Web 2.0 versus Controle 2.0*
Por Lucie Morillon, Chefe da Central de Novas Mídias de Repórteres sem Fronteiras
Por Jean-François Julliard, Secretário-Geral de Repórteres sem Fronteiras
Data da publicação: março 2010
Em países autoritários nos quais os meios de comunicação tradicionais são controlados pelo Estado, a Internet oferece um espaço único para discussão e compartilhamento de informações, tornando-se um motor cada vez mais importante para iniciativas de protesto e mobilização. A Internet é o caldeirão em que as organizações da sociedade civil que sofrem repressão pode ganhar um novo ânimo e desenvolver suas atividades.
As novas mídias, especialmente as redes sociais, têm oferecido às pessoas ferramentas de colaboração com as quais é possível alterar a ordem social. Os jovens rapidamente se apropriaram destes espaços. A rede social Facebook tornou-se um ponto de encontro para ativistas impedidos de se manifestarem nas ruas. Um simples vídeo no YouTube - como o Neda Iran2 ou a Marcha Saffron dos monges em Mianmar3 - pode ajudar a expor abusos dos governos para o mundo inteiro. Um simples flashdrive USB pode ser tudo o que se precisa para disseminar notícias - como em Cuba, onde eles se tornaram as "samizdats4" locais.
Aqui, os interesses econômicos estão interligados com a necessidade de defender a livre circulação de informações. Em alguns países, são as empresas que têm obtido um melhor acesso à Internet e às novas mídias, o que por vezes traz conseqüências positivas para o resto da população. Compreendida como uma barreira ao comércio, a censura da Internet deve ser incluída na agenda da Organização Mundial do Comércio (OMC). Vários dos membros da OMC, incluindo a China e o Vietnã, devem ser obrigados a abrir as suas redes de Internet antes de serem convidados a participar da aldeia global do comércio internacional...
TOMADA DE CONTROLE
Todavia, os tempos mudaram desde que a Internet e os novos meios de comunicação eram vantagem diferencial dos dissidentes e opositores. Os líderes de alguns países foram surpreendidos pela proliferação de novas tecnologias e principalmente com o surgimento de novas formas de debate público. De repente, eles tiveram que lidar com o fato de que as "Revoluções Coloridas" se tornaram "Revoluções Twitter". Assim, o grande potencial do ciberespaço não poderia continuar reservado para vozes dissidentes. Censurando conteúdos políticos e sociais com as mais recentes ferramentas tecnológicas, prendendo e torturando internautas, usando ferramentas de vigilância onipresente e registros de identificação que comprometem o anonimato na Web, governos repressivos estão colocando em prática suas ameaças. Em 2009, cerca de sessenta países experimentaram algum tipo de censura da Web, o que é o dobro da estatística de 2008. A Internet está sendo progressivamente devorada pela implementação de Intranets nacionais, cujo conteúdo é "aprovado" pelas autoridades locais. UzNet, Chinternet, TurkmenNet ...
Não importa a estes governos se os usuários da Internet se tornarão, cada vez mais, vítimas de uma segregação digital. A Web 2.0 está colidindo com o controle 2.0.
Alguns poucos países como a Coréia do Norte, a Birmânia e o Turquemenistão podem se dar ao luxo de ficar completamente fora da Internet. Eles não estão tomando providências quanto à falta de desenvolvimento de suas infraestruturas de conexão Internet, porque isso serve aos seus propósitos, e, assim a situação persiste. No entanto, o mercado negro de telecomunicações prospera em Cuba e na fronteira entre a China e a Coréia do Norte.
Internautas estão se tornando alvo de perseguições num ritmo crescente. Pela primeira vez desde a criação da Internet, um número recorde de cerca de 120 blogueiros, usuários da Internet e ciberdissidentes estão atrás das grades por terem se manifestado livremente no mundo online. O maior número deles está na China, que está muito à frente de outros países (com 72 internautas detidos), seguida pelo Vietnã e pelo Irã, que lançaram ondas brutais de ataques a sítios Web nos últimos meses.
Alguns países têm prendido internautas, muito embora ainda não tenham buscado implementar nenhuma estratégia de controle ou repressão da rede. No Marrocos, um blogueiro e o proprietário de um cibercafé foram presos pelas autoridades locais que tentavam encobrir a repressão de uma manifestação que acabou fora de controle. No Azerbaijão, o governo mantém presos Adnan Hadjizade e Emin Milli - dois blogueiros que haviam denunciado a corrupção de alguns funcionários do governo os ridicularizaram em um vídeo divulgado no YouTube. Quatro jornalistas também estão atrás das grades no Iêmen. É muito cedo para dizer se estas detenções podem anunciar uma nova tomada de controle sobre as novas mídias.
Mais e mais Estados estão implantando ou estudando a formulação de leis repressivas relativas à Internet, ou estão aplicando leis que já existem, como é o caso da Jordânia, do Cazaquistão, e do Iraque. Democracias ocidentais não são imunes a esta tendência de regulação da Internet. Em nome da luta contra a pornografia infantil ou o roubo de propriedade intelectual, leis e decretos foram aprovados, ou estão sendo deliberados, nomeadamente na Austrália, França, Itália e Grã-Bretanha. Em uma escala global, o ACTA5 (Acordo Comercial Antipirataria), cujo objetivo é combater a falsificação, está sendo negociado a portas fechadas, sem consulta às ONGs e à sociedade civil. Este acordo pode, eventualmente, introduzir medidas potencialmente liberticidas, como a possibilidade da implementação de sistemas de filtragem da Internet sem prévia decisão judicial.
Alguns países escandinavos estão tomando uma direção diferente. Na Finlândia, o Ofício n º. 732/2009 estabelece que o acesso à Internet é um direito fundamental de todos os cidadãos. Em virtude deste texto, cada família finlandesa terá pelo menos um 1 MB/s de conexão Internet até 31 de julho de 2010. Em 2015, a conexão será de pelo menos 100 MB/s. O Parlamento da Islândia está analisando um projeto de lei, o "Icelandic Modern Media Initiative" (IMMI), que visa estritamente a proteção das liberdades na Internet, garantindo a transparência e a independência da informação. Se a lei for aprovada, a Islândia será um ciberparaíso para os blogueiros e jornalistas cidadãos.
A RESPOSTA DOS USUÁRIOS DA INTERNET
O resultado da 'ciberguerra' entre internautas e autoridades repressoras também dependerá da eficácia das armas que cada lado tem disponível: poderosos filtros e sistemas de vigilância para descriptografar e-mails, e proxies e ferramentas de evasão de censura cada vez mais sofisticadas - como o Tor, VPNs, Psiphon e UltraReach. Estas ferramentas são desenvolvidas principalmente graças à solidariedade de internautas ao redor do globo. Por exemplo, milhares de iranianos usam proxies originalmente destinados a internautas chineses.
A pressão global faz a diferença, também. Os interesses geo-estratégicos das maiores potências do mundo têm uma plataforma de comunicação na Web. Em janeiro de 2010, os Estados Unidos fizeram da liberdade de expressão na Internet o objetivo número um de sua política externa. Ainda estamos para ver como o país vai aplicar essa estratégia às suas relações externas, e qual será a reação dos outros países.
Em seu isolamento aparente, os usuários da Internet, os dissidentes e os blogueiros são vulneráveis. Eles estão, portanto, começando a se organizar, em conjunto ou individualmente, dependendo de que causas eles querem defender. Este tipo de dinâmica pode fazer surgir uma associação de blogueiros russos, ou outra composta de marroquinos, ou grupos de usuários da Web em Belarus lançando campanhas de protesto contra as decisões do governo, ou um grupo de blogueiros egípcios em mobilização contra a tortura ou o custo de vida, ou mesmo usuários de Internet chineses organizando protestos online em nome de manifestantes iranianos no Twitter.
Sejam as suas causas de âmbito nacional ou global, as mensagens que eles comunicam são aquelas que decidirão o cenário da Internet de amanhã. A resistência é se organizar.
OS INIMIGOS DA INTERNET EM 2010
Os "Inimigos da Internet" - lista elaborada novamente este ano por Repórteres Sem Fronteiras -, apresenta os piores violadores da liberdade de expressão na Web: Arábia Saudita, Birmânia, China, Coréia do Norte, Cuba, Egipto, Irã, Uzbequistão, Síria, Tunísia, Turquemenistão e Vietnã.
Alguns destes países estão determinados a usar todos os meios necessários para impedir que seus cidadãos tenham acesso à Internet: Burma, Coréia do Norte, Cuba e Turquemenistão - países em que obstáculos técnicos e financeiros são somados à dura repressão e à existência de uma Intranet muito limitada. Desligamentos ou significativa lentidão da Internet são comuns em períodos de agitação. O potencial da Internet como um portal aberto ao mundo contradiz diretamente a propensão desses regimes a isolar-se de outros países. Arábia Saudita e Uzbequistão optaram por uma filtragem tão maciça, que seus usuários de Internet têm optado pela prática da autocensura. Para fins econômicos, a China, o Egito, a Tunísia e o Vietnã apostaram em uma estratégia de desenvolvimento de infraestrutura, mantendo um rígido controle sobre o conteúdo político e social da Web (os sistemas de filtragem chinês e tunisino estão cada vez mais sofisticados), e eles têm demonstrado uma profunda intolerância com relação a opiniões críticas. A grave crise interna que o Irã vive nos últimos meses agora inclui em seus meandros os internautas e as novas mídias; eles se tornaram inimigos do regime. Entre os países "sob vigilância" há várias democracias: a Austrália, por causa da futura implementação de um sistema de filtragem da Internet altamente desenvolvido e a Coréia do Sul, onde leis draconianas criam demasiadas restrições específicas aos usuários da Web, desafiando o seu anonimato e promovendo a autocensura.
A Turquia e a Rússia acabaram de ser adicionadas à lista "Sob Vigilância". Na Rússia, a despeito do controle exercido pelo Kremlin sobre a maioria dos meios de comunicação, a Internet tornou-se o espaço mais livre para o compartilhamento de informação. No entanto, a sua independência está ameaçada por conta de detenções de blogueiros e processos judiciais, bem como pelos bloqueios dos chamados sítios Web "extremistas". Propaganda do regime é cada vez mais onipresente na Web. Há um risco real de que a Internet seja transformada em um instrumento para controle político.
Na Turquia, os temas tabu estão relacionados principalmente com Atatürk6, o exército, as questões relativas às minorias (especialmente curdos e armênios) e a dignidade da nação. Estes assuntos têm servido como justificativa para o bloqueio de vários milhares de sites, incluindo o YouTube, desencadeando uma grande quantidade de protestos. Blogueiros e internautas que se expressam livremente sobre tais temas podem enfrentar represálias judiciais.
Outros países, como os Emirados Árabes Unidos, a Bielorrússia e a Tailândia também estão mantendo seu status de "sob vigilância", mas precisarão fazer mais progressos para evitar que sejam transferidos para a próxima lista de “Inimigos da Internet”. A Tailândia, por causa dos abusos relacionados com o crime de "Lesa-majestade", os Emirados Árabes, porque têm reforçado o seu sistema de filtragem; Bielorrúsia porque seu presidente acaba de assinar uma ordem liberticida que irá regulamentar a Internet, e que entrará em vigor neste verão – apenas alguns meses antes das eleições.
Veja a lista “Inimigos da Internet” e a lista dos países sob vigilância: http://www.rsf.org/en-ennemi36676-Burma.html
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1. Este artigo é a introdução do relatório que traz as listas de países “Inimigos da Internet” e “Sob Vigilância”, publicado por Repórteres sem Fronteiras em 12 de março de 2010 - Dia Mundial contra a Cibercensura. O documento original está em http://www.rsf.org/IMG/pdf/Internet_enemies.pdf
2. N.E.: Vídeo que retrata o assassinato da jovem iraniana Neda, que assistia a protesto contra o resultado das eleições no Irã, em 2009. Para saber mais, ver a discussão no blog Boing Boing: http://boingboing.net/2009/06/21/iran-neda-warning-gr.html
3. N.E.: Manifestações lideradas pelos monges budistas em repúdio à ditadura militar em Burma. Ver http://saffronrevolutionworldwide.blogspot.com/2007/10/post-youtube-vide...
4. N.E.: Cópias não autorizadas de textos censurados pelo regime soviético, que eram reproduzidas por dissidentes e passavam de mão em mão.
5. N.T.: Sigla de Anti-Counterfeiting Trade Agreement.
6. N.E.: Mustafa Kemal Atatürk foi o fundador da República da Turquia e seu primeiro presidente.