cada setor. Todavia, zero-rating não é uma discussão binária, nem uma luta entre usuários e corporações, ou entre startups e telecoms. Os custos e benefícios envolvidos não são exclusivamente alocados em um único stakeholder, e é papel de aplicadores do Direito entender a característica multifacetada dessa discussão, de forma a interpretá-la para preservar benefícios e reduzir custos dos atores envolvidos. Tensões entre livre-iniciativa e justiça distributiva, o papel de corporações na criação ou na redução de desigualdades, a promoção de um modelo de desenvolvimento com papel atuante do Estado e a participação de grupos políticos e representativos de empresas no jogo político possuem influência importante no debate, e não devem ser desconsiderados por instrumentalistas do Direito no momento de desenvolver regulações específicas ou de aplicar no Judiciário decisões a favor ou contra determinada prática de mercado.

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1. É difícil assumir que estratégias de zero-rating proliferaram por causa das características apontadas anteriormente, ainda que pareça claro que essas particularidades contribuíram para a expansão dessas estratégias. Em países com as características citadas, estratégias zero-rating podem servir como importantes portas de entrada de usuários mais pobres para a internet, funcionando como iniciativas de marketing eficientes para operadoras mobile (ainda que esses discursos sejam comuns no campo teórico e também em discursos dos principais players do mercado, não foram localizados estudos empíricos suficientes para fundamentar essas afirmações; em países desenvolvidos, há evidências recentes de que programas como o Sponsored Data da AT&T não estão tendo sucesso comercial, como aponta Becker, 2014).

2. Esse é, direta e indiretamente, o referencial adotado pelos white-papers produzidos pela Internet.org, disponíveis em http://goo.gl/VaicFM e http://goo.gl/yUu8NL. Acesso em 15 fev. 2015.

3. A carta, assinada por 36 pesquisadores, incluindo Jack Balkin, Yochai Benkler, Nicholas Economides, Brett Frischmann, Lawrence Lessig, Barbara van Schewick e Tim Wu, afirma que “rules banning paid prioritization would prohibit providers of broadband Internet access from charging edge providers for prioritized or otherwise enhanced access to their Internet access customers. By “paid prioritization” we mean payments from edge providers for priority, guaranteed bandwidth, or zero-rating (not counting an edge provider’s traffic towards a user’s monthly bandwidth cap), as well as any other technical or economic practice that gives edge providers that pay an Internet access provider an advantage over edge providers that do not pay”. Disponível em http://goo.gl/zQDAU6. Acesso em 15 fev. 2015.

4. Esse cenário reduziria bastante a incerteza do mercado de tecnologia. Como coloca Van Schewick, (2010), investimentos de venture capital só são viáveis em mercados em que há enorme incerteza sobre quais players poderão ou não prosperar, e regulações ou falhas de mercado que reduzem essa incerteza tendem a diminuir o desenvolvimento desses setores.

5. A perspectiva teórica aqui adotada (e melhor detalhada em Ramos, 2014) remete diretamente à escola da “teoria da dependência”, popularizada na América Latina nos anos 1950 e 1960 (nesse sentido, ver Prebisch, 1950; e Cardoso, 1973). Conforme colocado por teóricos desse movimento, a principal consequência adversa de ciclos de dependência é a redução da capacidade de países em desenvolvimento (periferia) de gerar seu próprio progresso tecnológico, tendo em vista sua dependência tecnológica em relação a países desenvolvidos (centro) – como colocado por Vernego (2006), “technology – the Promethean force unleashed by the Indus- trial Revolution – is at the center of stage. The Center countries controlled technology and the systems for generating technology. Foreign capital could not solve the problem, since it only led to limited transmission of technology, but not the process of innovation itself”. Ainda que a profilaxia sugerida por autores dessa escola – e.g., substituição de importações e empresas estatais – tenha se provado como incapaz de superar barreiras de desenvolvimento, o diagnóstico de dependência permanece atual, com diversos trabalhos retomando essa problemática (Ghosh, 2001; Conway e Heynen, 2008).

6. Com a extinção dos planos de Facebook e Twitter grátis em abril de 2015, a Claro aumentou franquia de dados dos planos 3G e 4G de seus usuários, levando a uma redução de até 60% no custo por megabyte trafegado, como ocorreu com a operadora KPN na Holanda. Como coloquei em artigo para o Brasil Post à época (Ramos, 2015), a lição que parece ficar empiricamente apresentada aqui (e que já era apontado por estudos como o da Digital Fuel Monitor) é que o zero-rating pode favorecer a manutenção de preços altos no custo por megabyte ao usuário, e a sua não-existência em determinado mercado tende a reduzir barreiras de acesso tanto para usuários quanto para provedores de aplicações. Ainda, se esses planos não tem sido estratégias de marketing eficientes para as operadoras, essa mudança parece sinalizar que, se os usuários tiverem a escolha um plano de zero-rating para sua aplicação favorita e ter mais franquia de dados para todas as aplicações, os usuários podem estar preferindo a última opção.

7. Disponível em http://www.internetlab.org.br

Referências bibliográficas

• BECKER, S. Here’s Why No One Is Buying into AT&T’s Sponsored Data Plan.Wall St. Cheat Sheet, 2014. Disponível em http://goo.gl/bAhrH7. Acesso em 31 ago. 2014

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• GHOSH, B. N. Dependency Theory Revisited. Aldershot: Ashgate Pub Ltd, 2001.

• HCI BLOG. Introduction to WAP. HCI Blog, 2004. Disponível em http://goo.gl/jYZjc2. Acesso em 13 dez. 2013.

• PREBISCH, R. Economic Development in Latin American and its principal problems. Lake Success: UN Department of Economic Affairs, 1950.

• RAMOS, P. H. S. Towards a developmental framework for net neutrality: the rise of sponsored data plans in developing countries. Telecommunications Policy Research Conference, 2014.

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• SCHEWICK, B. V. Internet Architecture and Innovation. Cambridge: MIT Press, 2010.

•_____. Network Neutrality and Zero-rating. FCC, 2015. Disponível em http://goo.gl/rnOVfy. Acesso em 23 jun 2015.

• SURMAN, M.; GARDNER, C.; ASCHER, D. Local content, smartphones and digital inclusion. Innovations, v. Special Edition, 2014.

• TALBOT, D. In Developing Countries, Google and Facebook Already Defy Net Neutrality. MIT Techonology Review, 2014. Disponível em http://goo.gl/35r9hw. Acesso em 23 jan. 2014.

• VERNEGO, M. Technology, Finace, and Dependency: Latin American Radical Political Economy in Retrospect. Review of Radical Political Economics, v. 38, n. 4, 2006.

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