Governança da Internet: a sociedade civil em uma encruzilhada
Avri Doria, Pesquisadora da Luleå University of Technology
Data da publicação: dezembro 2011
A Governança da Internet - este espaço globalmente interconectado, do qual estão cada vez mais dependentes os cidadãos, governos e empresas de todo o planeta -, é na verdade um processo contínuo e em estado de experimentação. Organizações como a ICANN1, que gerencia o DNS2, e o IGF3, criado como um fórum global para discutir questões de governança e políticas de Internet, adotaram variações do modelo multissetorial4- que inclui a sociedade civil, governos, empresas e a comunidade técnica.
O sexto IGF5 ocorreu em setembro de 2011 em Nairobi. Quando me pedem para descrever o sucesso e influência da sociedade civil na defesa dos direito dos usuários da Internet, minha resposta é a seguinte: a sociedade civil não chegou muito longe ainda, está em uma encruzilhada, e não tem certeza de onde ela quer chegar, mas ainda há tempo de encontrar sua direção e desempenhar um papel importante. Neste texto, eu apresento meu olhar sobre a sociedade civil na perspectiva de participante do IGF e da ICANN, os dois maiores espaços de convergência da governança multissetorial da Internet.
Existem outras organizações nas quais se vê o envolvimento da sociedade civil em relação à governança da Internet, mas como ficou evidente no caso do fiasc6 do eG87, a sociedade civil muitas vezes não chega sequer a ganhar um espaço na mesa de negociações. Até mesmo na OCDE8, onde uma coalizão de 80 organizações da sociedade civil (o Conselho Consultivo da Sociedade da Informação da Sociedade Civil, ou CSISAC9) finalmente ganhou algum status, no final das contas sua participação oi marginalizada e suas objeções10 não foram incluídas no comunicado final de ma reunião para defini um conjunto de princípios de formação de políticas para a Internet. Neste momento, as únicas áreas da governança da Internet nas quais a sociedade civil tem um papel bem estabelecido são o IGF e a ICANN.
O papel da Sociedade Civil em relação à Governança da Internet atingiu seu ápice na Tunísia, durante a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI)11 onde foi possível reivindicar justiça para ativistas lutando pela liberdade de expressão e lutar para a criação de um fórum - que concretizou-se no IGF. A sociedade civil, neste momento, estava em efervescência - cheia de ideias e propostas. Naquela ocasião a sociedade civil não somente trabalhou em cooperação com o empresariado e com a comunidade técnica, mas também foi capaz de fazer pronunciamentos significativos a respeito de vários temas críticos Na CMSI, a voz da sociedade civil não podia ser ignorada, para o desagrado de muitos.
Depois daquele momento estimulante, a sociedade civil vem, aos poucos, tornando-se cada vez menos influente. Isto não quer dizer qu algumas organizações ainda não exerçam grande influência – por exemplo, a APC (Associação par o Progresso das Comunicações12) ainda é uma voz que mobiliza as atenções. No entanto, uma parte significativa da sociedade civil, organizada e grupos como o Caucus de Governança da Internet (IGC, por sua sigla em inglês13) perdeu muito de seu poder. Alguns atribuem este fato à inadequação da forma de democracia participativa que chamamos de governança multissetorial, argumentando que a sociedade civil não pode ser tomada como uma entidade internacional independente, mas sim que deve atuar através dos governos nacionais, na medida em que puder fazê-lo. Outros argumentam que já que ativistas da sociedade civil atribuem a si mesmos este papel, não podem representar ninguém. Alguns ainda acreditam que a sociedade civil foi capturada pelo mercado liberal. Sejam quais forem as razões, a sociedade civil não tem mais o ímpeto que tinha quando o IGF foi criado em 2005. Embora tenha ganho um pouco mais de energia em 2010, durante as discussões na Comissão sobre Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento sobre a renovação do mandato do IGF14- que incluiu o debate sobre a criação de um grupo de trabalho sem a participação da sociedade civil -, sua disposição em participar em muitos dos tópicos em torno da governança da Internet é errática e inconsistente. Na verdade, os momentos nos quais a sociedade civil parece acordar são aqueles em que ela é excluída dos processos. Assim que consegue colocar o pé na porta, retorna ao seu estado normal de inatividade, que se traduz em sua incapacidade de oferecer pronunciamentos relevantes e oportunos.
No contexto do IGF, esta falta de influência oi reconhecida pelo Caucus de Governança da Internet e existem tentativas para achar um caminho para que a sociedade civil volte a ter uma atuação relevante. Em 2011, no Multi-Stakeholder Advisory Group (MAG15), que é o comitê que elabora o programa para as reuniões do IGF, membros da sociedade civil pela primeira vez empenharam-se em conseguir uma voz firme da sociedade civil em vários do painéis principais. Tomando como exemplo diversas práticas de participação da comunidade empresarial de Internet, vários atores da sociedade civil coordenaram-se em suas atividades utilizando a Internet e foram capazes de exercer alguma influência sobre o programa. Este esforço foi bem sucedido, e muito do crédito deve ser atribuído a alguns membros que realmente remaram contra a maré no MAG para conseguir o envolvimento da sociedade civil; eles deixaram um exemplo para o futuro e começaram a traçar uma nova direção para a sociedade civil.
Na ICANN a história da participação da sociedade civil tem sido marcada pela disfunção. No processo multissetorial da ICANN, a sociedade civil tem sido um participante minoritário, tratado com desconsideração e que tem sido alvo de interferências16, o que costuma acontecer com minorias na maior parte das comunidades. No entanto, a sociedade civil tem um papel e pode ter uma voz significativa se souber se organizar.Infelizmente, a sociedade civil consome muito de seu tempo debatendo-se em várias formas de conflito dentro de suas próprias trincheiras. No passado, as batalhas entre diferentes grupos da sociedade civil serviram como motivo de diversão para o resto da comunidade. Embora hoje estejamos em uma época de relativa paz entre os distintos grupos, só um otimista ao extremo acreditaria que esta situação se sustentará por muito tempo. Na minha perspectiva, vejo a sociedade civil dentro da ICANN diante de uma outra era de conflito destrutiv para todos os lados envolvidos. O Grupo Setorial Não Comercial (NonCommercial Stakeholder Group, ou NCSG17), uma parte da representação da sociedade civil na ICANN, está dividido em dois subgrupos de participantes com direito a voto, cujos líderes vêem-se como inimigos, mesmo que muitos de seus membros saibam como encontrar um caminho para trabalhar juntos e acomodar suas diferenças. Por outro lado, a comunidade At-Large, o outro grupo na ICANN do qual participa a sociedade civil, ainda está descobrindo sua voz e não alcançou a autoconfiança necessária para conseguir surtir algum efeito sobre a ICANN. O Comitê Consultivo da Comunidade At-Large (o ALAC18), órgão que coordena o At-Large, tem, no entanto, uma forte liderança que está muito determinada a manter o comitê unido para alcançar objetivos comuns. Acredito que a direção que o ALAC está seguindo é promissora.
Atribuo a perda de influência da sociedade civil às divisões entre os seus ativistas. Tanto no IGC em relação ao IGF, quanto no NCSG em relação à ICANN, existe mais frequentemente interesse na pureza ideológica do que em trabalhar em conjunto para alcançar objetivos comuns. Em ambas as organizações, a maior parte da energia é gasta nas discussões ideológicas e nas repercussões das argumentações, nos ressentimentos e divisões estruturais. O único momento em que há união na sociedade civil é quando existe uma ameaça externa comum - por exemplo, quando houve a ameaça de cancelar o IGF em 2010.
É nesta a encruzilhada que se encontra a sociedade civil. As facções podem continuar a discutir sobre pureza ideológica, ou podem concordar em causas comuns para objetivos importantes e trabalhar juntas tolerando suas diferenças. E esta é a decisão que a sociedade civil precisa tomar em relação ao seu caminho - pureza ideológica ou pragmatismo para atingir objetivos comuns voltados ao interesse público.
Felizmente, ainda há tempo para que a sociedade civil, ao menos no contexto do IGF, saia desta encruzilhada rumo a uma direção crucial. Faltam quatro anos para o processo de avaliação da CMSI, dez anos após sua realização, o que ainda é tempo suficiente para a sociedade civil mobilizar-se e relação a importantes tópicos baseados em defesa de direitos, que tem de ser o foco deste processo.
É dever da sociedade civil apontar o quão pouco foi alcançado nos dez anos após a Agenda de Túnis, e também é seu papel certificar-se que esta mensagem seja propagada e que ações sejam postas em prática para fazer com que algo aconteça na próxima década. Na realidade a sociedade civil não deveria esperar quatro anos, mas deveria começar a trabalhar em relação a seus objetivos no curto prazo.
Tratando-se do curto prazo, o próximo IGF está marcado para acontecer no Azerbaijão, um país bem conhecido por desrespeitar a liberdade de sua população. Quando um evento como o IGF vem a um país, um pequena janela de liberdade é aberta. A sociedade civil precisa se mobilizar para a próxima edição do Fórum, para ajudar a sociedade civil do Azerbaijão a maximizar esta oportunidade. Quando o circo itinerante do IGF deixar a cidade, as forças da repressão estarão prontas para administrar as repercussões daquele momento de liberdade.
A sociedade civil precisa se mobilizar para certificar-s de que mecanismos estejam claramente instalados para proteger as pessoas, quando o fórum deixar a cidade. Felizmente, os esforços neste sentido já foram iniciados por algumas organizações da sociedade civil, incluindo entidades como a Freedom House.19
Em termos da ICANN, não tenho certeza se existe muito mais que possa ser feito pelo NCSG neste momento, a não ser abaixar-se e esconder-se;20 mas espero que esteja errada e que a liderança no NCSG encontre um caminho para conciliação e trabalho em grupo. Mas em termos do At-Large existe uma grande chance que nos próximos anos este possa atingir a mesma estatura do GAC (Government Advisory Committee21) em sua capacidade de prover uma orientação embasada sobre como tornar a Internet um lugar melhor para as pessoas, e de ter esta orientação levada a sério, tanto quanto é levada a sério a orientação dos governos.
Uma aspecto positivo destes dois espaços multissetoriais é que estão sempre abertos a novos participantes. De fato, anseiam por novos participantes. Sobre o IGC e o trabalho no IGF, informação sobre como se envolver pode ser encontrada no sítio do Caucus.22 Também pode-se consultar o sítio do IGF.23 Há oportunidades de participar como indivíduo: por exemplo, a maioria das reuniões são abertas e permitem participação remota. Já o envolvimento com a ICANN pode ser complicado, mas existem várias maneiras de participar – que vão desde o envio de comentários sobre recomendações para políticas; passando pela própria proposição de recomendação para políticas; até mesmo tornando-se parte da diretoria e aprovando as recomendações. Quase todas as reuniões dos Grupos de Trabalho e as reuniões da ICANN são abertas ao público; oportunidades e informações sobre a participação são geralmente postadas no sítio Web da ICANN.24 As pessoas interessadas também podem encontrar informações online sobre como juntar-se ao NCSG.25 Se você é membro de uma organização focada em questões relacionadas à Internet, uma das melhores maneiras de participar é tornando sua organização uma das At-Large Structures (ALS26), ou juntando-se a um grupo já existente.27 Finalmente, a cada ano, a ICANN busca novos líderes para sua diretoria e seus vários comitês. Informações podem ser encontradas na página do Comitê de Nomeação.28
A história da sociedade civil é uma história de influência flutuante – em fases crescentes minguantes. Já há vários anos ela está minguando. Com esforço e maior participação e cooperação pode-se entrar em uma fase de crescimento. Espero que este seja o caminho e que possamos sair da atual encruzilhada.
Artigo originalmente publicado pela Global Voices Advocacy, em http://advocacy.globalvoicesonline.org/2011/10/11/internet-governance-co...
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1. Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN): http://www.icann.org/
2. Domain Name System (DNS): http://en.wikipedia.org/wiki/Do-main_Name_System
3. Fórum de Governança da Internet, da sigla em inglês para Internet Governance Forum: http://www.intgovforum.org/cms/
4. Sobre este modelo, ver https://sites.google.com/site/colabdev3000/publikationen/discussion-pape...
5. Sítio web da 6a. Edição do IGF: http://igf.or.ke/
6. Sobre o fiasco do eG8, ver o artigo no Radar O’Reilly: http://radar.oreilly.com/2011/05/eg8-2011-internet-freedom-ip-copyright....
7. Sítio web do eG8: http://www.eg8forum.com/en/
8. Organização dos ….OCDE: http://www.oecd.org/site/0,3407,en_21571361_47081080_1_1_1_1_1,00.html
9. Ver em http://csisac.org/
10. O documento com as posições da sociedade civil em relação ao …..está em objections: http://www.ip-watch.org/weblog/2011/06/28/oecd-faces-concerns-over-its-i...
11. Sobre esta Conferência das Nações Unidas, ver mais no sítio web oficial: http://www.itu.int/wsis/index.html
12. Em http://www.apc.org/
13. http://www.igcaucus.org/
14. Ver em http://www.unctad.info/en/CstdWG/
15. Sobre este grupo, ver em http://www.intgovforum.org/cms/magabout
16. A exemplo do que está descrito em http://www.apc.org/en/pubs/issue/governance/civil-society-involvement-ic...
17. Sobre o NonCommercial Stakeholder Group: http://gnso.icann.org/non-commercial/
18. Ver sobre o ALAC em http://www.atlarge.icann.org/en/
19. http://www.freedomhouse.org/template.cfm?page=1
20. N.T.: No original, Duck and Cover, expressão que se refere ao filme que ensinava um método de proteção pessoal em caso de ataques nucleares, produzido pelo governo norte-americano e exibido às crianças na escola dos anos 50 aos anos 80.
21. https://gacweb.icann.org/display/gacweb/About+the+GAC
22. Sobre como tornar-se membro do IGC: http://www.igcaucus.org/membership
23. Em http://www.intgovforum.org/
24. Ver http://www.icann.org
25. Ver http://gnso.icann.org/non-commercial/
26. Ver http://www.atlarge.icann.org/
27. Ver em http://www.atlarge.icann.org/maps/
28. Ver http://nomcom.icann.org/