Por que precisamos discutir a chamada “integridade da informação”?
Nina Santos* - Traduzido do original em https://www.techpolicy.press/why-do-we-need-to-discuss-sovocation-infor…
O termo “integridade da informação” é cada vez mais empregado, especialmente por organizações internacionais1 e organizações que desenvolvem planos para combater a desinformação e promover a produção e divulgação de informações factuais.2 Agora, o termo também foi adotado pelo governo brasileiro. Em 2023, foram assinados pelo menos quatro instrumentos de cooperação entre o Brasil e outros países que utilizam este termo.3 No contexto da presidência brasileira do G20, essa ideia ganhou ainda mais destaque e norteou ações relacionadas ao combate à desinformação, ao discurso de ódio, à defesa da regulamentação das plataformas digitais e à construção de um espaço digital democrático ou saudável.
No Brasil, o uso do termo parece representar uma tentativa de deslocar o debate sobre o atual ecossistema comunicacional de uma perspectiva negativa de combate a fenômenos negativos – como a desinformação, o discurso de ódio ou as teorias da conspiração – para uma estratégia positiva e objetiva. Além disso, o governo brasileiro tem argumentado que o termo é uma oportunidade para superar conceitos politicamente sensíveis ou insuficientes para lidar com o problema da disseminação de falsidades nas mídias sociais e digitais.
Deve-se dizer também que a noção de integridade da informação transmite duas ideias importantes: em primeiro lugar, que é um debate central para as democracias contemporâneas; e segundo, que a normatividade da integridade da informação tem um viés coletivo, segundo o qual o conceito precisa ser abordado.
Tudo isto é certamente muito positivo, mas o fato é que não há – ou há muito pouca – literatura acadêmica não americana sobre a ideia de integridade da informação, o que levanta preocupações sobre preconceitos culturais e dificulta a construção teórica e política do termo. Afinal, o que significa o termo “integridade da informação”? O que é pressuposto nesta ideia e como ela se traduz em outras línguas? Quais são os parâmetros para avaliar se ele se adapta a diferentes contextos? E, acima de tudo, serve os interesses da maioria da população global? A que realmente precisamos estar atentos quando discutimos o cenário atual das comunicações sob uma perspectiva que interessa ao Sul Global?
Reconstituindo a história do termo “integridade da informação”
A expressão “integridade da informação” ganhou recentemente notoriedade global, especialmente desde o Policy Brief 8, publicado pelas Nações Unidas em junho de 2023.4 Neste documento, “integridade da informação” refere-se à “acuidade, consistência e fiabilidade da informação, que é ameaçada pela desinformação e pelo discurso de ódio" (p.5). Também neste documento é apresentada a ideia de “integridade da informação” em oposição à “poluição da informação”.
O Policy Brief 8, que indica a construção de um código de conduta para integridade da informação em plataformas digitais, propõe um “compromisso com a integridade da informação”. De acordo com a ONU, isto implica que "todas as partes interessadas devem abster-se de utilizar, apoiar ou amplificar a desinformação e o discurso de ódio para qualquer fim, incluindo para alcançar objetivos políticos, militares ou outros objetivos estratégicos, incitar à violência, minar processos democráticos ou atingir populações civis, grupos, comunidades ou indivíduos vulneráveis" (p.21).
Pouco mais de um ano antes, em fevereiro de 2022, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) publicou o documento Integridade da Informação: Forjando um Caminho para a Verdade, Resiliência e Confiança.5 O objetivo do texto é justamente tentar dar uma base para o uso do termo, e nele há, portanto, um esforço maior para conceituá-lo.
Para o PNUD, “o conceito de integridade da informação é emprestado dos sistemas corporativos, onde se refere à segurança da informação e à proteção de dados dentro das empresas. Aplicada de forma mais ampla, a integridade da informação é determinada pela precisão, consistência e confiabilidade do conteúdo da informação, processos e sistemas para manter um ecossistema de informação saudável'. Requer acesso dos cidadãos a informações confiáveis, equilibradas e completas sobre assuntos atuais, ações governamentais, atores políticos e outros elementos relevantes para suas percepções políticas e tomada de decisões" (p.4). . As referências utilizadas pelo PNUD para definir o termo são de organizações do Norte Global, incluindo citações a um documento de uma empresa privada, Yonder , que não está mais disponível na Internet;6 e outro do Club de Madrid, uma organização global com sede na Espanha.7
É importante destacar que, a partir de 2021, há uma literatura crescente sobre integridade da informação, principalmente – e eu diria quase exclusivamente – de instituições e pesquisadores dos EUA e da Europa. Isto não é necessariamente um problema em si , mas exige que reconheçamos a história do termo – e o que está embutido nele. Isto permitir-nos-á discutir o seu significado para diferentes realidades, exigências e prioridades em contextos de Maioria Global.
Problemas com o termo tal como está
1. É preciso enfatizar o foco no espaço e no fluxo, não na unidade
A ideia de “integridade da informação”, especialmente em português, pode dar a impressão de que o foco está na unidade de informação, que precisa estar intacta. Ou seja, haveria um remetente, um produtor da informação, que publicaria uma unidade de informação que deveria ser protegida, mantida na íntegra até ser recebida. Essa ideia não corresponde ao cenário comunicacional que temos hoje.
Em primeiro lugar, ser capaz de avaliar a integridade da informação pressupõe a capacidade de definir quem produz informação com integridade e como o faz. Vejamos um exemplo simples: um governo lança uma campanha de vacinação para combater a COVID-19. Este processo de vacinação é apoiado por organizações internacionais, pesquisas revisadas por pares e uma série de mecanismos de validação. Há, no entanto, campanhas de desinformação que deturpam o uso da vacina e acabam prejudicando a cobertura vacinal. Seriam necessários mecanismos governamentais de proteção da informação para mantê-la intacta e garantir que chega ao destinatário de uma forma consistente e fiável. Neste caso, a ideia de integridade da informação é justificada pelo interesse público, especialmente no que diz respeito à legitimidade dos mecanismos governamentais para lidar com questões de saúde pública – uma ação que representa uma pequena parte do combate à desinformação.
No entanto, vamos considerar outro exemplo. Um governo decide proibir uma manifestação pública num determinado contexto, com base na interpretação de que criaria riscos para a estabilidade democrática. Já um movimento social defende o direito de manifestação e entende que, na realidade, trata-se de uma tentativa do governo de limitar as críticas ao sistema. A situação é fictícia, mas temos visto experiências como esta em várias partes do mundo, como na França, com as recentes tentativas de protesto em apoio aos palestinos. Neste caso, em que sentido a integridade da informação é preservada? É impossível responder a esta questão simplesmente porque o problema não está na informação em si ou na sua integridade, mas na compreensão de todo o sistema social que envolve este processo e que precisa de ser compreendido e interpretado para além da unidade de informação. Em outras palavras, a integridade da informação não deve ser considerada fora do contexto político e social em que toma forma.
Além disso, a ideia de integridade da informação poderia implicar que o problema reside principalmente em fornecer aos cidadãos informações consideradas verdadeiras, completas e confiáveis. Ou seja, ao proteger a integridade das informações, os cidadãos poderiam exercer plenamente a sua cidadania. No entanto, precisamos considerar que a recepção da informação pode ser problemática – como muitas vezes é – e este é também um problema de comunicação crucial.
Voltemos ao exemplo das vacinas: vamos supor que a informação completa de um governo chegue às pessoas. Mesmo assim, muitas vezes decidem não se vacinar. Não porque a informação completa não tenha chegado até elas, mas porque não faz sentido dentro da visão de mundo que adotaram. Essa formação de cosmovisão é resultado de diversos fatores e fluxos de comunicação, que podem incluir teorias conspiratórias, operações de desinformação e posicionamentos políticos extremos. São processos de comunicação, mas não é apenas a integridade das informações que poderá contê-los.
Um terceiro ponto que precisa ser discutido decorre do fato de que é preciso considerar que grande parte dos problemas do atual cenário comunicacional reside nos fluxos. Os caminhos digitais que a informação percorre para chegar aos cidadãos (especialmente aqueles através de plataformas digitais) têm intermediários que não existiam no modelo tradicional de comunicação entre remetente e destinatário. Portanto, há uma série de problemas que não residem na informação em si, mas no ambiente por onde ela circula, o que impacta diretamente nos seus efeitos sociais. Para traçar um paralelo, quando falamos de integridade eleitoral, estamos falando de “integridade da eleição” e não de “integridade da votação”. Pensamos no sistema, no funcionamento social de uma soma de mecanismos, e não na unidade da decisão do eleitor.
Este foco na unidade e no papel de um transmissor forte e centralizado não é à toa. Ela vem do contexto por trás do uso do termo, que é um contexto de luta contra interferências externas e de proteção de um sistema hegemônico de disseminação de informações.
2. Falta de consenso na tradução para o português
O termo “integridade da informação” foi cunhado em inglês e não existe uma forma única de traduzi-lo para o português. A versão portuguesa do Policy Brief 8 e os acordos internacionais assinados pelo governo brasileiro falam em “integridade da informação”, mas também há menções a “integridade informacional”, por exemplo, o que não é exatamente a mesma coisa. Uma ideia menos difundida é a de "integridade do ambiente/espaço/ecossistema comunicacional". O problema básico é que, mais uma vez, estamos importando um conceito externo sem muita discussão. Isto dificulta a escolha de uma tradução – e, portanto, de um significado social – uma vez que não há acumulação do que ela realmente significa.
3. Importações sucessivas de conceitos do Norte Global e uma guerra que não resolve os nossos problemas
Grande parte da discussão sobre o novo cenário comunicacional tem sido baseada em termos estrangeiros que simplesmente não possuem tradução precisa para o português. Foi o caso das "fake news", que, como vários autores salientaram, não são a mesma coisa que “notícias falsas”.8 Foi também o caso da diferença entre “misinformation” e “disinformation”, que é impossível de traduzir com precisão em português, fazendo com que muitos coloquem ambos os fenómenos no mesmo balde de “desinformação”.
Agora estamos mais uma vez adotando um termo – e uma imagem – estrangeiros simplesmente por tentar encontrar uma tradução linguística, sem pensar no seu real significado. As referências ao termo utilizado até agora mostram que está claramente relacionado com tentativas de proteger o ambiente de comunicações dos EUA contra ameaças externas, especialmente de países não ocidentais. É uma ideia que implica um posicionamento geopolítico que não dá conta dos nossos problemas. É verdade que as ameaças externas ao ambiente de comunicações brasileiro – e ao Sul Global – são reais e precisam ser estudadas e combatidas, mas isso não me parece ser o cerne do problema do ambiente de comunicações que temos hoje.
Lembro-me de uma história contada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre sua primeira viagem à reunião do G8 em 2003. Ele conta que foi abordado pelo então presidente dos EUA, George W. Bush, que lhe perguntou como o Brasil se envolveria na Guerra do Iraque. Lula então respondeu: “Presidente Bush, o Iraque não é problema do Brasil. Tenho outra guerra para travar no meu país, que é combater a miséria e a fome dos 50 milhões de brasileiros que vivem na linha da pobreza”.9 Em 2003, Lula sublinhou que usaria a sua proeminência internacional para se concentrar na luta contra a fome – e não na guerra no Iraque, como gostariam os atores hegemônicos. Em 2024, momento de novo destaque internacional para o Brasil em que os debates sobre informação estão no centro da agenda, qual a proposta do Brasil? Considerando a realidade do Brasil, da América Latina, dos BRICS e do Sul Global, o que é realmente relevante para nós no debate sobre um ambiente de comunicação digital?
A oportunidade de construir uma agenda informacional a partir do Sul
Hoje, o Brasil ocupa posição central na discussão da transformação digital. Assim como em 2014, quando o Brasil aprovou o Marco Civil da Internet, o país tem uma nova oportunidade de trazer as preocupações do Sul Global para o primeiro plano das discussões sobre como construir padrões digitais para nossas sociedades contemporâneas. Isto se deve em grande parte aos árduos esforços de diferentes setores do governo, da sociedade civil e da academia que, de forma muito perspicaz e articulada, viram esta questão como uma prioridade. Essa conquista não é trivial e precisa ser comemorada.
Para aproveitar esta oportunidade, precisamos urgentemente de desenvolver a nossa própria interpretação do problema. Não se trata de paroquialismo, de construir algo brasileiro para o Brasil; pelo contrário, trata-se de aproveitar a possibilidade de desempenhar um papel de liderança nas estruturas internacionais para questionar a ordem estabelecida e mostrar que algo produzido a partir do Sul pode lidar com os problemas globais.
Entendo que o termo “integridade da informação” tenta criar um arcabouço para construir um imaginário do espaço digital que queremos, o que considero mais que necessário. Bem, o que queremos que signifique um espaço de comunicação saudável, justo e democrático? Quais devem ser os parâmetros para acessá-lo?
Quando falamos de comunicação e informação no Brasil e nos países do Sul Global, estamos frequentemente falando de realidades que são amplamente dominadas por organizações noticiosas comerciais, hegemônicas e extremamente concentradas; estamos falando de muitos países onde a comunicação através de aplicações de mensagens é absolutamente central; estamos lidando com democracias jovens e muitas vezes instáveis; estamos nos referindo a sociedades com níveis abismais de desigualdade social, o que impacta a forma como as pessoas consomem informação; estamos falando de países onde não só circula o discurso de ódio, mas serve para reforçar a opressão histórica, como o racismo; estamos lidando com países fortemente impactados por problemas socioambientais; e, com toda a ênfase necessária, estamos falando de países que estão física e imaginativamente distantes das sedes das grandes empresas tecnológicas, que tratam estes países e os seus cidadãos como menos importantes.
Precisamos contestar a ideia de “integridade da informação” e trazer estes elementos, que são centrais para a maioria da população mundial, para o centro do debate. Nosso desafio é combinar a força da sociedade civil, dos governos e dos seus intelectuais para trazer ao mundo uma visão inovadora, criativa e proativa de que espaço de comunicação democrático queremos.
(*) Nina Santos é diretora do Aláfia Lab, coordenadora geral do *desinformante e investigadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para a Democracia Digital (INCT.DD) e do Centre d'Analyse et de Recherche Interdisciplinaires sur les Médias (Universidade Panthéon-Assas). É membro do Painel Internacional sobre Ambiente de Informação, do comitê diretor da Global Coalition for Tech Justice e do Comitê de Integridade e Transparência Digital em Plataformas de Internet do Tribunal Superior Eleitoral brasileiro. Também é professora da pós-graduação em Estratégias de Comunicação Digital da FGV e do mestrado em comunicação, sistemas de informação e mídias da Université Sorbonne-Nouvelle e autora do livro "Lógicas das mídias sociais: visibilidade e mediação nos protestos brasileiros de 2013" (Palgrave Macmillan, 2022). Nina integrou ainda o grupo de trabalho para a regulamentação da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia (2023), da Procuradoria-Geral da República, e do grupo de trabalho para estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo (2023), da o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.