O lugar da Educação no confronto entre colaboração e competição

O lugar da Educação no confronto entre colaboração e competição

João Brant, Coordenador do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social

Data da publicação | novembro 2009

Em 2007, a Câmara de Comércio Americana (AmCham) pôs em prática, em escolas de primeiro grau de São Paulo, um projeto contra a pirataria, voltado para crianças e adolescentes de 7 a 15 anos. Em parceria com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, os cursos miravam um público em idade de formação de valores, que alguns anos depois adentra a faixa etária que é hoje a maior consumidora de produtos piratas, aquela de 16 a 24 anos. A iniciativa bélica da AmCham é apenas mais um capítulo de uma guerra que se luta em vários fronts. De um lado, a colaboração e o compartilhamento; de outro, a competição e o aprisionamento, ou a privatização do conhecimento. Por trás dessa disputa, há uma lógica de apropriação capitalista que tem de apelar à criação de escassez artificial para sobreviver. Para entender essa dinâmica, vale a pena explorar rapidamente a natureza das economias de rede.

A TRANSFORMAÇÃO DA INFORMAÇÃO EM MERCADORIA

Economias de rede lidam essencialmente com informação1, que é um bem intangível e não-rival. Como já visto nos capítulos anteriores2, isso significa que, diferentemente de bens tangíveis, o fato de uma pessoa consumi-lo não priva os outros de também consumir. Isso significa que não há escassez natural, como no caso dos bens tangíveis, e que, portanto, o mecanismo de preços não é suficiente para governar o mercado. Mais do que isso, os custos majoritários são os custos fixos, para produzir a “primeira unidade”; o custo marginal, por sua vez, tende a zero.3

Deixado dessa forma, há uma tendência a um superconsumo e uma falta de incentivos para o mercado produzir esse bem, o que é uma má notícia para aqueles que planejam explorar economicamente esse setor. Assim, sob a lógica de mercado, para gerar valor de troca para a informação, é preciso criar escassez artificial. Nicholas Garnham (1990, p. 40) descreve os quatro principais mecanismos de criação de valor de troca na comunicação: a proteção dos direitos de cópia; o controle de acesso (seja por meio de um controle direto, como bilheteria ou senha, seja por controle dos meios de distribuição, como no caso da TV a cabo), a obsolescência programada (como no caso dos jornais diários) e, finalmente, a associação do produto a um outro produto que tem valor de troca (como no caso dos programas de TV em que a potencial audiência é vendida para o anunciante). Independentemente do método utilizado, o desenvolvimento e o controle da rede de distribuição são fundamentais para garantir lucros. (Garnham, 2000, p. 59)

Essa dependência da escassez artificial faz com que haja uma constante briga dos que querem lucrar nesse mercado: para transformar a informação, um bem intangível e não-rival, em mercadoria, luta-se “contra a natureza”. O aprisionamento do conhecimento torna-se condição para a sua exploração econômica. É isso que exemplos como o curso da AmCham querem tornar natural.

O entendimento da educação formal como um campo estratégico de batalha reflete as potencialidades desse espaço. Nessa batalha entre colaboração e competição, a educação, aqui como em diversos casos, pode ser o instrumento que propicia condições para a conquista da autonomia política ou pode, na segunda face da mesma moeda, ser simplesmente o aparelho ideológico do Estado em que se reproduz a ideologia dominante. Essa disputa de modelos não é nova e sempre esteve presente, inclusive dentro da pedagogia. Nada há de novo na opção entre uma educação cartorial e participativa, entre uma avaliação punitiva e como instrumento pedagógico construtor de referências. A novidade é o ganho de espaço de uma lógica comercial competitiva, disfarçada sob um véu de educação pela proteção de direitos.

No entanto, as tropas avançam também do lado de cá. Se no cenário da educação há um avanço da lógica competitiva, em um cenário mais amplo, a lógica colaborativa retoma espaço. As possibilidades de desenvolvimento e a arquitetura de construção de saberes permitidas pela Internet fazem com que o compartilhamento e a colaboração saiam da posição desfavorável na qual estiveram no último século. Aquilo que o avanço do capitalismo havia escamoteado retoma forças como fruto, inclusive, do próprio desenvolvimento capitalista.

DISPUTA SOBRE A TECNOLOGIA

Esse terreno da Internet evidencia que a tecnologia passa a ser, ela mesma, um componente político fundamental, sobre o qual se dá parte dessa batalha entre competição e colaboração. Dependendo da forma como é arquitetada essa tecnologia, dependendo dos códigos, dos aplicativos e protocolos utilizados, está se condicionando o uso dessa tecnologia. A comunidade de software livre é talvez o exemplo mais evidente de uma apropriação social da tecnologia que a modifica e reinventa, adaptando- a a um modo de produção e buscando livrá-la do aprisionamento. Ao fazer isso, quebra a lógica da informação como mercadoria e desfaz a possibilidade de sua apropriação comercial. Nessa batalha, além de ser um ator político, em alguns casos a tecnologia chega a ser um componente jurídico. Restrições que não estão em lei – por exemplo, em relação à propriedade intelectual – tornam-se regras impostas por dispositivos tecnológicos. Nas palavras de Lessig (1999), o código torna-se a lei.

A tecnologia nada mesmo tem de neutra. Ela pode ser entendida como resultado da interação de forças sociais, econômicas, políticas e culturais, que ao se estabelecer afirmam e reforçam os valores que vão dominar nessa complexa resultante. Mais além, o seu uso e a forma como é apropriada continuam a definir “o lugar” das tecnologias nessa batalha. Assim, da mesma maneira que a tecnologia pode aprisionar, ela também pode libertar. Nessa disputa entre modelos competitivos e colaborativos, a conquista da autonomia tecnológica passa a ter um papel essencial.

Interessante é que essas novas formas de apropriação da tecnologia e novas práticas de produção cultural ajudam a desmascarar certas práticas da educação formal. A ideia de um professor que escreve duas lousas (ou dois quadros-negros, dependendo de onde se esteja no Brasil), lê todo aquele conteúdo, faz os alunos copiarem e termina a aula, mostras-e cada vez mais fora do lugar. Num cenário em que a informação é cada vez mais abundante, fica evidente que a questão central não é a simples disponibilização da informação, mas, sim, a facilitação de processos de aprendizagem em que a seleção e a organização da informação brigam contra um déficit de atenção. Nesse contexto, o professor se torna essencial como facilitador, animador ou mediador de processos. Seu papel de provedor unilateral de informação vai perdendo espaço. Assim seja.

A MÍDIA E O PROFESSOR

Nesse cabo-de-guerra entre colaboração e competição, os meios de comunicação ocupam lugar central, como arena de várias das batalhas.4 A mídia é hoje um dos espaços públicos proeminentes, central para a realização da democracia, em que circulam ideias e valores e onde a sociedade se apropria da informação e da cultura, num processo de constante (re)significação.

Para entender esse cenário, é preciso compreender sua gramática, seus símbolos, suas regras. Por um lado, é na própria experiência e no exercício cotidiano de relação com os meios de comunicação que a juventude se desenvolve. E isso não significa mais uma relação passiva com um aparelho de TV, mas uma relação ativa com um computador, com a Internet e com os games. Por outro lado, essa “escola da vida” traz com ela todas as perversidades típicas de um cenário em que um jovem cidadão é inserido num contexto capitalista típico, de formação de mercados e conquista de consumidores.

Aqui, a plena autonomia (ou o mais próximo possível disso), inclusive em relação ao próprio mercado, depende de processos educativos nos quais a escola e o professor têm papel central como organizadores de um olhar crítico revelador dessas perversidades. As manifestações da geração “alt + tab” são estruturantes de uma nova forma de exercício da cultura, e é justamente por isso que elas precisam ser compreendidas: para poderem ser discutidas e permanentemente questionadas, não em um exercício de negação, mas num exercício constante de olhar crítico (re)significante. Esse olhar pode, inclusive, estimular uma apropriação criativa dessas tecnologias, em que práticas colaborativas ganham espaço sobre simples exercícios competitivos.

O problema é que, nesse cenário de alta complexidade, há gerações inteiras de professores e professoras que, por não compreenderem as arenas da mídia, adotam a pura negação e a crítica como simples olhar externo desconstrutor. Para uma geração da juventude forjada nessas referências, ser submetida a um olhar simplista sobre as mídias e sobre as tecnologias é a revelação de uma fraqueza que contribui para a negação cada vez maior da escola como espaço de aprendizagem que possa ir além da formalidade. Assim, se experiência é parte essencial, mas absolutamente insuficiente, do exercício da autonomia, a crítica depende do reconhecimento dessa experiência para que possa se estabelecer.

EM CONCLUSÃO

A compreensão do papel da educação na luta pela prevalência da colaboração e do compartilhamento sobre a competição e o aprisionamento do conhecimento depende da elaboração sobre esse conjunto de fatores. É preciso libertar a própria educação dos modelos de competição e aprisionamento do conhecimento que a cercam e identificar como ela pode ser um fator de reforço da liberdade ou do aprisionamento do conhecimento. A defesa da liberdade do conhecimento não é uma simples questão de opção ideológica, mas uma postura a favor da luz e contra as trevas.

Assim, segue sendo essencial entender o modo como se organiza a apropriação capitalista da informação e do conhecimento, e sua dependência de escassez artificial, e identificar o papel da tecnologia como componente político fundamental, longe de uma suposta neutralidade. Num cenário em que a Internet e os meios de comunicação se colocam como arena de várias batalhas entre colaboração e aprisionamento, cabe à educação funcionar como um espaço de crítica e (re)significação – papel que, aliás, sempre coube a ela em relação a todos os processos.

A defesa da liberdade do conhecimento representa a afirmação de uma nova cultura que resgata os valores da colaboração e do compartilhamento – tão antigos quanto atuais –, em enfrentamento a uma cultura arcaica, a qual se afirma pela tentativa de aprisionar artificialmente o conhecimento que é livre por natureza.

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1. Informação é entendida aqui em seu sentido amplo, incluindo qualquer tipo de imagem, som ou dados.

2. N.E.: Este texto faz parte do livro “Além das redes de colaboração: internet, diversidade cultural e tecnologias do poder”, organizado por Nelson De Luca Pretto e Sérgio Amadeu da Silveira, e publicado pela editora EDUFBA em 2008. A publicação completa está acessível em http://www.tabuleirodigital.com.br/twiki/bin/view/Pretto/AlemRedes(link is external)

3. Por exemplo, custa praticamente a mesma coisa para produzir e distribuir um programa de TV para uma pessoa quanto custa para distribuí-lo para milhares de pessoas. Mesmo quando os custos marginais não são efetivamente zero, como quando o bem intangível está embarcado num suporte tangível para ser vendido (ex.: CD, DVD, etc.), a ideia essencial é que os custos fixos são altos e os custos marginais são baixos.

4. Essa nomenclatura bélica não é a única referência possível e corre o risco de ser simplista, mas funciona bem para descrever o atual cenário em que lógicas opostas buscam ocupar os mesmos espaços.

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REFERÊNCIAS

• GARN HAM, N. Capitalism and communication: global culture and the economics of information. London ; Newbury Park : Sage Publications, 1990.

• _____. Emancipation, the media, and modernity: arguments about the media and social theory. Oxford ; New York : Oxford University Press, 2000.

• LESSIG, L. Code and other laws of cyberspace. New York : Basic Books, 1999.

 

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