O encontro NETmundial na visão da APC*
Uma análise da Associação para o Progresso das Comunicações (APC)
Data da publicação: agosto 2014
DO IGF AO NETMUNDIAL E DE VOLTA
O encontro NETmundial foi um evento histórico notável e apreciamos a oportunidade de ter sido parte dele. Da perspectiva do futuro da governança da Internet, a APC acredita que é útil ver o NETmundial sob o prisma das conquistas e limitações do Fórum de Governança da Internet (IGF). Em resumo: o NETmundial foi possível por causa do êxito do IGF; e o NETmundial foi necessário porque o IGF não avançou o suficiente.
O IGF estabeleceu a legitimidade e factibilidade de uma plataforma comum para o debate de políticas públicas envolvendo governos, sociedade civil, setor empresarial e outros. Se não fosse pelas relações de confiança criadas ao longo de anos de trabalho conjunto de diferentes grupos de interesse no IGF, o NETmundial em primeiro lugar poderia não ter ocorrido, e acreditamos que não teria êxito. Isto não significa que não há outros processos ou instituições multissetoriais significativos de governança da Internet, mas nenhum é mais diversificado ou inclusivo que o IGF.
O IGF não conseguiu avançar no estabelecimento de consenso sobre alguns temas centrais, como por exemplo os princípios para a governança da Internet. É aqui que o NETmundial, em uma relação dinâmica com o IGF, preencheu o vazio. Produziu um resultado concreto, incluindo uma declaração de princípios para a governança da Internet e um roteiro para ir adiante.
No seu início o IGF funcionou bem como um encontro de pessoas de diversas instituições e ideias. Era pluralista no sentido que participantes vinham da sociedade civil, governos, empresas, academia e aqueles envolvidos no desenvolvimento e coordenação técnica da Internet, a “comunidade técnica”. Isso não se traduzia em inclusão plena em termos de gênero, diversidade geográfica, poder, riqueza ou perspectiva. Mas sentia-se que seria possível chegar lá. O que travou isso? Precaução, primariamente do lado do setor empresarial e da comunidade técnica, e também de certos governos. Esta cautela tinha duas fontes: 1- alguns atores sentiam que fazer com que o IGF lidasse com assuntos contenciosos tais como direitos humanos, internacionalização da ICANN ou o papel dos governos na governança da Internet, poderia levar a conflitos e dar um fim prematuro àquele espaço, então novo e experimental; 2- os atores que acreditavam que a Internet deveria ser desregulada ou autorregulada queriam impedir que o IGF chegasse a ser um espaço que poderia produzir recomendações capazes de influenciar políticas e regulação.
Apesar dessas tensões, e da minguante capacidade de seu secretariado, o IGF continuou a existir e a gerar IGFs regionais e nacionais mundo af ora. A falta de capacidade estrutural permanece um desafio significativo, principalmente como resultado de recursos financeiros e lideranças políticas insuficientes – que agravou-se com a saída de seu secretário executivo, Markus Kummer, e o assessor especial da ONU, Nitin Desai. Até hoje nenhum dos dois foi substituido.
Ainda assim, o IGF tem conseguido abrir novos caminhos pelos esforços de um pequeno mas dedicado secretariado, o Grupo Assessor Multissetorial (MAG), pelo apoio e leve supervisão do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da ONU (UNDESA 2 e, mais importante, pelo envolvimento de uma “comunidade” diversa e pluralista de indivíduos, organizações, empresas e governos que têm interesse na Internet e que moldam o IGF através de um processo de baixo para cima, de oficinas auto-organizadas.
Um erro comum é considerar o IGF como um processo isolado. Seu mandato, tal como indicado na Agenda de Túnis, deixa claro que essa nunca f oi a intenção.3 Em pelo menos duas ocasiões o IGF funcionou como uma plataforma para um debate explosivo, mas também efetivo, sobre temas vindos de fora de seus próprios processos: em 2011, quando a proposta da Índia, Brasil e África do Sul (IBAS/IBSA) de estabelecer um novo organismo da ONU para tratar da governança da Internet agitou o IGF de Nairobi, e em 2013, quando preocupações de muito tempo sobre o papel supervisor do governo dos EUA sobre a ICANN e IANA e as revelações de bisbilhotagem maciça das comunicações da Internet pela Agência Nacional de Segurança dos EUA (NSA) combinaram-se para produzir um bocado de drama – e debates excelentes – no IGF de Bali.
Que melhor palco poderia haver para a notícia de um evento amplo, orientado a resultados sobre o futuro da governança da Internet, co-organizado pelo governo de um país em desenvolvimento e a ICANN? O Brasil deixou clara sua visão sobre a espionagem maciça no pronunciamento da presidenta Dilma Rousseff à Assembleia Geral da ONU em setembro de 2013. As organizações da sociedade civil relacionadas à Internet vinham apresentando claramente suas preocupações. E, tal como sugerido pela Declaração de Montevidéu4, publicada algumas semanas antes, a comunidade técnica – o núcleo estável da governança da Internet que sempre mantinha uma posição de defesa do status quo representada pela noção que “se algo não está quebrado, não tente consertar” – exigia mudanças.
Em resposta clara às revelações de Edward Snowden a Declaração de Montevidéu expressou preocupação sobre “o debilitamento da confiança dos usuários da Internet a nível global devido às recentes revelações sobre monitoramento e vigilância generalizados” e fez um chamado pela aceleração do processo de globalização da ICANN e das funções IANA “em direção a um entorno no qual todos os atores, incluindo todos os governos, participem em pé de igualdade”.
Esses processos acabaram entrelaçando-se no caminho para o IGF e no evento em Bali em outubro de 2013 uma grande delegação do governo brasileiro discutiu a ideia do NETmundial em reuniões formais e informais com vários grupos de interesse. O diretor-executivo da ICANN e outros da comunidade técnica ocuparam-se igualmente dos diálogos, e o NETmundial, um novo caminho que romperia barreiras construtivamente para abordar velhos problemas capturou as energias e expectativas de todos.
O justo crédito precisa ser concedido à iniciativa individual, particularmente do diretor-executivo da ICANN, que procurou diretamente a presidenta do Brasil para que o país sediasse o evento. Mas o terreno já estava preparado. O Brasil já era um defensor de longa data da governança multissetorial da Internet e contestava a falta de uma efetiva inclusão de vozes e interesses de países em desenvolvimento na maioria desses processos. No nível nacional, o Brasil foi pioneiro dos processos multissetoriais de governança com a criação do CGI.br, a formulação de princípios comuns para a governança e uso da Internet e a sanção do Marco Civil.
Que o NETmundial foi um êxito tal como constatado, não significa que o IGF agora é obsoleto. Ao contrário, o encontro fornece lições e itens de agenda para que o IGF avance. O IGF pode contribuir para a efetiva realização dos resultados do NETmundial nos níveis global, regional e nacional. O IGF é também o melhor espaço para aqueles que não concordaram com a declaração do NETmundial, ou que colocaram em questão seu processo, expressarem suas preocupações e levarem adiante o debate em direção a resultados de políticas melhores e mais inclusivos.
AVALIAÇÃO DO PROCESSO E DA DECLARAÇÃO DO NETMUNDIAL5
Após o evento, a equipe e membros da APC fizeram esta avaliação crítica e construtiva do processo do NETmundial e seu documento de resultados.
Afirmando a Internet como um bem público: os ganhos e as lacunas
A Declaração Multissetorial de São Paulo representa um progresso substancial para a governança da Internet orientada ao interesse público. Ela reconhece a Internet como um recurso comum que deve ser gerido no interesse público. “Bem público”, ou o termo de Neelie Kroes , “recurso comum global, público”, teria sido preferível, mas este é, no entanto, um passo poderoso no sentido de proteger a Internet como um bem público.
Ligada a esta é a afirmação do valor da abertura e interoperabilidade, da “inovação livre de barreiras”, e da necessidade de apoiar o acesso público à Internet (uma das prioridades da APC). É decepcionante, no entanto, que a proteção contra a responsabilização dos intermediários tenha sido mencionada não como uma condição prévia para a proteção dos direitos, tais como a liberdade de expressão e de associação, mas como vinculada ao “crescimento econômico, a inovação, a criatividade e o livre fluxo de informação”. Há pouca dúvida de que este texto expressa o interesse da indústria do entretenimento. AAPC acredita que esta abordagem abre a porta para exigir que os intermediários da Internet façam valer direitos de propriedade intelectual que interfiram com os direitos à liberdade de expressão e de acesso ao conhecimento.
O consenso não foi alcançado sobre a neutralidade da rede, ou o princípio do livre fluxo de informações e o fluxo não-discriminatório de pacotes de dados através da rede. Isto foi irônico, pois este princípio foi consagrado no Marco Civil da Internet, promulgado pela presidenta Dilma Rousseff durante a abertura do NETMundial. Reconhecendo que há interesses comerciais em jogo para evitar a inclusão de neutralidade da rede como princípio, a sua discussão também é complicada por diferentes definições do que o conceito significa, e de como ele se aplica em vários contextos. Um aspecto positivo é que o roteiro proposto no documento identifica a neutralidade da rede como um espaço para uma discussão mais aprofundada e esperamos que o Fórum de Governança da Internet (IGF) trate disso em futuro próximo.
O documento poderia ter mais referências sobre desenvolvimento, justiça social, integração das preocupações das pessoas dos países em desenvolvimento, e o papel que a Internet pode desempenhar para apoiar um mundo mais justo e sustentável. Citando o inspirador discurso de abertura de Nnenna Nwakanma: “A Internet está rapidamente tornando-se o meio dominante para a criação de riqueza. O ‘direito ao desenvolvimento’ deve incluir a justiça social. Não é o suficiente para fazer um ‘reforço de capacidades’ superficial para algumas pessoas. Precisamos de um mecanismo que permita a inclusão do maior número de pessoas a serem incluídas, o maior número de vozes a serem ouvidas, o maior grau de talentos para aceder à inovação, e o florescimento da criatividade mais profunda da mente humana.
Para isto, precisamos começar a considerar a Internet como um bem comum.”
Os direitos humanos se aplicam off-line e on-line!
O NETmundial identificou os direitos humanos fundamentais como princípios centrais para a governança da Internet e afirma que os governos têm responsabilidade específica sobre a defesa e proteção dos direitos humanos individuais na Internet. Isso é louvável, mas acreditamos que a seção Roteiro do documento deveria levar em consideração aspectos de proteção dos direitos humanos específicos da Internet em maior detalhe - em particular, direitos necessários para garantir a liberdade de expressão e de associação na Internet, tais como o direito ao anonimato e o direito de usar criptografia.
Aprofundar a democracia na governança multissetorial da Internet
Um outro grande avanço no documento é o reconhecimento que a governança da Internet precisa ser democrática e multissetorial, e que o primeiro conceito não é necessariamente sinônimo do último. Ele identificou a necessidade de mecanismos que garantam a prestação de contas, revisão e reparação na governança da Internet, bem como para o equilíbrio de gênero nas discussões e tomadas de decisão.
A declaração do NETmundial vai positivamente além da Agenda de Túnis em seu reconhecimento de que os grupos de interesse não têm sempre papeis fixos, mas que esses “papéis e responsabilidades das partes interessadas devem ser interpretados de modo flexível em relação aos temas em discussão.” Isto abre caminho para uma discussão construtiva das funções específicas dos grupos de interesse em diferentes aspectos do ecossistema de governança da Internet, com referência aos temas e processos em discussão. Em outras palavras, em vez de discutir se os governos devem ter um papel ou não, podemos nos concentrar sobre que papel é este e onde e quando ele é mais necessário.
Vigilância em massa: O elefante que saiu da sala
O mais decepcionante é que a vigilância em massa não foi condenada mais fortemente na versão final da declaração, e alguns dos participantes governamentais insistiram no último minuto que a frase “a vigilância em massa é fundamentalmente incompatível com o direito à privacidade e o princípio da proporcionalidade” fosse removida do documento.
Considerando que o evento surgiu da indignação após as revelações de Edward Snowden, e que a vigilância em massa foi citada como uma das principais preocupações nas contribuições recebidas para a elaboração do docu mento, este fato pode ser melhor descrito como o elefante na sala que acabou sendo retirado – por f orças bastante influentes – antes da conclusão do evento.
O documento afirma que “a vigilância arbitrária e maciça mina a confiança na Internet e no ecossistema de governança da Internet” e que a cooperação - forçada ou voluntária - entre governos e outros setores é tratada pela exigência de que a “captura e tratamento de dados pessoais por entidades estatais e não-estatais devem ser conduzidos de acordo com a legislação internacional de direitos humanos”, mas isso não resolve a proteção dos direitos individuais que são violados em caráter extraterritorial.
Também está incluído no texto um novo apelo aos Estados a partir da Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 2013 para a revisão dos “procedimentos, práticas e legislação relativas à vigilância de comunicações, a sua intercepção e captura de dados pessoais, incluindo a vigilância em massa, interceptação e cobrança, devem ser revistas, tendo em vista a defesa do direito à privacidade, garantindo a plena e efetiva implementação de todas as obrigações sob a legislação internacional de direitos humanos.” Isso proporciona uma abertura para a ação de acompanhamento que ativistas de direitos devem seguir com determinação.
Prestação de contas das funções IANA
É encorajador que a questão da prestação de contas no exercício das funções da Internet Assigned Numbers Authority (IANA) seja parte integrante das discussões sobre a transição dessas funções proposta pela National Telecommunications and Information Administration (NTIA) dos EUA. Aguardamos a continuação do processo assim que os termos dessa prestação de contas sejam publicados. Contamos com o desdobramento de um processo neutro para analisar a transição responsável da custódia das funções IANA com a plena participação de todos os intervenientes globais e com a devida consideração à importância da separação estrutural entre os níveis político e operacional.
O que foi evitado?
A ausência mais notável no documento do NETmundial, apesar de vários pedidos destacando o tema como uma preocupação relevante, é uma chamada para acabar com a crescente militarização da Internet. É evidente que esta é uma questão que deve ser levada em conta no âmbito do IGF.
NETmundial como um processo:
saltos, lições e frustrações Queremos expressar o nosso apreço pelo trabalho duro que a equipe organizadora dedicou ao processo NETmundial, em particular o CGI.br e o presidente do evento, Virgílio Almeida, Secretário de Políticas de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação do Brasil.
O NETmundial representa grandes saltos adiante para a tomada de decisão multissetorial, baseando-se nas práticas pluralistas desenvolvidas durante as oito edições do IGF, e fornece lições úteis para o futuro. Era necessário mais tempo e melhor planejamento para integrar contribuições – recebidos através de uma excelente plataforma online - para os documentos finais de resultado. Além disso, teria sido positivo usar o evento presencial para mais discussão e não para sessões de microfone aberto, o que acabou sendo uma repetição de muito que já tinha sido dito. A elaboração do documento final também poderia ter sido feito de uma forma mais sistemática, garantindo que as pessoas com o conhecimento necessário na área estivessem disponíveis para os coordenadores dos dois grupos de redação (Princípios e Roteiro).
Quando o texto pré-final estava sendo apresentado ao Comitê Multissetorial de Alto Nível, o processo de repente pareceu bastante familiar, já que no último minuto alguns governos insistiram em mudanças no texto, com supressões ou modificações de passagens consideradas menos confortáveis. Isso foi frustrante, mas entendemos que os representantes de governos são limitados por instruções de suas capitais ou por acordos existentes. Por outro lado, se quisermos aprofundar a democracia na governança global da Internet, precisamos encontrar maneiras de remover essas limitações ao finalizar um documento não vinculativo, uma vez que servem para restringir contribuições mais equilibradas e a influência de grupos de interesse.
Se os governos poderosos, cujos pontos de vista muitas vezes coincidem com os de alguns segmentos da indústria da Internet, puderem exercer um veto - ainda que informalmente - no último minuto, teremos um longo caminho a percorrer na direção de uma governança da Internet totalmente inclusiva e democrática. Processos intergovernamentais são muitas vezes criticados por produzir os melhores acordos de consenso com um mínimo denominador comum. Processos democráticos e pluralistas de tomada de decisão devem esforçar-se para evitar isso.
Que virá depois?
Há muito a comemorar. Um grupo bastante diverso de setores trabalhou em conjunto para produzir um documento que tem o potencial para criar uma abordagem mais robusta com foco em direitos humanos e orientada ao interesse público para as políticas e a gestão da Internet. O Governo do Brasil mostrou elegância, liderança e profundo comprometimento com processos inclusivos por estar disposto a um compromisso em uma série de questões, especialmente a neutralidade da rede.
A questão agora é: que virá depois? Como podemos avançar na implementação dos bons aspectos do documento NETmundial e como podemos fortalecer o IGF existente para desempenhar um papel neste processo? O vigilantismo é o lugar óbvio para começar, com os governos respondendo ao chamado para rever a prática de coleta, processamento e monitoramento dos dados pessoais e garantir que esses processos em estejam em conformidade com as normas de direitos humanos, tais como os estabelecidos nos Princípios Necessários e Proporcionais6. Promover a conscientização das questões por trás do debate da neutralidade da rede é também uma tema prioritário, uma vez que é um ponto de partida valioso em uma série de desafios básicos para lidar com conflitos de interesse com a iniciativa privada e promover a Internet como um bem comum.
E, claro, não podemos descansar até que, como afirma a Declaração, tenhamos “oportunidades iguais e universais, acesso à Internet de alta qualidade e baixo custo”, de modo que todos possamos participar de forma mais equitativa no debate.
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* APC - Associação para o Progresso das Comunicações. Ver http://www.apc.org
2. Ver http://www.un.org/en/development/desa/index.html
3. Os dois pontos seguintes no parágrafo 72 da Agenda de Túnis diz que o IGF tem a tarefa de: “facilitar o discurso entre organismos que tratam de diversas políticas públicas transversais internacionais relacionadas à Internet e discutir temas que não são do âmbito de nenhum organismo existente; fazer a interface com as organizações intergovernamentais apropriadas e outras instituições sobre assuntos sob seu mandato.”
4. Ver https://www.icann.org/news/announcement-2013-10-07-en
5. Ver http://www.apc.org/en/pubs/association-progressive-communications-apc-st...
6. Ver https://pt.necessaryandproportionate.org/text