O Portal do Software Público Brasileiro em primeira análise
Christiana Freitas, pesquisadora da Universidade de Brasília
Corinto Meffe, gerente de inovações tecnológicas, Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação-SLTI, Ministério do Planejamento
Data da publicação | novembro 2009
No final do ano de 2008 foi iniciada uma pesquisa sobre o impacto do software público na sociedade brasileira. O principal objetivo das investigações que serão aqui apresentadas sobre o Software Público Brasileiro é o de analisar as oportunidades do modelo e suas implicações sociais como resultado do estágio atual da Sociedade da Informação, caracterizada por práticas e relações estabelecidas segundo a lógica de produção compartilhada de conhecimento. A rede social do Portal do Software Público é composta de uma variedade de atores envolvidos em uma complexa rede de relações criada com a finalidade de desenvolvimento do software público no Brasil. Essa rede representa uma iniciativa pioneira, a única deste tipo registrada no mundo até o presente momento. O objeto de investigação é o Portal do Software Público Brasileiro, um espaço virtual criado em 2007 sob a coordenação da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento do Governo Federal brasileiro.
O principal objetivo do Portal é promover o desenvolvimento de um "ambiente colaborativo que não só reduz os custos do governo, mas também permite o desenvolvimento de artefatos tecnológicos" (Santanna, 2007). De acordo com Santanna, "o conceito de utilização livre de código fonte - que deve sustentar as sociedades modernas - é central para o Portal do Software Público Brasileiro. A Administração Pública brasileira precisava de um ambiente no qual diversos atores sociais fossem capazes de compartilhar suas soluções já testadas e aprovadas a fim de evitar, entre outros fatores, a sobreposição de custos com outras soluções que são similares às que já existem" (Santanna, 2007).
Autores contemporâneos tais como Castells, Benkler e Simon destacam a importância da produção compartilhada de conhecimento para o desenvolvimento econômico neste período histórico. A Revolução Informacional e Tecnológica - em curso desde o final do século XX - tem transformado cada vez mais relações tradicionais, valores e práticas nas áreas científica, tecnológica, política, cultural e sobretudo econômica. Este período histórico é caracterizado por um aumento da importância dos bens intangíveis - como a informação e o conhecimento - para o contexto macroeconômico das sociedades contemporâneas. Soluções de software, no presente momento, são alguns dos principais artefatos envolvidos no processo (Meffe, 2008).
Benkler desenvolveu o conceito de "commons based peer production" para designar a nova forma de produção sustentada na colaboração entre pares. Um exemplo desta forma é aquela experimentada pelos atores sociais envolvidos no Portal do Software Público Brasileiro. A produção por pares representa um novo meio de geração de riqueza, onde uma comunidade aberta coopera, espontaneamente, de forma descoordenada e voluntária, para o desenvolvimento de bens informacionais. Esse modelo é diferente daquele verificado em organizações tradicionais, em que se observa um rígido sistema de funcionamento administrativo com base em hierarquias e na produção de mercadorias cujo principal objetivo é o lucro ou resultado imediato no mercado. A produção de conhecimento científico-tecnológico com base na colaboração entre pares cria novas práticas e relações sociais e econômicas. A colaboração com base na produção cria novas relações e padrões econômicos (Simon & Vieira, 2008; Benkler, 2007). Softwares livres e públicos têm um papel central neste processo, apresentando em sua produção e armazenamento a lógica do commons desenvolvida por Benkler.
O CONCEITO DE SOFTWARE PÚBLICO E O PORTAL
A pesquisa analisa as redes sociais envolvidas com a produção e divulgação do software público no ambiente do Portal. O software público é desenvolvido com recursos públicos por uma entidade governamental ou parceiros da sociedade com interesses comuns. Assim, o Software Público Brasileiro (SPB) representa a construção de um novo conceito com base nos princípios definidos pelo software livre. O bem "software" é tratado como um produto de acesso ao público em geral, que se utiliza de um espaço de produção colaborativa cujo resultado fica disponível para toda a sociedade. O Portal do SPB promove uma economia cuja base é o conhecimento compartilhado, onde a oferta e a procura estão reunidas no mesmo espaço virtual, destinado não somente aos atores sociais e econômicos interessados em estabelecer relações comerciais, mas também a toda a sociedade. Assim, produtores de software e outros usuários com interesses comuns podem se beneficiar do ambiente.
Além disso, o Portal colabora para a geração de emprego e renda, facilitando o contato entre pessoas que pretendem utilizar soluções informatizadas e aqueles que fornecem serviços. A rede estabelecida cria um complexo sistema de garantias econômicas, políticas e relações sociais que envolvem diversas esferas da sociedade. O software, neste contexto, não é apenas um produto, mas também um artefato por meio do qual seus criadores proporcionam novos referenciais de produção. Os atores neste cenário são simultaneamente produtores e consumidores, o que Tapscott & williams definem como os prosumers" (Tapscott & williams, 2007).
A ANÁLISE DO PORTAL SOFTWARE PÚBLICO BRASILEIRO
A investigação em curso aplica princípios teóricos da Social Network Analysis (wasserman & Faust, 1994) para compreender esses novos modelos de produção e distribuição de conhecimento científico-tecnológico. As redes sócio-técnicas são os objetos de estudo. As redes que aqui interessam são aquelas compostas de atores envolvidos com a produção de software público: cientistas, tecnólogos, gestores governamentais, agentes e membros da sociedade civil em geral. O centro da análise é a relação estabelecida entre eles. A partir da avaliação das redes é possível elaborar mapas e tipologias de estruturas sociais.
Como já dito, o objetivo global do estudo é o de conhecer as implicações políticas, sociais e econômicas do uso do Software Público Brasileiro e as suas conseqüências para o desenvolvimento do país. A pesquisa avalia o programa governamental para construir uma tipologia dos atores individuais e coletivos do Portal . Com isto, torna-se possível definir indicadores de gestão e de qualidade essenciais para a consolidação e divulgação do programa.
Indicadores tecnológico-informacionais são desenvolvidos e aplicados para compreender a realidade do Brasil e seus avanços e limitações no que diz respeito à educação e à preparação da população para a participação na atual Sociedade da Informação. O referencial teórico para o desenvolvimento desses indicadores é o conceito de capital tecnológico-informacional (Freitas, 2004). Este tipo de capital surge atualmente como resultado da constante necessidade de aquisição de conhecimentos específicos para controlar e gerenciar máquinas que fazem parte da vida dos indivíduos na sociedade contemporânea.
O conceito de capital tecnológico-informacional considera vários elementos como condições essenciais para a inclusão digital. Essas condições são as máquinas, obviamente imprescindíveis, a formação cultural e educacional - que contribui para a fundação do conhecimento tácito - e questões relacionadas ao conhecimento técnico necessário para ter acesso a todas as oportunidades disponíveis ou possibilidades de crescimento. A inserção do indivíduo na Sociedade da Informação acontece quando tais condições são satisfeitas.
A pesquisa analisa a rede social que caracteriza o Portal do Software Público Brasileiro ou o "ecossistema de produção do software público". Foram realizadas entrevistas com os atores mais envolvidos a produção de software livre e público no Brasil. Um questionário será aplicado e estará disponível online por três meses, para que todos os vinte e nove mil membros do Portal tenham acesso ao seu conteúdo.
Os resultados parciais dos dados obtidos até o momento demonstram o sucesso da iniciativa. Esta afirmação baseia-se em alguns fatos comprovadamente importantes. Alguns destes podem ser identificados na análise da história do CACIC - o primeiro software público brasileiro. Esta solução de sistema de inventário foi desenvolvida por uma empresa governamental, a DATAPREV, no ano de 2001. Seu lançamento foi em 2005 no 6o Fórum Internacional de Software Livre em Porto Alegre, Brasil, utilizando a segunda versão da licença GPL em português (Peterle, Meffe, Castro, Santanna & Bretas, 2005).
No início da sua aplicação, o software CACIC tinha somente a intenção de satisfazer a demandas internas do governo brasileiro. Gradualmente, o artefato começou a responder e atender às necessidades de outros atores e entidades que não estavam necessariamente na esfera governamental. Este fato levou os pesquisadores à conclusão de que o software estava atendendo a uma demanda reprimida da sociedade brasileira. Em um curto período de tempo, após a liberação do software, uma significativa rede de usuários e desenvolvedores foi construída.
Ademais, outros dados interessantes foram observados: o fato do software CACIC ter sido oferecido em um ambiente colaborativo público intensificou o seu uso. Naquele momento, existiam ferramentas proprietárias, bem como outras soluções livres e abertas que ofereciam as mesmas funcionalidades, algumas delas mais consolidadas e estáveis no mercado do que o próprio CACIC. Mesmo assim, este software foi rapidamente adotado por diferentes entidades e empresas. A sua rápida distribuição resultou em uma rede de prestadores de serviços estruturada em todos os vinte e sete estados do Brasil. Uma parcela da sociedade começou progressivamente a assumir um papel dinâmico no processo de desenvolvimento deste tipo de software, não só participando da sua construção, mas também colhendo outros tipos de benefícios - não apenas econômicos - como resultado da produção com base no conhecimento compartilhado.
No final de 2006, um ano e meio após o lançamento CACIC, a ferramenta não havia sido substituída por outra, indicando que os usuários estavam satisfeitos com o software. Duas outras características foram percebidas. Um número significativo de usuários não quis fazer alterações na documentação disponível, demonstrando a sua solidez. Além disso, os fornecedores de serviços demonstraram disposição em participar da migração para uma nova versão do software, estabelecendo uma rede de colaboração entre o governo e a iniciativa privada. Resultados como estes confirmam ma das principais hipóteses da investigação: os artefatos tecnológicos disponíveis no Portal preenchem uma lacuna do mercado, gerando aumento de produção, de competitividade, de inovação e de qualidade das soluções. Em 2006, já era possível identificar uma produção em rede constituída a partir do Portal, reunindo prestadores de serviço, oferta e demanda em um espaço único, possibilitando a realização de novos contratos e relações comerciais entre os diferentes atores.
Um fato importante observado atualmente é que novos usuários estão constantemente se associando ao Portal do SPB. Em abril de 2009, quando a iniciativa completou dois anos, havia em torno de 40.000 usuários registrados. Ao longo dos últimos três meses, um pouco mais de cinco mil novos usuários realizaram seus cadastros. Esse fato aponta uma média de 1.700 novos usuários por mês.
Muito embora o ingresso constante e significativo de novo usuários formais no Portal seja observado, alguns fatores limitam a contribuição dos participantes no processo efetivo de produção de conhecimento compartilhado. Quando se analisa o número de usuários que realmente contribuem para o desenvolvimento compartilhado de soluções, a conclusão é de que a participação não é tão elevada quanto se esperava e não inclui dois terços dos usuários formalmente cadastrados. Uma das razões para isso é o fato de que muitos atores nesta rede social não têm suficiente capital tecnológico-informacional acumulado para habilitá-los a participar. Este cenário leva-nos à conclusão de que as iniciativas para promover a inclusão digital precisam ser associadas a outros programas governamentais como o discutido neste trabalho.
CONCLUSÃO
A experiência bem sucedida do Portal do Software Público Brasileiro sugere a formação de um novo modelo de produção e distribuição de conhecimento científico-tecnológico. Com esta iniciativa, o Brasil oferece um modelo original de desenvolvimento para o país. Ao invés de adotar práticas comumente atribuídas a aquelas de países em desenvolvimento - em que "o processo de mudança técnica é limitada à assimilação de inovações e melhorias produzidas em países desenvolvidos" (Rezende & Tafner, 2005: 46) - o Brasil oferece, neste caso, um modelo original que gera "competitividade autêntica" no mercado mundial com base em novas políticas e recursos tecnológicos. Isto significa que a iniciativa brasileira de desenvolver o software público tem a "capacidade de manter ou aumentar a participação do Brasil no mercado internacional a longo prazo, promover o desenvolvimento econômico e a melhoria da qualidade de vida da sua população" (Rezende & Tafner, 2005: 46).
Com os dados recolhidos até o momento, observa-se uma tendência que confirma as hipóteses elaboradas no início da investigação. A mais importante delas refere-se à relação entre a utilização do Portal e os importantes benefícios e vantagens para a sociedade brasileira. O espaço virtual reúne, simultaneamente, atores que oferecem e demandam produtos e serviços. Assim, elementos básicos para a definição de um modelo econômico para o desenvolvimento dos bens intangíveis podem ser derivados da análise das características deste espaço.
As práticas estabelecidas no Portal tendem a gerar fontes alternativas de renda para os indivíduos, uma vez que o Portal possibilita a associação de atores antes pouco ou nada conectados aos seus grupos de interesse. Dito de outra forma, este espaço virtual oferece uma oportunidade singular para a associação de atores com objetivos comuns. Estes integram uma rede social que apresenta uma variedade significativa de laços sociais e econômicos mais ou menos intensos. Essa intensidade vai determinar o potencial de inclusão social e digital de um indivíduo a partir do uso do Portal do Software Público Brasileiro.
Outra conclusão importante é que o software público não só comprovou que colabora para a redução de custos, mas também para o aumento da qualidade e agilidade no processo de resolução de problemas dos softwares. Quando um número considerável de indivíduos trabalha colaborativamente para o desenvolvimento de um artefato tecnológico, uma quantidade significativa de tempo é economizada e o seu uso, modificação e distribuição são otimizados.
Um ecossistema de produção colaborativa de conhecimento leva a melhores resultados em um menor espaço de tempo do que a produção de conhecimento que se realiza em um ambiente não-colaborativo. É importante destacar também que os resultados dessa produção são compartilhados com toda a sociedade, que se apropria publicamente dos resultados. Assim, o Portal do Software Público Brasileiro integra os seus participantes em um novo modelo de produção de conhecimento tecnológico, contribuindo significativamente para o crescimento e o desenvolvimento social e econômico do Brasil.
*Artigo dedicado ao professor Imre Simon (USP), pioneiro da ciência da computação no Brasil que nos deixou um legado de esperança. Publicado em inglês no ROADMAP 2020, no final de 2008 – iniciativa internacional que discute o futuro, as tendências e necessidades de mercado, com foco nos impactos do software livre e aberto nas tecnologias que usaremos no futuro. www.2020flossroadmap.org