Uma carta aberta ao Diretor do W3C, ao CEO, equipe e membros
Cory Doctorow, escritor, ativista, jornalista e blogueiro canadense, coeditor do portal Boing Boing, membro da Electronic Frontier Foundation (EFF) e cofundador do Open Rights Group da Inglaterra
18 de setembro de 2017
Caro Jeff, Tim e colegas,
Em 2013, a EFF1 ficou desapontada ao saber que o W3C2 assumiu o projeto de padronizar "Extensões de Mídia Criptografadas" (EME), uma API3 cuja única função era dar um papel de destaque para o DRM4 no ecossistema de navegação Web. Ao fazê-lo, a organização ofereceu o uso de seu repositório de patentes, o apoio de sua equipe e sua autoridade moral para a ideia de que os navegadores podem e devem ser projetados para ceder o controle sobre aspectos-chave dos usuários às contrapartes remotas.
Quando ficou claro, na sequência da nossa objeção formal,5 que os maiores membros corporativos e lideranças do W3C estavam envolvidos neste projeto, apesar do forte descontentamento entre o pessoal do W3C,6 seus parceiros mais importantes e outros defensores da Web aberta,7 propusemos uma compromisso. Concordamos em aceitar o padrão EME, desde que o W3C estendesse suas políticas existentes de direitos de propriedade intelectual de modo a impedir que os membros usassem a legislação sobre DRM em conexão com a EME (como a Seção 1201 da Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital dos EUA8 ou as implementações nacionais europeias do Artigo 6 da EUCD9), exceto em combinação com outra condição da ação10.
Este pacto permitiria aos grandes membros corporativos do W3C fazer valer seus direitos autorais. De fato, manteve intacto todo direito legal que as empresas de entretenimento, os vendedores de DRM e seus parceiros de negócios podem reivindicar. O compromisso simplesmente limitava-se a restringir a possibilidade de se utilizar o DRM do W3C para barrar atividades legítimas, como pesquisas e adaptações, que requerem deixar de lado o DRM. Sinalizaria ao mundo que o W3C queria fazer a diferença na forma como o DRM era aplicado: usaria sua autoridade para estabelecer os limites da aceitabilidade do DRM como uma tecnologia opcional, ao contrário de uma desculpa para minar pesquisa legítima e inovação.
Mais diretamente, tal pacto ajudaria a proteger os principais interessados, no presente e no futuro, que tanto dependem da Web aberta como trabalham ativamente para proteger sua segurança e universalidade. Isso ofereceria alguma clareza legal para aqueles que deixam de lado o DRM quando se envolvem em pesquisas de segurança para encontrar defeitos que podem comprometer bilhões de usuários da Web; ou que automatizam a criação de vídeo aprimorado e acessível para pessoas com deficiência; ou que arquivam a Web para a posteridade. Isso ajudaria a proteger a intenção, de novos concorrentes do mercado, de criar produtos competitivos e inovadores, não imaginados pelos vendedores que bloqueiam vídeo na Web.
Apesar do apoio dos membros do W3C de muitos setores, a liderança do W3C rejeitou esse compromisso. A liderança do W3C respondeu com propostas - como a designação de um grupo de discussão não vinculativo sobre as questões políticas que não estava programado para apresentar seu relatório até muito depois de o navio da EME ter deixado o porto - que ainda deixariam pesquisadores, governos, arquivos e especialistas em segurança desprotegidos.
O W3C é um órgão que opera ostensivamente em consenso. No entanto, à medida que a coligação que apoiava o compromisso sobre o DRM cresceu mais e mais - enquanto os grandes membros corporativos continuavam a rejeitar qualquer compromisso significativo -, a liderança do W3C persistiu no tratamento da EME como assunto que poderia ser decidido por apenas um lado do debate. Em essência, um núcleo de defensores da EME foi capaz de impor a sua vontade ao Consórcio, passando por cima do que desejavaos um grupo considerável de objetores e de todas as pessoas que usam a Web. O Diretor decidiu descartar pessoalmente todas as objeções levantadas pelos membros, articulando vários benefícios que a EME oferecia em comparação com o DRM que o HTML5 tornara impossível.
Mas esses benefícios (como melhorias na acessibilidade e na privacidade) dependem de o público poder exercer os direitos que eles perdem sob a legislação do DRM - mas sem o compromisso que o Diretor estava descartando, nenhum desses benefícios poderia ser usufruido. Essa rejeição provocou o primeiro recurso contra o Diretor na história do W3C.
Em nossa campanha sobre esta questão, dialogamos com muitos, muitos representantes de membros que confidencialmente expressaram sua crença de que a EME era uma ideia terrível (geralmente eles usavam linguagem mais forte) e seu sincero desejo de que seu empregador não estivesse no lado errado desta questão. Isso não é surpreendente. Você precisa procurar muito para encontrar um tecnólogo independente que acredite que DRM é possível, e ainda mais para encontrar os que acham que é uma boa ideia. No entanto, em algum lugar ao longo do caminho, os valores empresariais daqueles que estão fora da Web passaram a ser mais importantes, e os valores dos tecnólogos que a construíram mais descartáveis, ao ponto em que mesmo os sábios anciãos que constroem nossos padrões votaram por algo que eles sabem ser equivocado.
Acreditamos que lamentarão essa escolha. Hoje, o W3C abre um espaço de ataque legalmente inauditável via navegadores Web usados por bilhões de pessoas. O W3C dá às empresas de mídia o poder de processar ou intimidar aqueles que podem reempacotar vídeos para pessoas com deficiência. Dá as costas aos arquivistas que estão lutando para preservar o registro público de nossa era. O processo do W3C foi violado por empresas que fizeram suas fortunas perturbando a ordem estabelecida, e agora, graças à EME, poderão garantir que ninguém as sujeite às mesmas pressões inovadoras.
Então continuaremos lutando para manter a Web livre e aberta. Continuaremos processando o governo dos EUA para revogar as leis que tornam o DRM tão tóxico, e continuaremos trazendo essa luta para as legislaturas mundiais que estão sendo enganadas pelo Ministro do Comércio dos EUA para incentivar a implementação de equivalentes locais aos erros legais dos Estados Unidos.
Vamos renovar o nosso trabalho para combater as empresas de mídia que não conseguem adaptar os vídeos para fins de acessibilidade, mesmo que o W3C tenha desperdiçado o momento perfeito para garantir a promessa de proteger aqueles que estão trabalhando para quem precisa dessa acessibilidade. Defenderemos aqueles que são prejudicados por revelar os defeitos nas implementações da EME.
É uma tragédia que tenhamos que fazer isso sem nossos amigos no W3C, e com o mundo acreditando que os pioneiros e criadores da Web já não se preocupam com esses assuntos.
A partir de hoje a EFF renuncia ao W3C.
Obrigado,
Cory Doctorow
Representante da Electronic Frontier Foundation no Comitê Consultivo para o W3C
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1. https://www.eff.org/(link is external)
2. https://www.w3.org/(link is external)
3. https://pt.wikipedia.org/wiki/Interface_de_programa%C3%A7%C3%A3o_de_apli...(link is external)
4. https://pt.wikipedia.org/wiki/Gest%C3%A3o_de_direitos_digitais(link is external)
5. https://www.eff.org/pages/drm/w3c-formal-objection-html-wg(link is external)
6. https://blog.whatwg.org/drm-and-web-security(link is external)
7. https://opensource.org/osr-drm(link is external)
8. https://pt.wikipedia.org/wiki/Digital_Millennium_Copyright_Act(link is external)
9. Refere-se à Diretiva de Copyright da União Européia (Diretiva 2001/29/EC do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2001 “sobre a harmonização de certos aspectos de direitos de propriedade intelectual e relacionados na sociedade da informação.” Ver https://en.wikipedia.org/wiki/Copyright_Directive(link is external)
10. https://pt.wikipedia.org/wiki/Condi%C3%A7%C3%B5es_da_a%C3%A7%C3%A3o(link is external)