ICANN - novos domínios, antigas disputas
Flávio Rech Wagner, representante da comunidade científica e tecnológica no Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)
Data da publicação: julho 2009
Este artigo oferece um relato parcial sobre a 35a reunião da ICANN (realizada de 20 a 26 de junho em Sidney, Austrália). É parcial no sentido em que descreve mais detalhadamente algumas das discussões que ocorreram durante a reunião da NCUC (Non-Commercial Users Constituency) - uma das muitas instâncias dentro da ICANN -, e no Fórum Público da ICANN, com um foco mais específico na discussão sobre a criação de novos nomes de domínio genéricos – os gTLDs (.com, .org, .edu, .gov, .net, etc. ) e suas implicações políticas, econômicas, técnicas e sociais. A organização da ICANN1 contém múltiplas instâncias administrativas e de atuação dos seus diversos stakeholders, ou grupos de interesse. Entre estas, está a GNSO (Generic Names Supporting Organization)2, que reúne os grupos interessados na gestão dos gTLDs (generic Top Level Domains).
Na sua estrutura atual, a GNSO possui seis constituencies (que são grupos que têm direito a voto), cada uma delas reunindo representantes dos diversos grupos de interesse.3 Uma destas é a NCUC (Non-Commercial Users Constituency)4, de cuja reunião participei no dia 23 de junho. A GNSO é conduzida por um Conselho, formado por 21 pessoas, sendo 18 delas eleitas pelas constituencies (três de cada constituency) e três outras indicadas por um Comitê de Nomeações. A NCUC possui como membros tanto organizações como indivíduos.5 A associação à NCUC está aberta a todos que atenderem a um determinado conjunto de critérios. Nota-se uma grande maioria de organizações envolvidas com os interesses dos usuários individuais, especialmente aquelas que defendem direitos de usuários e consumidores. A atual coordenadora da NCUC é a advogada norte-americana Robin Gross. Os três representantes eleitos pela NCUC para o Conselho do GNSO são William Drake, pela América da Norte, Mary Wong, pela Ásia, e Carlos Affonso Pereira de Souza, da Fundação Getúlio Vargas, pela América Latina e Caribe.
Como representante da comunidade científica e tecnológica,a NCUC é a constituency que corresponde à minha atuação no CGI.br. No entanto, nota-se na NCUC uma grande ausência de acadêmicos (indivíduos e organizações) relacionados com a parte técnica da Internet. Em troca, há forte participação de acadêmicos com atuação em ciências sociais e direito.
A agenda da reunião da NCUC realizada em Sidney incluía um grande número de itens6, mas apenas dois assuntos foram de fato discutidos, cada um deles em grande detalhe, suscitando posições bastante fortes dos presentes. Estes temas – reorganização da GNSO e mecanismos de proteção a marcas globais na criação de novos gTLDs – correspondem, por um lado a questões de organização e de poder dentro da ICANN e, por outro lado, a questões técnicas, ambos ilustrando claramente as disputas que ocorrem entre os diferentes grupos de interesse em todas as atividades da ICANN.
A REORGANIZAÇÃO DA GNSO7
Em sua organização atual, a GNSO tem seis constituencies e cada uma destas elege três representantes para o Conselho da GNSO. Estão sendo propostas diversas modificações que deveriam aperfeiçoar o funcionamento da GNSO8 Entre estas, uma de grande impacto é o aperfeiçoamento das constituencies e a consequente reorganização do Conselho da GNSO. Segundo proposta que está sendo elaborada pelo Structural Improvements Committee (SIC), indicado pelo Conselho Diretor da ICANN, e que deveria ser aprovada até a próxima reunião desta entidade (em Seul, em outubro de 2009), a GNSO passaria a ser organizada em duas “Casas”, uma delas representando os contractual stakeholders (basicamente registries e registrars) e outra representando os non-contractual stakeholders (correspondendo às demais constituencies atuais). Cada uma destas casas passaria a ter 12 assentos no Conselho da GNSO. Em cada casa existiriam dois Grupos de Interesse, cada um deles com um certo número de constituencies e cada um elegendo seis representantes para o Conselho.
No caso dos non-contractual stakeholders, os grupos corresponderiam a grupos com interesses comerciais (reunindo três das atuais constituencies – Usuários Comerciais e Empresariais; Provedores de Conexão e Serviços; e Propriedade Intelectual), e a grupos com interesses não-comerciais, cuja sigla seria NCSG (Non-Commercial Stakeholders Group). Este grupo, no momento, é composto apenas pela NCUC. É expectativa do SIC e da GNSO que novas constituencies surjam dentro do NCSG, correspondendo a outras comunidades hoje mal representadas na NCUC, tal como a comunidade acadêmica técnica9
Em relação à organização atual da GNSO, o grupo non-contractual com interesses comerciais estaria perdendo três vagas no Conselho da GNSO, enquanto o grupo non-contractual sem interesses comerciais estaria ganhando três vagas. Como resultado desta alteração do balanço de poder dentro do Conselho do GNSO, o grupo com interesses comerciais estaria tentando negociar a indicação dos três nomes adicionais que irão representar os não comerciais.
Esta é uma discussão bastante relevante em termos da representatividade dos membros da NCUC no Conselho da GNSO e da própria evolução da NCUC, que se transformará em NCSG e deve incluir novas constituencies, de outros segmentos da sociedade hoje pouco representados na NCUC.
NOVOS GTLDS E A PROTEÇÃO A MARCAS GLOBAIS
Existem atualmente apenas 20 gTLDs.10 Com a intenção de estimular a competição e beneficiar os usuários, a ICANN pretende liberar a partir de 2010 a criação de um número muito maior de gTLDs.11 Este programa traz consigo muitas questões que precisam ser adequadamente resolvidas antes que os novos gTLDs possam ser introduzidos. Elas estão organizadas em torno de quatro grandes eixos: questões econômicas, questões de segurança e estabilidade da rede, questões de proteção de propriedade intelectual e questões derivadas de comportamento malicioso na rede.Em particular, a ICANN designou em março de 2009 um Grupo de Implementação de Recomendações (IRT) para elaborar uma proposta de proteção a propriedade intelectual.12 em função da introdução de novos gTLDs. Esta proposta (um relatório com 69 páginas) foi divulgada em maio de 2009 e submetida publicamente a comentários até 6 de julho.
Entre diversas medidas, o relatório do IRT fez algumas propostas que motivaram fortes críticas de membros da NCUC. O IRT propõe a proteção automática a marcas globais nos domínios de primeiro e segundo nível, através de mecanismos ligeiramente distintos em cada um destes casos. Estas marcas globais seriam incluídas numa lista denominada GPML (Globally Protected Marks List) a partir de sua aderência a um certo conjunto de critérios quanto a seu caráter “global” (i.e. amplamente reconhecidas em todo o mundo). A GPML estaria baseada na suposição de que o proprietário de uma marca detém uma determinada cadeia de caracteres (tal como “apple”, “ibm”, “nike”, “mcdonalds”, etc.), de modo que esta lista administrada pela ICANN permitiria que: (a) os detentores destas marcas sejam avisados quando houvesse uma tentativa de registro de um domínio de primeiro ou segundo nível usando a mesma linha de caracteres; e (b) os registros de domínios utilizando estas linhas sejam automaticamente bloqueados.
Dois membros da NCUC – Kathryn Kleiman e Konstantinos Komaitis – elaboraram pareceres, distribuídos durante a reunião13, com uma avaliação técnica (na realidade principalmente abordando aspectos jurídicos e de procedimentos) a respeito do relatório do IRT. Basicamente, a crítica se centra em três conjuntos de argumentos:14
1. a proposta do IRT extrapolaria o escopo de leis nacionais e internacionais de proteção de propriedade intelectual, atribuindo à ICANN uma competência que se sobreporia a leis existentes;
2. a proposta do IRT extrapolaria o escopo da missão as funções da ICANN, criando para ela uma atribuição (de proteção a marcas) que ela não deveria ter;
3. a proposta do IRT extrapolaria as diretrizes e critérios estabelecidos pelo próprio IRT.
Houve críticas também à composição do IRT, no qual não estariam devidamente representadas muitas das constituencies, resultando num predomínio da Constituency de Propriedade Intelectual e críticas à forma de trabalho do IRT, que não teria tido a devida transparência. Outro tema que provocou protestos por parte de membros da NCUC foi a proposta de criação de um WHOIS15 global, armazenado na própria ICANN, pelo risco de violação de direitos de privacidade.
NOVOS GTLDS – O FOCO DO FÓRUM PÚBLICO16
São princípios do funcionamento da ICANN a transparência17 de todas as suas ações e decisões e a accountability18 perante os seus grupos de interesse. Entre os vários mecanismos previstos para assegurar o respeito a estes princípios estão: a realização de reuniões abertas de todas as instâncias decisórias; a transcrição e registro de todas as sessões; a colocação de todos os documentos em consulta pública para recebimento de comentários antes de sua aprovação; e a possibilidade de participação remota nas reuniões. O Fórum Público é mais um dos mecanismos de transparência, aberto à participação de todos os interessados.
O Fórum Público é uma sessão plenária da qual participam todos os grupos de interesse da ICANN. Como não é programada nenhuma outra atividade em paralelo, esta sessão atrai a maioria dos participantes da reunião. Dos cinco temas previstos na agenda do Fórum Público desta 35a reunião da ICANN, quatro deles estavam relacionados à criação de novos gTLDs (generic Top Level Domains):
• Relatório do IRT (Implementation Reccomendation Team) e proteção a marcas;
• Separação vertical entre registries e registrars;
• IDNs (Internationalized Domain Names);
• Outros temas relacionados a gTLDs. Além destes, também constava da agenda o tema do JPA (Joint Project Agreement19) e o aumento da confiança institucional.Algumas das críticas da NCUC à proposta de criação de novos gTLDs foram repetidas durante o Fórum Público. Entre as posições manifestadas pelo público estavam:
• A crítica ao prazo para avaliação do relatório do IRT (que teria sido curto) e a sugestão de que seria necessário mais tempo para a discussão com a comunidade. O Presidente do Conselho Diretor da ICANN, Peter Thrush20, afirmou que o assunto ainda está em aberto e haverá novas rodadas de discussão.• A percepção de que o IRT teria sido controlado principalmente pela Intellectual Property Constituency.21 Seria necessário procurar um consenso maior entre os diversos grupos de interesse da ICANN, reunidos em outras constituencies.
• A observação de que teria faltado, no trabalho do IRT, a transparência que é tão cara à ICANN em todos os seus procedimentos.
• A crítica à proposta do IRT, pois esta não obedeceria a regras do direito internacional (p.ex. da OECD).
• A percepção de que o thick whois22 no registry é um mecanismo que põe em risco a privacidade dos usuários. A proposta deveria obedecer a normas internacionais de privacidade de dados.
OUTROS TEMAS RELACIONADOS AOS NOVOS GTLDS
Além do tema da propriedade intelectual, outras questões foram levantadas pelos participantes do Fórum Público. Uma delas ressaltou o fato de que, no contexto do programa de novos gTLDs, está sendo proposta uma política de objeção baseada em conceitos de moralidade e ordem pública.23 Estaria sendo introduzido também o conceito de independent objector24, que seria uma entidade externa que poderia atuar em nome de interesses difusos da comunidade. A questão que se impõe, neste caso, é: qual é a relação entre ambos os mecanismos? Neste sentido, um representante da NCUC expressou a preocupação de organizações que defendem a liberdade de expressão, participantes desta constituency, quanto à proposta de que qualquer pessoa ou organização possa objetar à criação de um domínio em função de questões de moralidade e ordem pública. Para este membro da NCUC, este não é um padrão razoável a ser estabelecido pela ICANN.
A criação de novos gTLDs dá margem também a outras discussões complexas, além daquelas motivadas pelos temas da propriedade intelectual e do controle em prol da moralidade e da ordem pública. Uma das questões que parecem suscitar polêmica foi levantada pelo GAC25, que expressou a posição de que a ICANN não pode negar a um governo o direito de manter os ccTLDs26 que correspondem a seu país e/ou territórios. Imagine-se, num exemplo extremo, que a ICANN aprovasse a criação de um gTLD chamado “brasil”, atribuindo a um registrar a sua gerência. Assim, o GAC quer garantir a reserva de nomes geográficos não apenas no primeiro nível como também no segundo nível.
Na reunião do Conselho Diretor da ICANN, no dia seguinte ao Fórum Público, foi decidido que a equipe da ICANN irá preparar até o final de agosto de 2009 um documento, a ser aberto para comentários públicos, com opções para continuação do trabalho do IRT. Assim, a discussão continua – e a participação neste debate é possível para qualquer pessoa interessada, através das consultas públicas online e da participação na NCUC – em http://www.ncdnhc.org(link is external)
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1. A organização da ICANN pode ser vista em http://www.icann.org/en/about(link is external).
2. http://gnso.icann.org(link is external).
3. As constituencies são: Commercial and Business Users; gTLD Registries; Internet Service and Connection Providers; Non-Commercial Users; Registrars; e Intellectual Property. Registries são as entidades responsáveis pela gestão dos TLDs - sejam gTLDs (.com, .org, .net, etc) ou ccTLDs – country code TLDs (.br, .ar, .uk, etc.). Registrars são as entidades responsáveis pela gestão de nomes de domínio de segundo nível.
4. http://gnso.icann.org/non-commercial(link is external).
5. Uma relação não atualizada de membros da NCUC se encontra em http://ncuc.syr.edu/members.htm(link is external). Vê-se a participação de três organizações brasileiras: Fundação Getúlio Vargas, RITS – Rede de Informações para o Terceiro Setor e Comitê para a Democratização da Informática de Pernambuco.
6. A agenda originalmente prevista para a reunião está em http://syd.icann.org/node/3764(link is external)
7. N.E.: Um maior detalhamento da discussão sobre a reorganização da GNSO e das discussões do Fórum Público pode ser lida na versão completa deste texto, em www.politics.org.br(link is external).
8. Uma visão geral dos diversos aperfeiçoamentos propostos pode ser encontrada em http://gnso.icann.org/en/improvements(link is external).
9. Esta expressão “comunidade acadêmica técnica” foi utilizada por Roberto Gaetano, coordenador do SIC, para identificara comunidade de especialistas em questões técnicas da internet, em oposição a acadêmicos de áreas das ciências sociais.
10. Além dos sete gTLDs originais (.com, .org, .edu, .gov, .net, .mil e .int), outros foram criados sucessivamente, a partir de 2001, tais como .biz, .info, .asia, .mobi e .travel. Ver mais em http://www.icann.org/en/tlds(link is external)
11. http://www.icann.org/en/topics/new-gtld-program.htm(link is external)
12. Ver o relatório finalcom a proposta do IRT em http://www.icann.org/en/topics/new-gtlds/irt-final-report-trademark-prot...(link is external).
13. Infelizmente, recebi apenas versões impressas destes pareceres. Não tive ainda acesso a versões eletrônicas que possam ser referenciadas aqui.
14. Faço aqui um esclarecimento: repito a essência dos argumentos contidos nestes pareceres de membros da NCUC, sem emitir juízo de valor sobre a correção dos mesmos, especialmente por não ser um especialista em questão de proteção a marcas e não ter experiência suficiente com os procedimentos da ICANN.
15. WHOIS é uma base de dados contendo informações que identificamos detentores de domínios, que deve ser mantida por registries (neste caso denominada Thick Whois) e registrars (neste caso Thin Whois).
16. O Fórum Público é uma das diversas sessões plenárias que ocorrem durante a reunião da ICANN.
17. IVer as formas de transparência previstas nos Estatutos em http://www.icann.org/en/general/bylaws.htm#III(link is external)
18. O termo accountability indica que a ICANN deve ser responsável perante todos os seus grupos de interesse em termos de uma atuação consistente com sua missão e Estatutos. Ver mais em http://www.icann.org/en/general/accountability_review.html(link is external)
19. O JPA é o documento firmado entre a ICANN e o Departamento de Comércio dos EUA em setembro de 2006, em substituição a acordos anteriores, que prevê o desenvolvimento conjunto de mecanismos, métodos e procedimentos necessários para efetuar a transição da gerência do DNS para o setor privado.
20. http://www.icann.org/en/biog/thrush.htm(link is external)
21. A IPC (Intellectual Property Constituency) é uma das constituencies que compõem a GNSO. Ver mais em http://gnso.icann.org/intellectual-property(link is external)
22. Thick whois , conforme proposta do IRT, será um banco de dados, armazenado no registry, com informações sobre todos os detentores de domínios dentro do TLD gerido pelo registry. Ver mais em http://www.icann.org/en/topics/new-gtlds/thick-thin-whois-30may09-en.pdf(link is external)
23. http://www.icann.org/en/topics/new-gtlds/morality-public-order-30may09-e...(link is external)
24. http://www.icann.org/en/topics/new-gtlds/independent-objector-18feb09-en...(link is external)
25. O GAC (Governmental Advisory Committee) é uma das organizações que fazem parte da ICANN, composta por representantes de governos. Ver em http://gac.icann.org(link is external)
26. Ver explicação sobre os ccTLDs na nota de rodapé no. 3