Cultura Aberta
Heather Ford1, Membro da organização Geeks in Action
Data da publicação: novembro 2009
Ao final de cada ano, desde 1927, a revista estadunidense TIME faz um perfil da pessoa, ou das pessoas que, na opinião dos editores, “mais afetaram as notícias e nossas vidas, para o bem ou para o mal”. Em 2006, mudando o foco de matérias anteriores sobre presidentes, cientistas e juízes, os editores da TIME escolheram “Você” como a pessoa do ano. Em 2006, a World Wide Web, de acordo com a TIME, “se transformou em uma ferramenta para agregar as pequenas contribuições de milhões de pessoas, tornando-as relevantes.2”
O que os editores da TIME reconheceram foi que uma transformação sísmica no acesso à tecnologia significou que milhões de pessoas através do globo agora têm voz e têm um público para suas ideias. Isso é revolucionário porque, ao contrário de mídias anteriores como a televisão e o rádio, o acesso aos meios de produção de mensagens - o que permite uma voz ativa na rede – se estendeu a todos que tenham acesso a um computador ou a um telefone celular conectado à rede mundial.
Talvez nunca antes na história nós tenhamos visto uma democratização tão importante dos meios de produção e distribuição de informação. Não estamos mais limitados a ser meros consumidores de informação - temos agora o potencial de nos tornarmos produtores ativos de informação. Esse poder não é pequeno. De acordo com a TIME, trata-se “de muitos tomando para si o poder de poucos, ajudando-se mutuamente em troca de nada, e sobre como isso não só mudará o mundo, mas também mudará a maneira pela qual o mundo muda.”
Essa revolução teve impacto fundamental na maneira pela qual nós produzimos cultura e mídia. Com milhões de pessoas se somando ao mercado para produzir informação, ideias e entretenimento, todas elas com motivações para a criação diferentes das motivações da mídia estabelecida, nós assistimos a um realinhamento da maior importância no poder dos muitos versus os poucos. Computação, armazenamento e capacidade de comunicação – cada vez mais os meios de capital físico básico necessários para produzir informação, conhecimento e cultura no século XXI estão nas mãos de praticamente todas as pessoas conectadas à rede: de 600 milhões a 1 bilhão de indivíduos ao redor do planeta.
A EMERGÊNCIA DO AMADOR
Na história recente, o termo “amador” tornou-se negativamente associado com “alguém que é desqualificado ou insuficientemente hábil”3, mas originalmente o termo veio do francês, significando“alguém que ama algo”. Hoje, a maior enciclopédia gratuita do mundo (a Wikipedia), a rede de milhões de canais do YouTube, e os milhões de blogs do mundo são abastecidos por amadores: pessoas que criam não prioritariamente por dinheiro, mas por amor às suas criações.
Esse fato não passou despercebido por aqueles que anteriormente detinham o monopólio sobre a publicação de informação e entretenimento. Como em qualquer revolução, sempre há vítimas da nova era - como as forças se realinham por si mesmas, modelos de negócio perecem e grandes indústrias, incapazes de caminhar com as mudanças em curso, sucumbem para criar o caminho do novo.
Uma da principais questões na qual esse embate está sendo travado é no debate entre o que vem sendo chamado de “mídia cidadã” e a mídia estabelecida o mercado.
MÍDIA CIDADÃ VERSUS MÍDIA TRADICIONAL
De acordo com muitas vozes de representantes da mídia tradicional, as pessoas que produzem notícias e análises fora das organizações tradicionais de mídia (os produtores de “mídia cidadã”) não são capazes de oferecer a mesma qualidade de notícias que os jornalistas profissionais oferecem, usando como justificativa a falta de mediadores capazes de editar e checar a veracidade dos trabalhos. Essas mesmas vozes alegam que amadores que não recebem um salário por sua escrita não são capazes de empreender o tempo necessário para realizar reportagens investigativas e análises profundas como os jornalistas pagos são capazes de fazer.
Há também quem reconheça o poder dos jornalistas cidadãos (incluindo editores de blogs, twitters e podcasts, para dar nome a alguns) de dar voz a notícias e opiniões que são geralmente ignoradas pela mídia corporativa. Sem relações com anunciantes (e às vezes governos) e operando fora da economia de escala (que impede uma cobertura investigativa sobre questões de nichos específicos menos populares ou que consumam muito tempo), os jornalistas cidadãos são capazes de produzir com frescor conteúdos que ultrapassam em qualidade as reportagens geralmente pré-concebidas da mídia corporativa.
O jornalismo cidadão do povo iraniano no desfecho das recentes eleições manteve o mundo informado sobre o regime repressor. De acordo com o Washington Times, “listas de twitters bem realizadas mostraram um fluxo constante de atualização sobre a situação e links para fotos e vídeos, nos quais se desenhou um retrato da rebelião em andamento. Fotos e vídeos digitais proliferaram e foram recebidos e reportados em inúmeras de fontes externas, a salvo da derrubada da Internet realizada pelo regime iraniano.4”
Está claro que existe uma multiplicidade de fontes de notícias de boa e má qualidade, seja no âmbito da mídia cidadã ou da mídia tradicional. Como usuários e participantes de tais informações, estamos reconhecendo rapidamente o valor de consumir pontos de vista diversos para formar nosso entendimento – especialmente em uma sociedade onde somos frequentemente convidados a apresentar nossas próprias opiniões em blogs, twitter, fóruns e outros canais em rede.
ABERTO E REMIXÁVEL VERSUS FECHADO E PROPRIETÁRIO
Quando as pessoas começaram a produzir e conectar-se a outras em rede, um bom número de projetos foi construído a partir de laços informais entre aqueles que tinham interesses e paixões similares.
Sem dúvida, os laços mais produtivos são conduzidos por pessoas que compartilham a propriedade intelectual de suas contribuições com outras. Em relação à programação em informática, esse fenômeno é chamado de “código aberto” - com o termo “conteúdo aberto” sendo usado recentemente como extensão, para descrever qualquer tipo de trabalho criativo, ou conteúdo, publicado em um formato que permite explicitamente a qualquer um copiar e modificar suas informações.5 O maior projeto de conteúdo aberto é a Wikipedia, onde qualquer um que lê o material publicado tem a possibilidade e permissão de editá-lo (ou remixá-lo).
Lawrence lessig é o fundador do Creative Commons, uma organização que foi fundada para desenvolver um conjunto de licenças de direitos autorais disponíveis para criadores escolherem as liberdades sob as quais podem lançar suas obras. lessig acredita que sistemas como o do Creative Commons são necessários porque as leis de direito autoral criminalizam o tipo de colaboração que os produtores amadores estão criando hoje.
Atualmente existem mais de 150 milhões de obras publicadas sob as licenças do Creative Commons. Das mais de 35 mil músicas no Jamendo - plataforma de compartilhamento de música que permite aos artistas compartilhar suas obras usando licenças Creative Commons - às mais de 60 mil imagens no Flickr que estão disponíveis para que outros remixem e compartilhem, ao Connexions - uma plataforma de aprendizado aberto que permite que educadores e aprendizes montem cursos a partir de elementos de ensino modular-, pessoas ao redor do mundo estão construindo uma cultura de propriedade alternativa que permite a elas co-criar essa mesma cultura, ao invés de serem avisadas para “olhar mas não tocar”.
O Creative Commons não ficou livre de críticas. Há quem critique o projeto por achar que ele se alinha à privatização da cultura ao usar o arcabouço da lei de copyright para desenvolver um sistema complicado de “bens” culturais semi-privados que são frequentemente incompatíveis uns com os outros.6 De acordo com David Berry e Giles Moss, “Nós precisamos de consciência e combate, não advogados exercendo suas habilidades e vocabulário legais em licenças complicadas, casos e jurisprudências.”7
Outros argumentam que, diferentemente dos movimentos de software livre e código aberto, não há um padrão de liberdade para as licenças do Creative Commons, e que a licença “Atribuição- Compartilhamento pela mesma licença” é a única licença verdadeiramente “copyleft”.8 Em um esforço para definir um padrão de liberdade, Benjamin Mako Hill desenvolveu uma “Definição de Obras Culturais livres”9 que se aplica a apenas duas das seis combinações de licenças Creative Commons: Atribuição e Atribuição-Compartilhamento pela mesma licença.10
O FUTURO?
Não é mais controverso dizer que o futuro da produção cultural será aberto. O fato de que modelos abertos que se fiam em contribuições não pagas de usuários estão ultrapassando os modelos proprietários em termos de uso e até de qualidade, significa que indústrias baseadas em modelos de negócio proprietários estão se sentindo cada vez mais ameaçadas. A partir do momento em que a Wikipedia supera a Enciclopédia Britânica e o linux desbanca a Microsoft em número de servidores ao redor do mundo, essas indústrias lutam para se adaptar à nova realidade.
As duas estratégias empregadas por indústrias proprietárias face a essas ameaças foram a de exercer um lobby para maior aplicação do que vem sendo chamado de “as guerras do copyright”11, e a adoção de princípios do código aberto para parte de seus negócios. No começo de 2009 a Enciclopédia Britânica convidou pessoas que fazem parte do seu público para escreverem artigos da sua edição online12, e a Microsoft vem fazendo experiências com o uso de código aberto desde 2004.13 Apesar de membros das indústrias proprietárias de música, software, cinema e publicações editoriais continuarem a combater a posse distribuída da propriedade intelectual, está se tornando cada vez mais claro que nós caminhamos mais em direção a modelos abertos do que fechados.
Charles Leadbeater, em uma conferência da Technology Education and Design (TeD), em 2005, explica: “ As razões pelas quais – apesar de todos os esforços para podá-los, constrangê-los, impedi-los - os modelos abertos emergirão com uma força tremenda, é que eles multiplicam nossos recursos produtivos. E um dos motivos pelos quais isso ocorre é o fato de que eles transformam usuários em produtores, consumidores em criadores.”14
Modelos abertos prevalecerão porque são mais eficientes para a produção e criação de obras culturais e científicas. Mas eles não são somente mais eficientes. Eles também respondem a uma profunda necessidade que há em cada um de nós de nos conectarmos uns aos outros - não para algum ganho econômico, mas para satisfazer a necessidades bastante humanas, tais como a necessidade de reconhecimento, respeito e o prazer da co-criação. Se o futuro da produção cultural é aberto (em suas variadas formas), então os novos debates serão certamente em torno de níveis de abertura adotados por diferentes produtores e comunidades de produtores, e seus efeitos sobre a produtividade, a democracia e o avanço científico e cultural.
* Este artigo faz parte da publicação Global Information Society Watch (GISWatch) 2009 - a terceira de uma série de relatórios anuais que cobrem, de uma perspectiva crítica, o estado da sociedade da informação a partir do ponto de vista das organizações da sociedade civil ao redor do mundo. Esta é uma publicação da APC - Associação para o Progresso das Comunicações - em parceria com o Hivos - Humanist Institute for Cooperation with Developing Countries. Publicado originalmente em http://www.gISWatch.com, este artigo foi traduzido para a língua portuguesa pela revista poliTICs.
---
1. Tradução de Giuliano Djahdjah Bonorandi para a poliTICs.
2. Ver: TIME (2008) TIME’s Person of the Year 1927-2008. http://www.time.com/time/coverspoy
3. Ver: Definição de “amador“ no ikitionary: http://pt.wiktionary.org/wiki/amador
4. Ver: Washington Times Editorial (2009) Iran’s Twitter revolution, The Washington Times, 16 June. http://www.washingtontimes.com/news/2009/jun/16/irans-twitter-revolution
5. Ver definição da Wikipedia de “conteúdo aberto” (em inglês) : http://en.wikipedia.org/wiki/Open_content
6. Os “bens” licenciados pelo Creative Commons estão sobre termos diferentes e frequentemente não podem ser compartilhados e remixados uns com os outros. Eles se mantêm privados de algum modo porque usam a lei do copyright para permitir que os detentores dos direitos os retenham.
7. Ver: Berry, D. and Moss, g. (2005) On the “Creative Commons”: a critique of the commons without commonalty, Free software magazine, Issue 5, 15 July. http://fsmsh.com/1155
8. Ver: Myers, r.(2008) Noncommercial Sharealike Is Not Copyleft, 24 February. http://robmyers.org/weblog/2008/02/noncommercial-sharealike-is-not-copyl...
9. Ver: Mako Hill, B. (2005) Towards a standard of Freedom: Creative Commons and the Free software movement. http://mako.cc/writing/toward_a_standard_of_freedom.html
10. N.T.: O coletivo Criei Tive Como - um dos pólos de crítica à Creative Commons no Brasil - criou e traduziu outras licenças alternativas. Ver: http://www.crieitivecomo.org
11. Ver: Stephey, M. J. (2008) lawrence lessig: Decriminalizing the remix, Time.com, 17 October. http:www.time.com/time/business/article/0,8599,1851241,00.html
12. Ver: Moore, M. (2009) Encyclopaedia Britannica fightsback against Wikipedia, Telegraph, 23 January. http://www.telegraph.co.uk/culture/books/book-news/4318176/Encyclopaedia...
13. Ver: Bean, J. (2009) A Brief History of Microsoft Open Source, 9 February. http://www.everyjoe.com/articles/a-brief-history-of-microsoft-open-sourc...
14. Ver: leadbeater, C. (2005) TED Talk: Charles leadbeater on innovation. http://www.ted.com/index.php/talks/charles_leadbeater_on_innovation.html