Um ano de Cablegate. Como WikiLeaks influenciou a política extena, o jornalismo, e a Primeira Emenda
Trevor Timm, advogado e ativista da Electronic Frontier Foundation especializado em liberdade de expressão e transparência governamental
Data da publicação: dezembro 2011
Há um ano, em 28 de novembro de 2010, o WikiLeaks iniciou a publicação de um conjunto de mais de 250 mil telegramas do Departamento de Estado dos EUA – iniciativa conhecida como Cablegate, que passou a ser uma das principais referências para reportagens de jornais em todo o mundo.1 As revelações abriram ao público uma janela para o funcionamento interno de governos em uma escala sem precedentes, e neste processo acabou transformando o jornalismo na era digital.
Em reconhecimento, Julian Assange, fundador do WikiLeaks, acaba de receber a versão australiana do Prêmio Pulitzer,2 além do prêmio Martha Gellhorn de jornalismo que já havia obtido no Reino Unido este ano.3 Como observou Glenn Greenwald, da publicação online Salon, “WikiLeaks produziu mais ‘furos’ de reportagem durante o último ano que o conjunto da mídia”.4 Mas ao mesmo tempo o Departamento de Justiça vem investigando possível conduta criminosa do WikiLeaks por fazer o que qualquer outra empresa de mídia tem feito nos EUA durante séculos – publicar informação verdadeira a serviço do interesse público.
Aqui está um resumo do impacto do Cablegate no jornalismo relacionado a seis países que são centrais para a política externa dos EUA, e sobre por que é vital para a mídia defender o direito do WikiLeaks garantido pela Primeira Emenda de publicar informação sigilosa.
OS TELEGRAMAS DO WIKILEAKS E SUA CONTRIBUIÇÃO AO JORNALISMO
Líbia
Neste último verão dos EUA o senador John McCain foi o membro mais incisivo do Congresso a defender uma ação militar mais agressiva para remover do poder Muamar Gadafi. Mas m telegrama reproduzido pelo WikiLeaks revelou que há apenas dois anos o senador McCain tinha prometido pessoalmente armar Gadafi com equipamento milita americano.5 Gadafi oi um dos mais ácidos críticos das publicações do WikiLeaks. Os telegramas revelaram a ganância e corrupção de seu regime e, de acordo com algumas reportagens, pareciam tê-lo deixado enlouquecido. Ele chegou a acusar a CIA de vazar os documentos para desestabilizar seu governo.6
Paquistão
Muito antes que comandos dos EUA invadissem secretamente o Paquistão para matar Osama bin Laden em agosto, os telegramas confirmaram queos militares americanos já estavam operando em segredo no interior do país – um fato que o governo dos EUA tinha negado por vários meses. Apesar das declarações públicas de apoio ao governo do Paquistão, os telegramas também revelaram que diplomatas dos EUA há muito tempo consideravam o serviço de inteligência paquistanês, o ISI, como uma “organização terrorista” que tacitamente apoia a al-Qaeda e o Taliban.7
Iêmen
Um dos primeiros telegramas publicados em 2010 confirmava informações de outra ação militar secreta que os EUA já tinham negado – ataques de aeronaves não tripuladas (drones) no Iêmen. Ao mesmo tempo, os telegramas detalhavam o acordo secreto entre o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, e os EUA para permitir os ataques, que Saleh negava publicamente. Quando a CIA matou extrajudicialmente o líder da al-Qaeda e cidadão americano Anwar al-Awaki com um ataque de drone em outubro de 2011, os EUA anunciaram publicamente sua morte mas recusaram-se a divulgar qualquer informação oficial sobre o ataque. Um telegrama publicado pelo WikiLeaks forneceu um esquema de como o ataque foi realizado.8
Egito
Durante a revolução egípcia, os telegramas revelaram ao mundo uma visão dura e sem rodeios da brutalidade de Mubarak e seu regime, fatos que os egípcios já bem sabiam. Os telegramas pintaram um quadro claro das relações íntimas dos EUA com o regime, mas também confirmaram para a comunidade internacional que a brutalidade policial no Egito era rotineira e ampla e que o uso de tortura era “tão comum que o governo egípcio deixou de negar que ela existe”.9
Tunísia
Foi atribuida aos telegramas influência direta obre o evento que veio a ser conhecido como a Revolução do Jasmim. Nos estágios iniciais dos protestos políticos de massa na Tunísia, o influente grupo de blogueiros Nawat10 criou um sítio Web denominado TuniLeaks e divulgou amplamente os telegramas aos tunisianos. Os telegramas confirmavam que os EUA viam o presidente Ben Ali como um tirano corrupto e brutal e estimulou a crescente revolta. A Anistia Internacional considerou o WikiLeaks e seus parceiros na mídia como “catalisadores” do movimento popular que depôs Ali.
Iraque
Um telegrama publicado pelo WikiLeaks pode vir a ser seu mais duradouro legado – a CNN informou há um mês11 que esse telegrama teve um papel em apressar o retorno de todas as tropas dos EUA no Iraque e terminar uma guerra que já dura dez anos. As negociações para estender a presença das tropas americanas além da data-limite original de 2011 foram prejudicadas quando o WikiLeaks publicou um telegrama revelando que os EUA tentaram encobrir um incidente em que soldados reconhecidamente mataram mulheres e crianças inocentes no Iraque12.Os negociadores iraquianos indicaram que o telegrama deu a eles a justificativa para recusar a extensão do prazo de presença das tropas.
Tudo isso é apenas a ponta do iceberg – os telegramas pautaram praticamente todas as principais reportagens de política internacional em 2011. Em abril, o Atlantic Wire informava que cerca de metade dos assuntos tratados pelo New York Times baseavam-se em documentos do WikiLeaks. Todos os telegramas já foram publicados, mas seu impacto ainda está reverberando. O notório ditador Robert Mugabe pode ser o próximo a sentir seus efeitos. A BBC informou recentemente que as revelações do WikiLeaks podem forçá-lo a renunciar, algo antes “inimaginável”.13
O IMPACTO DE LONGO PRAZO: WIKILEAKS E AS AMEAÇAS À PRIMEIRA EMENDA
Ao rever como os telegramas divulgados pelo WikiLeaks enriqueceram e coloriram nosso entendimento da história recente, é impossível ignorar que o Departamento de Justiça está investigando indivíduos supostamente associados ao WikiLeaks, alegando possíveis violações com base no Ato de Espionagem de 1917 – uma relíquia legal da Primeira Guerra Mundial – que tem sido usado para punir vazamentos de informações oficiais.
Nenhuma organização de mídia foi até hoje acusada, e muito menos condenada, pelo Ato de Espionagem. Estudiosos da Constituição americana concordam de forma quase unânime que um processo legal contra uma organização de mídia seria devastador para a liberdade de expressão e violaria a Primeira Emenda.14 Sabe-se que o Departamento de Justiça tenta evitar esse problema constitucional tentando enquadrar o líder do WikiLeaks, Julian Assange, na teoria da “conspiração para cometer espionagem” por induzir sua fonte a fornecer informação sigilosa.15
Pedir informação a fontes é obviamente parte do processo normal de obtenção de notícias por qualquer repórter, razão pela qual o professor de Yale Jack Balkin afirmou que a estratégia do Departamento de Justiça “ameaça também os jornalistas tradicionais.”16 O especialista em sigilo Steven Aftergood argumentou que um processo baseado nessa teoria poderia criminalizar as “convenções comuns de divulgação de informações sobre segurança nacional”.17 E o ex-diretor jurídico do New York Times James Goodale assinalou que o Departamento de Justiça poderia na verdade estar investigando o WikiLeaks por “conspiração para cometer jornalismo”.18
No entanto as grandes empresas de mídia, especialmente o New York Times, pouco fizeram para defender o direito de publicar do WikiLeaks, apesar de juristas tanto da esquerda19 como da direita20 afirmarem que é impossível distinguir o WikiLeaks do Times nos termos da lei.
A relação tumultuosa de Assange com o Times e outros parceiros da mídia pode ser a razão do silêncio do Times. Mas seja qual for a opinião sobre Assange, deixar de defender o direito do WikiLeaks de publicar documentos sigilosos oficiais é perigosamente míope. Com toda a atençã que o WikiLeaks tem recebido, é fácil esquecer que os jornais têm publicado informação secreta há décadas. De fato, no ano passado, histórias baseadas em informações sigilosas que não surgiram pelo WikiLeaks sobre o Afeganistão, o Paquistão, a Rússia, o Iêmen, a Somália, a Líbia, o Irã e a China têm marcado presença nas páginas das principais publicações do país.21 E grande parte da informação sobre a qual essas reportagens são baseadas está em um nível de sigilo mais alto que qualquer documento já publicado pelo WikiLeaks.
O New York Times pode sentir-se seguro pela indicação do Departamento de Justiça que o jornal não é alvo de investigação, mas o argumento “acredite em nós” pode durar só até o próximo “furo” de reportagem. Há menos de uma década o então Procurador Geral Alberto Gonzales afirmou várias vezes que gostaria de investigar o New York Times segundo o Ato de Espionagem, pelas suas reportagens sobre os “grampos” ilegais feitos nos EUA pela Agência de Segurança Nacional (NSA).22 Os repórteres do Times James Risen e Eric Lichtblau ganharam o Prêmio Pulitzer por expor graves violações constitucionais que também estavam classificadas com o máximo grau de sigilo (“top secret”). Mas se os processos contra o WikiLeaks vingarem, uma ameaça como a de Gonzales poderia forçar um jornal a cancelar uma reportagem como essa, ou pior: o próximo ganhador do Pulitzer poderia ser forçado a aceitar seu prêmio na cela de uma prisão.23
As principais empresas jornalísticas dos EUA são as que mais têm a perder em um processo contra o WikiLeaks. Uma acusação ou não contra Julian Assange não pode extinguir a ideia que WikiLeaks representa. Agora sabemos que existem tecnologia e expertise para criar plataformas de denúncias operadas anonimamente que podem lutar pela transparência governamental através da divulgação mundial de informações. Como a revista Economist afirma, “prender Thomas Edison em 1890 não escureceria a noite”.24 E apesar da falta de vontade das empresas de mídia em defender o WikiLeaks, elas estão também tentando copiar o modelo do WikiLeaks.25
Enquanto a mídia analisa o amplo impacto dos telegramas divulgados pelo WikiLeaks, é importante que ela também defenda a ideia por trás do WikiLeaks – porque se ela não defender o direito de publicar do Wikileaks, no final será mais difícil preservar os direitos de publicação das grandes organizações como o New York Times. A real vítima de um processo contra o WikiLeaks não será Julian Assange. Será a própria Primeira Emenda.
Versão traduzida e adaptada do original publicado pela Electronic Frontier Foundation. Ver https://www.eff.org/deeplinks/2011/11/cablegate-one-year-later-how-wikil...
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1. Ver http://www.nytimes.com/2010/11/29/world/29cables.html?pagewanted=all
2. O anúncio oficial do prêmio está em http://www.walkleys.com/news/5131
3. Ver http://www.guardian.co.uk/media/2011/jun/02/julian-assange-martha-gelhor...
4. Ver http://www.salon.com/2011/11/27/wikileaks_wins_major_journalism_award_in...
5. Ver http://www.politico.com/news/stories/0811/62114.html
6. Ver http://thelede.blogs.nytimes.com/2011/01/17/qaddafi-sees-wikileaks-plot-...
7. Ver http://www.bbc.co.uk/news/world-south-asia-13191241
8. Ver http://www.nytimes.com/2011/10/09/world/middleeast/secret-us-memo-made-l...
9. Ver http://www.guardian.co.uk/world/2011/jan/28/egypt-police-brutality-tortu...
10. Ver http://nawaat.org/portail
11. Ver http://edition.cnn.com/2011/10/21/world/meast/iraq-us-troops
12. Ver http://www.mcclatchydc.com/2011/08/31/122789/wikileaks-iraqi-children-in...
13. Ver http://www.bbc.co.uk/news/world-africa-15446108
14. Ver http://www.nytimes.com/2010/12/02/world/02legal.html
15. Ver https://www.nytimes.com/2010/12/16/world/16wiki.html
16. Ver http://balkin.blogspot.com/2010/12/wikileaks-and-mayflower-hotel.html
17. Ver https://www.fas.org/blog/secrecy/2011/04/grand_jury_wikileaks.html
18. Ver http://www.thedailybeast.com/articles/2011/06/13/wikileaks-probe-spoils-...
19. Ver http://www.lawfareblog.com/2010/12/problems-with-the-espionage-act
20. Ver http://www.lawfareblog.com/2010/12/seven-thoughts-on-wikileaks
21. Ver por exemplo http://www.newyorker.com/online/blogs/comment/2011/11/steve-coll--afghan... sobre o Afeganistão e http://www.salon.com/2011/07/05/leaks_2 sobre o Paquistão.
22. Ver http://www.pulitzer.org/archives/7037
23. Ver http://www.pulitzer.org/works/2006-National-Reporting-Group1
24. Ver http://www.economist.com/blogs/democracyinamerica/2010/12/after_secrets
25. Ver http://www.forbes.com/sites/jeffbercovici/2011/10/26/wsj-nyt-wikileaks-k...