O longo 2014 da governança da Internet - um balanço do 9º IGF
Diego R. Canabarro, Doutor em Ciência Política pela UFRGS. Atualmente, trabalha no Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, na equipe de assessoria ao CGI.br *
Data da publicação: dezembro 2014
Tomando emprestada uma metáfora bastante comum no estudo da História,1 pode-se dizer que, para a governança da Internet, 2014 começou ainda dentro do “curto 2013”. E certamente não terminará na virada para 2015: por algum tempo, ainda, continuaremos a viver o “longo 2014 da governança da Internet”, um dos anos mais movimentados para a rede desde o fim da Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (CMSI/WSIS), realizada entre 2003 e 2005.2
O ano de 2013 começou ainda na ressaca da cacofônica Conferência Mundial das Telecomunicações Internacionais (CMTI-12/WCIT-12), realizada em Dubai em dezembro de 2012.3 As discussões antes, durante e depois da CMTI-12 centraram-se principalmente no alcance que a atualização e a reforma da regulamentação das telecomunicações internacionais teriam para a Internet: a Conferência que atualizaria os Regulamentos das Telecomunicações Internacionais (RTI/ITR) – um corpo de legislação internacional com mais de 25 anos de existência (e que, portanto, não fazia referência à Internet) – poderia significar mais uma tentativa de a União Internacional das Telecomunicações (UIT/ITU) assumir a governança da Internet. Isso submeteria a rede aos imperativos do intergovernamentalismo (ou “multilateralismo”, no jargão diplomático), especialmente os interesses das operadoras de telecomunicação, quase nunca favoráveis aos princípios fundamentais que explicam o caráter revolucionário da Internet.4
Como agravante, as propostas enviadas pelos países-membros e pelas empresas e associações habilitadas a participar do processo de tomada de decisões da UIT só acabaram por ser de conhecimento público quando o escândalo de vazamento conhecido por WCITLeaks revelou o teor de boa parte das propostas: algumas avessas à neutralidade da rede; outras, favoráveis ao controle governamental irrestrito por motivos de combate ao crime; algumas defendendo o monitoramento da rede para fins de proteção dos direitos autorais etc.5 Por conta disso, ao longo de todo o processo de preparação para a CMTI-12, muito se falou a respeito “do fim da Internet livre, aberta e neutra” como sendo o resultado potencial da reforma dos RTI na virada para 2013.6 Os ânimos já estavam acirrados a tal ponto que, na cerimônia de abertura da CMTI-12, o Secretário-Geral da UIT – Hamadoun Touré – paramentou-se com um capacete azul das forças de paz da ONU e abriu espaço para a participação do diretor-presidente da ICANN como forma de simbolicamente pedir a paz entre a comunidade das telcos e a comunidade da Internet.
Ao fim da Conferência, o texto reformado dos RTI, sem nenhuma menção à Internet, foi assinado por aproximadamente dois terços dos membros da UIT. Um anexo não vinculante abordando a importância de os países-membros continuarem a dialogar a respeito da governança da rede também no âmbito da UIT foi colocado em votação a pedido da delegação do Irã – o que violou o compromisso do Secretário-Geral de trabalhar para que os RTI fossem adotados por consenso. Tal medida culminou com o abandono da Conferência pela delegação estadunidense e de alguns aliados europeus, no que Milton Mueller chamou de uma “fobia injustificada à UIT”, diante da ausência de significados práticos do anexo para os diversos processos que integram a multifacetada e multissetorial governança da Internet.7
Polêmicas e ameaças à parte, o mais relevante desse processo foi o alerta definitivo a respeito da impossibilidade de se conduzir qualquer discussão relativa à Internet sem contar com a participação efetiva dos diversos setores direta e indiretamente interessados e engajados na governança da rede. Nesses termos, por exemplo, diversas organizações da sociedade civil alertaram para os perigos de que governos nacionais conduzissem a adoção de políticas para a Internet de forma não aberta, opaca e sem a participação dos diversos setores afetados, em detrimento do ethos multissetorial que vem pautando o desenvolvimento e a governança da Internet.8
No curto prazo, parecia que o evento de Dubai, suas características e as controvérsias que ele gerou reverberariam em todas as demais trilhas políticas que dizem respeito à governança da Internet.9 O mês de junho de 2013, porém, modificou de forma abrupta tal cenário prospectivo.
Tão logo o jornal The Guardian passou a divulgar as informações reveladas por Edward Snowden a respeito do aparato orwelliano desenvolvido há anos pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos na exploração das comunicações travadas por meio do ciberespaço,10 a tônica dos debates em torno da governança global da Internet foi modificada. Inaugurou-se, desde então, a agenda política do que chamamos aqui de “o longo 2014 da governança da Internet”.
O papel dos Estados Unidos como o grande guardião da rede aberta e livre foi posto em xeque, sobretudo a partir do discurso proferido pela presidenta Dilma Rousseff na Assembleia Geral da ONU. Ela protestou formalmente por ter sido alvo direto da espionagem norte-americana e destacou que é fundamental que se reverta a instrumentalização do espaço cibernético como um campo e uma arma de disputa político-econômica entre os países. Propugnou, com inspiração no modelo brasileiro de governança da rede e em linha com os Princípios para a Governança e o Uso da Internet no Brasil (o Decálogo do CGI.br),11 que a governança global da Internet seja pautada pelo respeito aos direitos humanos fundamentais, com irrestrita proteção da privacidade e da liberdade de expressão; que seja democrática, aberta, transparente e conte com a participação de todos os envolvidos sem discriminação; que promova o ideal de inclusão universal e de preservação da diversidade cultural; e que garanta a neutralidade da rede. Tudo isso para alinhá-la aos imperativos de uma ordem internacional democrática e voltada ao desenvolvimento socioeconômico, em reversão ao caráter assimétrico que é intrínseco ao desenvolvimento tecnológico de desiguais. Para tanto, o Brasil anunciou que apresentaria “propostas para o estabelecimento de um marco civil multilateral [global] para a governança e uso da internet”.12
O ímpeto brasileiro foi seguido por organizações envolvidas na gestão técnica da Internet (a ICANN, os RIRs, a IAB, a ISOC, o IETF e a W3C) no que ficou conhecido como “Declaração de Montevidéu”, que clamou pelo fim da subordinação da ICANN e da IANA à jurisdição dos Estados Unidos.13 Logo em seguida, setores da sociedade civil e da comunidade técnica e acadêmica anunciaram a Iniciativa 1NET (One Net, ou “Uma Rede”), que acabou por englobar a comunidade multissetorial em termos mais amplos.14 Em decorrência desse processo, o Brasil anunciou que sediaria um evento para promover e facilitar os debates a respeito do futuro da governança da Internet. Do meio para o fim de 2013, então, a agenda da governança global da Internet passaria a gravitar em torno da organização, da realização e dos resultados do que veio a ser conhecido como o Encontro Multissetorial Global sobre o Futuro da Governança da Internet (NETmundial),15 organizado em uma parceria entre o Brasil (com grande destaque para a atuação do Ministério das Relações Exteriores e do Comitê Gestor da Internet no país), e a 1NET (com atuação preponderante da ICANN) como representante da comunidade global da Internet.
O NETmundial, em um processo sem precedentes, produziu na última semana de abril de 2014, em São Paulo, uma declaração construída com a participação em pé de igualdade de governos, de representantes do setor empresarial, do terceiro setor, de acadêmicos e técnicos envolvidos com o desenvolvimento da Internet. A Declaração do NETmundial consta de duas partes: um conjunto de princípios fundamentais para a governança da rede16 e um “mapa do caminho” para orientar a construção de um ecossistema de governança para a Internet alinhado a tais princípios. De forma bastante simbólica, na cerimônia de abertura do evento, o Marco Civil da Internet no Brasil foi sancionado como lei,17 representando o compromisso do país com uma Internet calcada em princípios. Em consequência, foram inauguradas as dinâmicas políticas e os desafios da regulamentação da lei no plano doméstico.
Deve-se ressaltar que, pouco antes do evento, de forma decisiva para o futuro do ecossistema de governança da Internet, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos respondeu à crescente pressão internacional e anunciou sua intenção de deixar a supervisão do exercício das funções IANA – que, atualmente, está relegada à ICANN, por força de um contrato que expira em setembro de 2015.18 Invariavelmente, tal mudança incorporou-se integralmente ao debate sobre o futuro do ecossistema da governança da rede. Uma das principais diretrizes da declaração do NETmundial diz respeito ao papel do Fórum de Governança da Internet (IGF) nesse ecossistema.
Desde 2006, como um dos resultados mais palpáveis da fase de 2005 da WSIS, o IGF tem servido como um fórum planetário anual de encontro e diálogo dos diversos setores envolvidos com a governança e o uso da rede. No entanto, até hoje, o IGF sempre operou em bases frágeis: o fórum nasceu sem mandato para a tomada de decisões, sempre teve duração limitada e operou com o levantamento ad hoc de fundos para cada edição.19
Em termos teóricos e práticos, instituições internacionais – ainda que sem capacidade decisória e resolutiva – têm um importante papel a desempenhar no intercâmbio de informações e conhecimento entre os diversos atores. Elas auxiliam na estabilização das expectativas que uns atores têm em relação aos demais, na compreensão a respeito das intenções de cada um e na consequente aproximação daqueles com interesses convergentes em prol da ação cooperativa. Tais espaços funcionam, também, como locus de contestação aberta, capaz de auxiliar na responsabilização de ações individuais desviantes do interesse coletivo.20 Assim, os presentes no encontro de São Paulo solicitaram à Assembleia Geral da ONU que fortalecesse o papel do IGF, ampliasse para além de cinco anos o seu termo de funcionamento, bem como trabalhasse para garantir os recursos necessários para sua manutenção. Além disso, o próprio NETmundial mostrou que processos multissetoriais de deliberação são, sim, capazes de produzir resoluções bem delimitadas em relação a problemas específicos. Assim, o IGF ganhou novo fôlego como o principal elemento de apoio a tais processos: reconheceu-se nele a plataforma ideal para, de tempos em tempos, por em contato no âmbito global os diversos atores envolvidos com a Internet em âmbito local e, a partir disso, possibilitar a orquestração dos mesmos no enfrentamento de desafios específicos da governança da rede. E foi com esse pano de fundo, iniciado com o abrupto fim do “curto 2013”, que a 9a edição do IGF aconteceu em Istambul, na Turquia, na primeira semana de setembro de 2014.
Foi a primeira ocasião em que o Fórum se reuniu após o NETmundial, o que foi determinante para o que foi possível observar na terra dos Sultões. Em primeiro lugar, porque deu uma medida do êxito e da importância daquilo que se alcançou a partir de São Paulo. E, em segundo, porque a agenda principal de trabalhos do IGF foi em boa parte pautada pela Declaração Final do NETmundial. Por conta disso, os resultados da reunião da Turquia ajudam a projetar o cenário para os próximos meses na governança global da Internet. A despeito da riqueza do “Grande Bazar do IGF de Istambul”21, é esse cenário que é discutido a seguir..
O Dia Zero do IGF 2014 (o dia prévio ao início formal do fórum) foi quase exclusivamente voltado à reflexão sobre os legados do processo NETmundial. Para a maior parte dos presentes, o traço distintivo da conferência de São Paulo foi seu modus operandi, que conseguiu corporificar o ideal de equal footing (“em pé de igualdade”) entre os diversos setores envolvidos com a governança da rede: seja na composição de seus comitês organizadores; seja nas sessões plenárias, em que a lista de oradores abria espaço para um representante de cada setor por vez. O NETMundial foi destaque ainda pelo formato adotado para a produção do documento final da conferência (com a submissão de propostas em uma plataforma aberta a todos na Web; a compilação de um esboço inicial aberto ao debate público no mesmo espaço; e a redação final em uma sessão aberta e horizontal). Porém, a participação efetiva de um número expressivo de governos apenas na parte final desse processo foi apontada como algo a ser aprimorado para se garantir legitimidade de processos bottom-up (“de baixo para cima”) como esse. De qualquer forma, o que se pode depreender do Dia Zero da 9a edição do IGF diz respeito à consolidação do multissetorialismo como um formato possível para a construção democrática e colaborativa, que deve permear processos que são eminentemente governamentais, no plano interno dos países, e intergovernamentais, no plano das relações internacionais.
O Dia Zero também foi palco de acalorados debates a respeito da “Iniciativa NETmundial”, anunciada na reunião de Londres da ICANN, em junho de 2014. A “iniciativa” foi apresentada em Genebra, no Fórum Econômico Mundial (FEM/WEF), dois dias antes do IGF, como um esforço da ICANN para dar continuidade ao processo de São Paulo. Em síntese, a ICANN montou, em parceria com o FEM, uma lista pouco plural, com convidados seletos para iniciar um debate sobre como aprofundar o legado de São Paulo. Essa nova trilha comissionou entidades de pesquisa coordenadas por Harvard e NYU, pelo CGI.br e pela própria ICANN, a conduzir um estudo substancial sobre as melhores práticas de governança distribuída e para a estruturação de uma governança local multissetorial da Internet. O conjunto da obra deverá ser transformado em um “Guia de Governança e Cooperação na Internet”.22 A movimentação da ICANN foi tida como controversa, porque não tem a mesma base de sustentação do evento de São Paulo (o que leva a questionamentos relativos até mesmo à apropriação do nome) e foi lançada em um locus tradicionalmente vinculado ao setor empresarial. O debate em relação a esse ponto está aberto e deve ser observado com cautela por todos os interessados no assunto.
A partir do primeiro dia do IGF, porém, foram o conjunto de princípios e o mapa do caminho adotados em São Paulo que serviram como parâmetros para os diálogos e debates levados a cabo em oficinas, reuniões de coalizões dinâmicas, fóruns abertos de organizações internacionais de diversas espécies, reuniões de cúpula governamental e seminários proferidos durante o IGF. Invariavelmente, discussões sobre a construção de pontos de troca de tráfego, o direito ao esquecimento, a inclusão digital, o compartilhamento e o acesso a informação e conhecimento, revolveram em torno, entre outros, dos requisitos de universalidade, diversidade, inovação, neutralidade da rede e inimputabilidade dos intermediários.
De todos os princípios integrantes da declaração do NETmundial, a neutralidade da rede foi apontada como um dos tópicos a ter o debate aprofundado a partir do IGF 2014. Isso fez com que uma das sessões principais de trabalho do fórum fosse dedicada ao tema. Ela foi dividida em três rodadas de manifestações: primeiro, uma rodada de cunho técnico; depois, uma sessão de cunho econômico; e, finalmente, o painel foi encerrado com uma rodada de cunho social, centrada nos usuários finais da rede.23 A diversidade de atores integrantes do painel serviu para mostrar a pluralidade de definições, orientações e opiniões a respeito de aspectos práticos da gestão da rede (priorização de serviços, inspeção de pacotes, prestação segmentada e gratuita de acesso a serviços etc). Foi interessante, porém, ver que alguns dos manifestantes ressaltaram a importância de preocupar-se menos com uma definição consensual e mais com o conteúdo do universo de temas que se pretende alcançar com a neutralidade da rede, dentre eles o dinamismo no desenvolvimento de tecnologias de Internet, a inclusão digital sustentável no longo prazo e a liberdade de expressão. É em direção a isso que se espera que esteja orientada continuidade do debate.
Adicionalmente, duas sessões principais (plenárias) abordaram a evolução do ecossistema da governança da Internet: uma pela perspectiva do processo de transição da IANA, outra pela perspectiva do papel do IGF no contexto das reformas do ecossistema inauguradas em 2014.
A primeira teve como objetivo colher contribuições da comunidade do IGF e abordar o processo orquestrado pela ICANN para montar uma proposta a ser apresentada ao governo estadunidense. Nela também tratou-se da revisão da accountability da corporação californiana em duas frentes: uma relacionada à desvinculação da IANA do Departamento de Comércio e outra mais ampla, voltada aos processos normais de funcionamento da ICANN.24 Ainda pairam dúvidas a respeito de qual a extensão da ligação entre os dois processos. É inegável que a accountability da ICANN – como espaço de articulação política da comunidade envolvida na administração dos recursos críticos da Internet – é algo mais amplo e com um horizonte de tempo mais longo que a accountability do processo de transição. Entretanto, como é a comunidade integrante da ICANN que está conduzindo esse processo, sua legitimidade e aceitação pelo governo estadunidense depende de a organização ser percebida como capaz de tocá-lo de forma transparente e participativa. A solução definitiva da transição passa, ainda, pelas dinâmicas do Congresso norte-americano, onde um projeto de lei já aprovado na Câmara Baixa condiciona qualquer continuidade do processo a um parecer da Controladoria Geral.25 Este detalhe, porém, não apareceu na plenária do IGF.
A segunda sessão principal abordou diretamente o papel do Fórum no contexto da evolução institucional do ecossistema da governança da rede. Inevitavelmente, esse tema tocou no processo de revisão da Cúpula Mundial para a Sociedade da Informação (CMSI+10/WSIS+10), que corre em paralelo ao mandato do Fórum e que, como este, tem previsão de encerramento no ano de 2015. O processo desencadeado pelas cúpulas é uma espécie de guarda-chuva que abarca uma agenda bastante abrangente, relacionada aos desafios do avanço e da universalização da sociedade da informação, de forma alinhada às metas do desenvolvimento da ONU. Nesse escopo, inserem-se tanto a trilha de quase uma década do IGF como o processo mais recente, inaugurado em 2013, de cooperação aprimorada voltado a delimitar o papel de cada um dos atores nas políticas públicas relacionadas à Internet, nacional e internacionalmente. Em meio às turbulências que precipitaram “o longo 2014 da governança da Internet”, entretanto, pode-se dizer que a cooperação aprimorada ficou em segundo plano (apesar de sua importância).
O IGF, ao contrário, saiu reforçado e isso apareceu inequivocamente na Turquia: ao longo de todo o evento, a esmagadora maioria dos presentes invocou o consenso NETmundial a respeito da necessidade renovação do mandato do IGF na Assembleia Geral da ONU em 2015. A propósito, a Internet Society (ISOC) lançou uma Associação de Apoio ao IGF com a finalidade de garantir fluxos de recursos capazes de apoiar o Fórum. Além disso, uma “Declaração pela Continuidade do IGF” foi aberta à assinatura dos interessados para mostrar o consenso em torno do assunto. Reiterou-se mais uma vez o papel dos IGFs de âmbito nacional e regional como espaços de contato inicial dos atores com a agenda global da governança da rede e, especialmente, como espaços frutíferos para a abertura de canais de participação dos jovens na governança da Internet.
Tudo isso remete inevitavelmente a novembro de 2015, quando o Brasil receberá pela segunda vez uma edição do IGF, em João Pessoa, na Paraíba. No segundo semestre do mesmo ano, deveremos ter uma decisão definitiva pela Assembleia Geral da ONU sobre a continuidade do IGF. Diante de todos os desenvolvimentos vistos acima e do amplo suporte dado pela comunidade global à consolidação do IGF como um fórum permanente, com mandato irrestrito e com fontes de financiamento estáveis, é bem provável que o último evento do quinquênio 2011-2015 seja a inauguração de uma nova etapa no desenvolvimento institucional da governança global da Internet.
Não se pode desconsiderar que o “longo 2014 da governança da Internet” continuará reverberando para além de 2015: com a continuidade da transição da supervisão sobre a raiz da Internet; com os debates pragmáticos em torno do alcance dos princípios reconhecidos na declaração do NETmundial; com os resultados da Iniciativa homônima, mesmo que deixe de utilizar o nome; e com a manutenção mais genérica de questões socioeconômicas, culturais e jurídicas que são indissociáveis de um projeto com a escala da Internet.
Mas é crucial que se reconheça que há algo de especial em ter o Brasil como sede do IGF 2015. O protagonismo que o país ganhou ao longo do tempo (respaldado pela legitimidade de seu modelo de governança multissetorial sintetizado no CGI.br) transformou-o no principal mediador dos diferentes atores que compõem o mosaico complexo da governança da Internet. E, a tamanho poder, invariavelmente estão associadas grandes responsabilidades. Uma delas na frente doméstica: é crucial que se preserve o espírito colaborativo, participativo e aberto do Marco Civil no processo de regulamentação da respectiva lei. Isso é fundamental para que mantenhamos o respaldo e a legitimidade necessários para enfrentar a principal das responsabilidades que recai sobre nós a partir de agora: o dever de transcender o papel de mero anfitrião do IGF e trabalhar ativamente para auxiliar os participantes a inaugurar de vez a era pós-2014 da governança da Internet, avançando rumo a um horizonte verdadeiramente democrático e voltado, antes de mais nada, ao desenvolvimento humano.
* O autor agradece a revisão paciente do texto por Ana Júlia Possamai, Carlinhos Cecconi, Lídia Lage e Thiago Borne.
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1. A título de exemplo, Eric Hobsbawm fala de um “longo século XIX” e um “curto século XX” no conjunto de “A Era das Revoluções: 1789-1848”, “A Era do Capital: 1848-1875”, “A Era do Império: 1875-1914” e “A Era dos Extremos: 1914-1991”. O primeiro inicia-se com a Revolução Francesa (1789), quando se inaugura uma fase de equilíbrio de poder entre as potências europeias que só vai se encerrar a partir da Primeira Guerra Mundial. O “curto século XX” vai do fim da Primeira Guerra (1918), que inaugura uma nova fase na distribuição de poder no sistema internacional, culminando na bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética, e que se encerra em 1991 com o desmantelamento da última – antes, portanto, do fim efetivo do século XX. Outro historiador que emprega a metáfora é Giovanni Arrighi em seu “O Longo Século XX: Dinheiro, Poder e as Origens do Nosso Tempo”. No trabalho, ele explora as causas que moldaram o século XX num horizonte de 700 anos passados.
2. Ver http://www.itu.int/wsis/index.html
3. Ver http://www.itu.int/en/wcit-12/Pages/default.aspx
4. Nesse sentido, ver a reflexão feita por Carlos A. Afonso a respeito de uma das propostas que a Associação Européia de Operadoras de Telecomunicações (ETNO) submeteu à WCIT (a ideia de cobrar separadamente pelo tráfego de entrada e de saída gerado pelos usuários da Internet): http://terceirosetorcgi.blog.br/?p=144. Acesso em: 19/09/2014
5. Ver http://wcitleaks.org
6. Uma síntese das projeções e uma análise a respeito da viabilidade de elas se realizarem foi feita por Milton Mueller, da Universidade de Syracuse, na série “Threat Analysis of ITU's WCIT”, dividida em quatro capítulos, publicada no blog do Internet Governance Project”. Disponível em: http://www.internetgovernance.org. Acesso em: 19/09/2014
7. Ver http://www.internetgovernance.org/2012/12/18/itu-phobia-why-wcit-was-der...
8. Ver http://www.apc.org/en/news/post-wcit-civil-society-statement-way-forward
9. Ver http://www.gp-digital.org/publication/internet-governance-processes-visu...
10. Uma compilação completa das informações vazadas por Edward Snowden é mantida e permanentemente atualizada pelo jornal britânico The Guardian. Disponível em http://www.theguardian.com/world/the-nsa-files. Acesso em: 19/09/2014
11. Ver http://www.cgi.br/resolucoes/documento/2009/003
12. Discurso da presidenta da República, Dilma Rousseff, na abertura do Debate Geral da 68ª Assembleia-Geral das Nações Unidas - Nova York/EUA. Disponível em: http://www2.planalto.gov.br/imprensa/discursos. Acesso em: 12/12/2013.
13. Ver https://www.icann.org/news/announcement-2013-10-07-en
14. Ver http://1net.org
15. Ver http://netmundial.br
16. A declaração adotada em São Paulo postula um horizonte normativo pautado pelo respeito aos direitos humanos fundamentais e valores relacionados; pela inimputabilidade dos intermediários da rede; pela diversidade linguística e cultural; pela neutralidade, estabilidade, segurança e resiliência da Internet entendida como um espaço unificado de arquitetura aberta e construída de forma distribuída com o emprego de padrões abertos, capaz de fomentar a inovação e a criatividade; e que conte com um processo de governança verdadeiramente democrático, pluri participativo, colaborativo e multissetorial, inclusivo e equitativo, transparente e voltado ao consenso. Tais princípios guardam relação estreita com o conteúdo do Decálogo de Princípios do CGI.br mencionado anteriormente.
17. Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Ver http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm
18. Ver https://www.icann.org/stewardship
19. Um conjunto de reflexões a respeito dessa fragilidade pode ser visto em http://www.intgovforum.org/cms/contributionsigf. Dentre elas, o relatório do Grupo de Trabalho montado pela Comissão de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento da UNCTAD para propor melhorias no IGF (WGEC).
20. R. Axelrod, R. Keohane. "Achieving cooperation under anarchy: strategies and institutions." World Politics 38(1): 226-254, 1985.
21. Essa metáfora foi empregada pelo Observatório da Internet no Brasil para referir-se à complexidade da agenda de trabalhos do IGF: http://observatoriodainternet.br/salaam-aleikum-istambul
22. Ver http://www.weforum.org/issues/global-internet-governance
23. O registro integral dessa sessão encontra-se disponível em: http://www.intgovforum.org/cms/174-igf-2014/transcripts/1996-2014-09-03-... e https://www.youtube.com/watch?v=v9-kcJskXtw
24. Ver https://www.icann.org/resources/pages/accountability-2012-02-25-en
25. Ver https://beta.congress.gov/bill/113th-congress/house-bill/4342