Espectro e novas tecnologias de rádio digital - oportunidades e desafios
Carlos A. Afonso, Diretor executivo do Instituto Nupef e conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil
Data da publicação: setembro 2012
UMA FICÇÃO INTRODUTÓRIA
O ano é 2013. A história é hipotética. A cidade é Presidente Prudente – um município de 210 mil habitantes no oeste paulista. Poderia ser qualquer outra cidade média ou pequena do Brasil, mas temos que escolher uma entre as 5.565 municipalidades brasileiras para nosso exemplo – e escolhi o lugar onde nasci, a 90 km do Rio Paraná. Neste município, dos 45 canais de TV definidos para a TV digital brasileira, foram designados os canais 19 (Rede Bandeirantes), 26 (Rede Vida), 31 (Rede Globo), 43 (Rede Record) e 57 (MTV Brasil) – sendo que os dois últimos ainda não estão em operação (este é um dado real, nesta história hipotética).
A prefeitura municipal, em conjunto com a comunidade (volto a lembrar que este é um exemplo hipotético), decidiu construir uma rede municipal para prover acesso à Internet nos domicílios ao menor custo possível, com qualidade - e também fornecer uma variedade de serviços públicos que incluem conectividade para a segurança da cidade (por exemplo, para veículos dos serviços públicos, câmeras de monitoramento etc.) e vários serviços de e-governo local. A prefeitura fez um acordo com a Telebras, que fornece o trânsito da rede municipal com a Internet a um preço que os gestores da rede municipal podem pagar, via um ponto de presença de fibra óptica no município. Combinando rádios cognitivos operando nas faixas de 700 MHz e utilizando os canais do dividendo digital (uma vez que dos 45 canais definidos para a TV digital, somente cinco estão ocupados no município por designação do agente regulador), com dispositivos wi-fi para distribuir conectividade nos domicílios, a rede municipal é um sistema de referência de inclusão digital em municípios brasileiros.
SERIA POSSÍVEL TORNAR ESTA HISTÓRIA REAL?
No Brasil, (ainda) não. Nossos agentes reguladores parecem ignorar algo que nos EUA vem sendo planejado em sucessivas consultas públicas e executado desde 2004 – o aproveitamento das faixas liberadas da TV analógica e dos “espaços em branco” entre os canais para uso comunitário e para serviços de Internet no âmbito dos municípios, com o emprego de transceptores digitais avançados conhecidos como “rádios de software” ou “rádios cognitivos”.
Rádios cognitivos? Espaços em branco? Faixas em torno de 700 MHz?? Para que isso, se já há tantos municípios que resolvem suas necessidades de rede municipal com redes wi-fi, cuja legalização já é sacramentada e a tecnologia já é bem conhecida?
Este texto pretende oferecer uma explicação introdutória sobre o que são espaços em branco, rádios cognitivos, como estas tecnologias podem ser utilizadas, que vantagens podem trazer, e os obstáculos e oportunidades para que um município como Presidente Prudente (ou qualquer outro município brasileiro) possa pensar em um projeto integrado de Internet para a comunidade como alternativa às ofertas dos conglomerados de telecomunicações e de mídia.
A FALÁCIA DO “ACESSO MÓVEL”
No debate sobre os caminhos da democratização ampla do acesso à Internet, há uma forte presença das operadoras de telefonia móvel, que procuram convencer-nos que a conectividade móvel (via redes celulares) será a solução “definitiva” para esta democratização. Para reforçar essa visão, apresentam estatísticas de acesso global à Internet na ponta somando números de celulares vendidos e conexões reais de banda larga fixa sem distinção de qualidade, preços e disponibilidade. Para piorar, as operadoras priorizam áreas de mercado que geram mais ingressos, e no Brasil vêm praticando os preços mais altos do mundo.
A grande maioria da população brasileira considerada pelas telefônicas como “conectada à Internet” usa celulares em contratos pré-pagos, muito raramente navegam na Internet, e a opção pela rede celular sem uma efetiva estratégia de universalização do acesso no domicílio significa perpetuar uma estrutura de castas – as que podem pagar terão o melhor serviço móvel em seus smartphones e uma boa banda larga fixa em casa, e as que não podem pagar terão uma banda pseudolarga em casa e uma forte restrição econômica de uso da Internet pelo celular pré-pago. E essa tendência pode agravar-se com as propostas do lobby das grandes operadoras (manifestando-se fortemente no processo de definição dos novos Regulamentos Internacionais de Telecomunicação – ITRs)1 para que estas decidam os termos dos contratos de interconexão com provedores de conteúdo e com os usuários na ponta, violando princípios básicos de neutralidade e isonomia de acesso.
No entanto, isso não significa que transceptores digitais (o telefone celular é um transceptor ou rádio digital – na verdade um smartphone hoje pode conter vários rádios digitais para diferentes funções) não têm futuro na ponta. Pelo contrário, além do que já é bem conhecido em inúmeras aplicações domésticas e comunitárias (as técnicas de conexão via wi-fi), novas técnicas de comunicação via rádio que utilizam de modo cada vez mais eficaz o espectro eletromagnético têm progredido muito e podem avançar ainda mais – ao ponto que espaços do espectro que eram considerados “esgotados” podem ser muito melhor aproveitados.
Por outro lado, para tornar um sonho como o descrito na abertura deste artigo em realidade para todos os nossos municípios, é preciso reconhecer a necessidade de investimentos maciços em redes troncais (espinhas dorsais) de transporte de dados, através das quais transitam dados de milhões de celulares e conexões fixas. Dados apresentados pela Cisco2 estimam um crescimento global de tráfego de dados de 26 vezes entre 2010 e 2015 em redes móveis, quando estarão trafegando 230 petabytes3 por dia (ou 26,7 terabits por segundo) – especialmente devido à crescente demanda por vídeo móvel e acesso às “nuvens” da Internet.
Além do aumento do número de estações de radiobase (as estações ou “antenas de celular” que vemos no topo de alguns edifícios) para desafogar as existentes (no Brasil há até dez vezes mais celulares por estação que nos EUA ou Europa), é preciso investir nas redes troncais que transportam as chamadas e dados dessas estações entre si e para a Internet. Os ramos de fibra óptica dessas redes troncais precisam chegar a todos os municípios, com capacidade abundante e à prova de futuro, oferecendo um ou mais pontos de presença da rede com garantia de acesso isonômico e a custo acessível para redes comunitárias, redes de pesquisa, redes municipais, bem como para empreendedores locais de serviços Internet. Essas garantias são essenciais para viabilizar o aproveitamento amplo das novas tecnologias de rádio nos bairros, nas cidades, nas comunidades urbanas esparsas e no meio rural.
DE QUE ESPECTRO FALAMOS?
O espectro eletromagnético usado para radiocomunicação em geral, sob a supervisão da União Internacional da Telecomunicação (UIT/IT U)4, tipicamente cobre o intervalo entre 3 kHz (três mil Hertz ou “ciclos” por segundo) e 300 GHz (300 bilhões de Hertz). É uma imensa faixa de espectro de frequências que vão desde o equivalente ao espectro sonoro audível até a radiação infravermelha, próxima à luz visível. Em várias formas, há hoje operações de rádio em porções de toda essa faixa de frequência.
É uma propriedade da radiação eletromagnética que, conforme a frequência aumenta, a propagação torna-se mais direcional e mais vulnerável a obstáculos físicos e condições atmosféricas. Enquanto as transmissões de rádio em ondas médias (AM, normalmente entre 535 kHz e 1,65 MHz) ou faixas tradicionais de rádio em ondas tropicais ou ondas curtas podem chegar a milhares de quilômetros, rádios em FM e televisão nos canais VHF ou UHF mal ultrapassam a linha do horizonte sem a ajuda de estações repetidoras.
Certas faixas bem estreitas de frequência são definidas em tratados internacionais como de uso livre restrito (com alcance limitado a alguns metros) para comunicação de rádio de vários tipos. Alguns exemplos do cotidiano hoje são o telefone caseiro sem fio, os dispositivos de controle remoto e bluetooth. As faixas denominadas “não licenciadas” na verdade têm uma autorização de operação sem licença dentro de limitações rigorosas quanto ao uso (comercial ou não), ao alcance e à potência de transmissão – é o caso das estreitas faixas onde operam os dispositivos conhecidos como wi-fi, em torno de 2,4 GHz e 5,8 GHz. Para operação nessas faixas com alcance e/ou potências maiores (por exemplo, redes comunitárias, redes municipais, provedores locais de serviços Internet), é preciso obter uma licença da Anatel.5
No outro extremo estão faixas licenciadas e rigorosamente controladas exclusivamente para uso primário (ou seja, de uso exclusivo permanente de uma concessionária – as frequências não podem ser compartilhadas na região de autorização, ao contrário, por exemplo, das faixas wi-fi), cedidas a operadoras para prestação de serviços específicos através de leilões ou autorizações de vários tipos usualmente a preços muito altos, ao alcance apenas das grandes empresas de telecomunicação e mídia.
No Brasil as faixas de espectro não são vendidas – o que se faz, no caso de faixas licenciadas, é a cessão de porções do espectro para uso primário em determinada região por tempo limitado, sujeito ou não a renovação. Pelo menos na lei, ninguém pode ser “dono” de faixa de espectro no Brasil – este é (ou deveria ser) um bem comum do povo brasileiro. Mesmo no caso de frequências de uso livre, os equipamentos (telefones, controles remotos, dispositivos wi-fi ou bluetooth, entre outros) têm que ser certificados pela agência reguladora, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)6.
AS NOVAS TECNOLOGIAS DE TRANSCEPÇÃO DIGITAL
De especial interesse para aplicações comunitárias são os rádios wi-fi e equipamentos similares que operam com a tecnologia de espalhamento de espectro (spread spectrum), uma técnica de mudança automática de canais que permite compartilhar as estreitas faixas não licenciadas com dezenas de outros rádios em cada localidade. Estes hoje são os dispositivos mais usados para o acesso na ponta em redes comunitárias e redes municipais, e, em vários casos, mesmo em serviços comerciais locais de acesso à Internet. Os rádios wi-fi operam comumente faixas de frequência em torno de 2,4 GHz e 5,8 GHz. Rádios spread spectrum digitais podem ser considerados os primeiros rádios digitais para comunicação de dados operados por software embarcado, também conhecidos simplesmente como “rádios de software”.
Avanços recentes que combinam poder de computação, logística de informação e técnicas avançadas de rádio digital levam a uma nova tendência na radiocomunicação: os rádios cognitivos. Trata-se de rádios de software especialmente concebidos para operar em várias frequências de modo automático programável, seja através da consulta a um banco de dados remoto de frequências disponíveis em sua região de operação (logística de informação), seja através de sofisticados algoritmos de sensoriameno de frequências em uso (poder de computação), permitindo até o uso secundário (ou seja, coexistindo com o uso formalmente cedido pelo agente regulador) de faixas sem afetar o serviço primário respectivo nessas faixas. Por exemplo, uma operadora pode ter uma licença na faixa de 700 MHz mas usar apenas algumas porções da faixa em cada região – um rádio cognitivo pode identificar por algoritmos que porções não estão sendo utilizadas a cada microssegundo e operar nessas porções, prestando outros serviços. Um rádio cognitivo pode ser capaz de operar em diversas porções de espectro sem uso simultaneamente, ampliando em muito sua capacidade de transmissão de dados. Há rádios em teste que são capazes de operar em qualquer frequência entre 100 Mhz e 7,5 GHz com uma capacidade de transferência de dados de até 400 Mbits/s.7
O FIM DA TV ANALÓGICA, O DIVIDENDO DIGITAL E OS ESPAÇOS EM BRANCO
A tabela de atribuições do espectro de um país é muito longa e em geral inclui as atribuições propostas pela UIT e as efetivamente adotadas no país. O “filé mignon” do espectro atualmente está entre 50 MHz e 6 GHz – isso inclui todas as faixas de rádio FM, TV analógica e digital, bem como as inúmeras faixas de frequência de telefonia móvel e enlaces ponto a ponto de alta velocidade, entre outras.
As faixas de televisão nas Américas em geral vão de 54 MHz a 88 MHz e 174 MHz a 216 MHz para os canais VHF (canais 2 a 13) e de 470 MHz a 890 MHz para os canais UHF (canais 14 a 83). O intervalo entre 88 MHz e 174 MHz é ocupado por canais de rádio FM, de radionavegação aérea e canais de radiomadores. A distribuição de canais analógicos no Brasil segue exatamente a dos EUA, já que adotamos uma variação do sistema NTSC de televisão – em que a única diferença é a forma de modulação para as cores, para a qual o Brasil adotou a norma europeia PAL, dando origem ao padrão brasileiro conhecido como PAL-M. As faixas de frequência para os canais de FM e TV portanto são idênticas às dos EUA, e os canais de TV têm, do mesmo modo, uma largura de faixa de 6 MHz. O canal 37 está reservado a radioastronomia, e os canais 52 a 83 (698 a 890 MHz) são atribuídos a serviços móveis terrestres e estão em disputa para uso com novas tecnologias (4G/LT E).
A UIT considera como “dividendo digital” as porções do espectro originalmente designado à TV analógica que não serão utilizadas na TV digital. Com a migração para a TV digital, estas porções estão ou estarão em disputa. Ademais, na transmissão analógica de rádio e TV, é necessário sempre deixar em cada localidade um canal vazio para evitar interferências entre canais adjacentes – estes são os “espaços em branco” (white spaces). Por exemplo, em uma mesma localidade podem coexistir os canais 2 e 4 de TV analógica, mas o canal 3 tem que permanecer vazio. Na TV digital essa separação perde o sentido, uma vez que a tecnologia permite o uso de frequências adjacentes sem interferência. No dividendo digital e nos espaços em branco estão as novas oportunidades de uso do espectro de forma ampla para uso comunitário, bem como para uso por governos e empreendedores locais, especialmente com o emprego de rádios cognitivos.
No Brasil a introdução da TV digital foi regulamentada pelos decretos 4901/2003 e 5820/2006, com a criação do Sistema Brasileiro para Televisão Digital (SBTVD)8. Estão definidos 45 canais (canais 14 a 69) operando entre 470 MHz e 806 MHz.9 A regulação não estabeleceu esta plataforma como um novo serviço. Os atuais detentores de autorizações de canais receberam uma faixa de frequência com a mesma largura dos atuais canais analógicos (6 MHz), e os canais comerciais não podem operar com multiprogramação. A regulação permite o uso de multiprogramação somente para serviços públicos, o que foi reafirmado pela Portaria 106 de 03 de março de 2012: “permite o compartilhamento não-oneroso das faixas de programação entre órgãos da União – que tenham canais de 6 MHz consignados para transmissão digital – e órgãos, autarquias e fundações públicas dos estados, do Distrito Federal e dos municípios... devem ser respeitadas as finalidades educativas, artísticas e culturais; divulgação de programações locais e regionais; de estímulo a produções independentes; divulgação de atos, sessões etc de interesse dos órgãos e, ainda, aplicações de serviços públicos.”10
O SBTVD é uma versão modificada da plataforma japonesa ISDB-T, e é conhecida internacionalmente como ISDB-Tb. Esta versão modificada é também adotada pela Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Equador, Paraguai e Costa Rica. Outros países que em 2011 consideravam a adoção do sistema brasileiro eram a Bolívia, Jamaica, República Dominicana, Belize, Guatemala, Honduras, Nicaragua, Suriname, Moçambique, Tanzânia, Malawi e África do Sul. O padrão utiliza o sistema de compressão de vídeo H.264 (MPEG-4 AVC) e um middleware11 desenvolvido no Brasil – o Ginga. Em abril de 2009 a UIT certificou o módulo Ginga-NCL e sua linguagem de programação associada NCL/LUA como a primeira recomendação internacional para ambientes multimeios digitais interativos para TV digital e IPTV (recomendação H.761).
Cada canal permite transmissão em alta definição plena (1080p) ou a transmissão simultânea de um canal em alta definição (720p) e um canal em definição padrão (480p) – esta última forma é a que está sendo utilizada pelas principais emissoras que já operam em modo digital. A má notícia é que o prazo para que as emissoras completem a transição foi adiado pelo Ministério das Comunicações de 2016 para 2020 – mas não é preciso esperar pela transição para começar a utilizar os espaços em branco com rádios cognitivos, desde que os entes reguladores percebam a urgência de definições neste campo.
OS AVANÇOS NOS PAÍSES DESENVOLVIDOS
Em janeiro de 2012, a primeira rede comercial utilizando os espaços em branco da TV UHF foi ativada nos EUA, na cidade de Wilmington, Carolina do Norte, culminando um processo regulatório iniciado pela Federal Communications Commission (FCC) em maio de 2004 (quando foi iniciada uma consulta pública sobre o uso de dispositivos não licenciados em canais de TV sem uso). O resultado dessa consulta foi o anúncio, em setembro de 2006, pelo Escritório de Engenharia e Tecnologia da FCC, de um “cronograma projetado para efetivar a operação não licenciada nos canais de transmissão de TV.”12
Dadas suas características de propagação muito melhores que as do wi-fi, a rede de Wilmington permite o posicionamento muito mais fácil de certos dispositivos e serviços, como a rede municipal de câmeras de monitoramento, comunicação de veículos dos serviços públicos, bem como a ativação de pontos de acesso sem fio (combinando, por exemplo, a rede da cidade com distribuição local via wi-fi). Como emprega rádios cognitivos, a rede não interfere nas transmissões de TV. No caso de nosso exemplo hipotético do começo deste texto, o município de Presidente Prudente poderia interligar seus quatro distritos (Ameliópolis, Eneida, Floresta do Sul e Montalvão) utilizando rádios cognitivos na faixa de 700 MHz com bem menos estações repetidoras que seriam necessárias se usasse redes de malha wi-fi.
Do mesmo modo, a FCC tem apoiado desde 2009 (através de medidas regulatórias e experimentos concretos) o uso da mesma tecnologia em redes municipais e comunitárias. Isso tem estimulado a indústria de equipamentos de rádio a avançar no lançamento de rádios cognitivos disponíveis comercialmente para essas aplicações. As estratégias de projeto trabalham com uma combinação de rádios cognitivos nos canais em torno de 700 MHz com rádios wi-fi nas faixas de 2,4 GHz e 5,8 GHz, formando uma espinha dorsal integrada municipal.
Os EUA estudam a reatribuição do espectro nas faixas de TV analógica desde 2002. A FCC concordou no final de 2008 em abrir os espaços em branco (conhecidos no jargão técnico como TVWS) para uso não licenciado ou licenciamento “leve”. Em setembro de 2010 aprovou as regras para operar rádios nos espaços em branco e nos canais livres onde a transição para a TV digital já foi concluída, com a adoção do método de geolocalização de frequências livres por base de dados, para proteger o uso primário do espectro de possíveis interferências. Um conjunto de faixas equivalentes a 48 canais de TV analógica, totalizando 288 MHz, foi liberada para uso não licenciado ou para licenciamento leve. Um novo padrão para rádio cognitivo para essas aplicações foi desenvolvido pela IEEE (802.22)13 e publicado em 2011.
No Canadá, em agosto de 2011 o Ministério de Indústrias do Canadá (Industry Canada) fez uma consulta para o possível uso de dispositivos cognitivos não licenciados nos espaços em branco ou livres das faixas abaixo de 698 MHz. Desde setembro de 2010 o Canadá segue a política de licenciamento leve para essas faixas, em faixas similares às dos EUA. Para aplicação em áreas rurais, também com licenciamento leve, estão reservadas as faixas 512-608 MHz e 614-698 MHz. Outros exemplos de países que avançaram com regras similares são a Finlândia, a Inglaterra14 e o Japão. A União Europeia trabalha para definir regras comuns similares.
AS PERSPECTIVAS NO BRASIL E EM NOSSA REGIÃO
O avanço das tecnologias de rádio cognitivo viabiliza inúmeras aplicações de uso secundário do espectro. Utilizando transmissão digital com tecnologias avançadas de modulação (como as empregadas nas atuais redes 4G/LT E) pode-se alcançar densidades de dados de mais de 15 bits por Hertz. Em um canal de 6 MHz dos espaços em branco, por exemplo, com essa densidade se poderia transmitir teoricamente a 90 Mbits/s (comparados aos cerca de 20 Mb/s do broadcasting da TV digital). Como já visto, pode-se combinar várias faixas para aumentar a capacidade de transmissão.
Em torno da frequência de 450 MHz (em que as condições de uso são muito similares às faixas em torno de 700 MHz) já há tecnologias comerciais e exemplos concretos de uso do rádio cognitivo para redes de grandes empresas, que tradicionalmente usam essa banda para suas redes internas.15 Aqui também há espaço a considerar para uso secundário, especialmente no meio rural e em áreas de comunidades esparsas.
Enquanto nos EUA e em outros países desenvolvidos tem havido um forte avanço das estratégias regulatórias associadas às tecnologias de rádio cognitivo para permitir seu uso na otimização do espectro e também na ponta, no Brasil e em outros países da América do Sul essas iniciativas têm sido tímidas - na melhor das hipóteses. Comunidades e governos locais, sem informação qualificada, não têm como demandar dos agentes reguladores normas adequadas de licenciamento, e estes agentes por sua vez estão quase que exclusivamente concentrados em responder às demandas comerciais dos grandes conglomerados de mídia e telecomunicações.
O dividendo digital é um caso especialmente delicado, já que os atuais detentores dos canais de TV (basicamente grandes conglomerados de mídia) pensam em ocupar um espaço como provedores de serviços de rede usando os atuais espaços em branco, bem como os canais que serão liberados pela TV digital. Por outro lado, sob o argumento do esgotamento do espectro, as grandes empresas de telefonia móvel pressionam na disputa da faixa de 700 MHz. Um relatório da AHCIET (uma associação de empresas de telecomunicação atuantes no mercado ibero-americano)16 argumenta que a cobertura da chamada “banda larga móvel” poderia aumentar de 75% para 95% na Argentina e Brasil, de 53% para 90% na Colômbia, de 39% para 94% no México e de 65% para 89% no Peru.17 Mas os resultados desta disputa ainda não estão claros. Tal como as empresas de telecomunicações buscam avançar na oferta de serviços multimeios (IPTV e outros), as atuais empresas de mídia querem também atuar na faixa de 700 MHz para oferecer serviços móveis.
Na disputa pelas faixas de 700 MHz, os conglomerados de mídia argumentam que é muito cedo para decisões sobre designação desses canais, e que as empresas de telecomunicações já têm uma grande quantidade de espectro disponível que usam de modo ineficiente. De acordo com os cálculos de uma das associações empresariais de mídia (ABERT )18, as empresas de telecomunicações no país já detêm um total de espectro equivalente a uma largura de 795 MHz, enquanto para o mesmo setor nos EUA essa largura é de 574 MHz (onde há um uso muito mais intenso) – e em ambos os países há evidências de uso ineficaz do espectro.19 A mesma ABERT afirma que a alegada necessidade de 1280 MHz adicionais para uma amostra de 14 países não se confirma na prática.
Já o Ministério das Comunicações (MiniCom) afirma que a atribuição dessas faixas só ocorrerá depois da desativação da TV analógica. Entidades civis que monitoram as políticas de uso do espectro no Brasil insistem que a atribuição e distribuição do espectro tem que ser decidida com base em consultas públicas com a sociedade e não somente com base em modelos de negócios. A Constituição do Brasil prevê um sistema público de TV com alcance amplo, mas isso até hoje não avançou a contento, em parte pela alegada “falta de espectro”. Agora existe a oportunidade, com a TV digital, de avançar muito.20
Enquanto na América do Norte e Europa praticamente toda a regulação para uso comunitário já foi definida ou está sendo concluída, com instalações comerciais concretas já em operação em algumas municipalidades, no Brasil a Anatel está concentrada apenas na definição do licenciamento para possível uso de serviços móveis 4G/LT E na faixa de 698 MHz a 806 MHz.21 Para a Região 2 da UIT (Américas), a Recomendação 224 da entidade indica as frequências de 698 MHz a 806 MHz para serviços móveis. As recomendações da UIT foram discutidas pela Comissão Interamericana de Telecomunicações (CITEL, vinculada à OEA)22 em 2006, que recomendou as frequências de 698 a 764 MHz e de 776 a 794 MHz para serviços móveis, reservando as frequências de 764 a 776 MHz e de 794 a 806 MHz para uso governamental – mas não ocorreu adoção formal explícita desta recomendação por parte dos países membros até agora.
Cabe especialmente a governos e empreendedores locais, bem como a entidades comunitárias e movimentos pela inclusão digital, manifestar-se ativamente por uma política em defesa do uso não licenciado ou com licenciamento leve do espectro não utilizado em cada região (ou passível de utilização secundária) empregando rádio cognitivo na ponta. Estas oportunidades requerem também uma política de acesso às espinhas dorsais com uma relação benefício/ custo que viabilize essas iniciativas locais. Espera-se que os “planos de banda larga” do governo federal contemplem essas garantias para estimular a inovação e a inclusão digital, diversificando as oportunidades na ponta, que é onde todos nós vivemos.
Nota: esta é uma versão de trabalho sobre o tema, como parte de uma linha de pesquisa em andamento do Instituto Nupef relacionada a aplicações comunitárias do espectro aberto. Correções e comentários serão muito bem-vindos.
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1. Ver http://www.itu.int/ITU-T/itr
2. Cisco, Cisco Visual Networking Index: Global Mobile Data Traffic Forecast Update, 2010-2015, fevereiro de 2011.
3. Um Petabyte equivale a 1048575,86 Gigabytes.
4. Ver http://itu.int
5. Ver Há dois tipos de licenças “leves” no Brasil para operação de redes sem fio, requeridas mesmo que utilizando dispositivos não licenciados nestes casos: para operação comercial, deve-se obter uma licença de Serviço de Comunicação Multimeios (SCM) – uma autorização única de R$9 mil. Para uso sem finalidade lucrativa, como uma rede municipal ou comunitária, há a licença de Serviço Limitado Privado (SLP), ao custo simbólico de R$400.
6. Ver http://www.anatel.gov.br
7. ”Frequency-Hopping Radio Wastes Less Spectrum”, Technology Review, June 13, 2012, http://www.technologyreview.com/news/428182/frequency-hopping-radio-wast...
8. Informação detalhada sobre o SBTVD está em http://pt.wikipedia.org/wiki/SBTVD
9. A lista completa dos canais e cidades já definidos no Brasil pode ser consultada na Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_canais_da_televis%C3%A3o_dig...
10. “TV Digital: Minicom permite compartilhamento de multiprogramação,” SINRAD-DF, 13/março/2012, em http://www.radialistasdf.com.br/noticia2.php?id=758
11. Middleware é o neologismo criado para designar camadas de software que não constituem diretamente aplicações, mas que facilitam o uso de ambientes ricos em tecnologia da informação. A camada de middleware concentra serviços como identificação, autenticação, autorização, diretórios, certificados digitais e outras ferramentas para segurança. Ver em http://www.rnp.br/noticias/2006/not-060926.html
12. US Federal Communications Commission, “Office of Engineering and Technology Announces Projected Schedule for Proceeding on Unlicensed Operation in the TV Broadcast Bands”, DA 06-1813, ET Docket No. 04-186, 11-setembro-2006.
13. Ver http://www.ieee802.org/22
14. Na Inglaterra, as seguintes faixas são consideradas disponíveis para uso não licenciado ou licenciado “leve”: 566-590 MHz (atuais canais de TV UHF 33 a 35); 806-854 MHz (atuais canais de TV UHF 63 a 68). As faixas 470-550 MHz, 790-806 MHz e 630-790 MHz são reservadas à TV digital, totalizando 259 MHz de espectro, ou 34 canais de 8 MHz. Algumas variações menores devem ocorrer com a relocação de faixas atualmente usadas para radar e radioastronomia.
15. Ver o exemplo de Petrobras no Brasil em http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoi...
16. Ver http://www.ahciet.net
17. Estudo contratado com a Telecom Advisory Services LLC (TA S) pela GSMA e AHCIET. Ver http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoi...
18. Ver http://www.abert.org.br
19. Luís Osvaldo Grossman, “Teles e radiodifusão afiam disputa pelo 700 MHz”, Convergência Digital, 25-nov-2011, em http://convergenciadigital.uol.com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoi...
20. Entre estas entidades estão Intervozes (http://www.intervozes.org.br) e o Nupef (http://www.nupef.org.br).
21. Anatel, Portaria 681, 6-agosto-2012. 22. Ver http://web.oas.org/citel/en/Pages/default.aspx