Serviços over-the-top: conceitos em disputa podem ter consequências para sua regulação*

Oona Castro é coordenadora de conteúdo do Instituto Nupef e editora da revista poliTICs

Data da publicação: 

Junho de 2018

* Este texto é um preâmbulo para os artigos Regulação dos serviços over-the-top, e Regulação ou Enforcement para as Empresas na Internet?

Serviços Over-the-Top, conhecidos como OTTs, são aqueles que operam na camada de aplicações da Internet1, ou seja, onde os usuários da Internet produzem, acessam e trocam informações. Usualmente, são essas as plataformas que conhecemos, embora para navegarmos seja necessária a utilização das camadas de infraestrutura e de protocolos sobre as quais a de aplicações funciona.

OTTs são, assim, os serviços baseados em aplicativos através dos quais publicamos, acessamos e trocamos conteúdo. Entre os mais conhecidos estão os de vídeo sob demanda (VoD), como YouTube, Hulu, Netflix, Apple TV, o serviço de streaming de vídeos da Amazon, os de transmissão de mensagem e voz sobre IP, como WhatsApp, Telegram, Facetime, Skype, Viber, Messenger, iMessage, ou mesmo Xbox 360 e World of Warcraft no mundo dos jogos. Até mesmo Facebook, Twitter, Google e todos os sites podem ser compreendidos como OTTs quando os compreendemos tecnicamente como tudo o que está “over the top”, ou seja, na camada de aplicações da Internet.

No entanto, recentemente a União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência da ONU dedicada a temas relacionados às Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), adotou a recomendação do grupo de trabalho SG3 (que lida com aspectos econômicos, financeiros e regulatórios), que definiu OTTs como “aplicações acessadas ou entregues na rede pública que podem substituir de forma direta ou funcional os serviços de telecomunicações tradicionais”. Ou seja, na prática, com essa definição, a UIT circunscreve a definição de OTT às aplicações que competem com os serviços de telecomunicações, especialmente os serviços de vídeo, voz e mensagens sobre IP. Em outras palavras, considera que esses serviços específicos deveriam de algum modo ser da alçada regulatória da UIT.

O texto do Observatorio Latinoamericano de Regulación, Medios y Convergencia (Observacom), iniciativa da Fundación Libertis, um think tank regional sem fins lucrativos que reúne especialistas do campo da comunicação, antecede a adoção da definição pela UIT e não se restringe a ela. É no contexto mais abrangente – compreendendo como OTTs as diversas plataformas e aplicações que operam na camada de conteúdo – que se inserem as recomendações de regulação do Observacom que ora publicamos.

Já o o texto da Flávia Lefèvre é posterior e traz questionamentos importantes em relação à decisão da UIT. A recomendação adotada pela organização foi levada pelo Brasil, por meio da participação da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) no grupo de trabalho sobre impacto econômico.

Em reunião do Conselho de Comunicação Social do Senado em 4 de junho de 2018, Jefferson Fued Nacif, da Anatel, declarou que, “para a UIT, OTTs são todas aplicações que competem com os serviços tradicionais de telecomunicações”. Disse, ainda, que “a UIT não trabalhará sobre o que é Uber, que não é uma aplicação de discussão para a UIT, mas o Facebook Messenger, o WhatsApp e o Skype são aplicações para serem discutidas na UIT. E por quê? Porque fazem frente aos serviços tradicionais de telecomunicações”.

A editoria da revista poliTICs ouviu especialistas no setor para compreender se essa definição da UIT vai impactar na definição conceitual e política do que é OTT em todo o mundo ou se ela diz somente respeito àquelas OTTs que a UIT vai se permitir discutir. Ou seja, com essa definição, ela pretende apenas delimitar e justificar o que pretende discutir (os serviços e aplicações que competem com aqueles prestados por operadoras de telefonia), ou pretende reconceituar o que é OTT, de acordo com seus interesses (de trazer para o seu guarda-chuva esse debate), impactando não apenas a agenda política dos estados membros como também o campo epistemológico. Os países que tiverem uma compreensão mais abrangente do conceito de OTTs precisarão adotar a definição da UIT e tratar de aplicar outro termo para se referir a todas as aplicações não inclusas nesse recorte?

Para essas especialistas – a jornalista Cristina de Luca, que acompanha o tema há décadas, e Flávia Lefèvre, advogada da PROTESTE e representante da sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil – a questão está em aberto. Ainda não se pode afirmar precisamente quais serão os resultados dessa iniciativa. Até o fim de 2018 haverá novas discussões e decisões nos fóruns da UIT e novas articulações dos estados membros. O conceito de OTT pode permanecer abrangente, e a UIT apenas restringir sobre quais OTTs ela pretende incidir e regular. Ou pode ser que os países membros adotem essa definição e precisemos adotar outros termos para referir-nos a todas as outras aplicações não contempladas pela restrita conceitualização do órgão das Nações Unidas.

O que se pode dizer, com convicção, é que a UIT deu um passo que há muito pretendia dar, que é o de trazer para dentro do seu fórum a possibilidade de regular alguns serviços e aplicações da Internet, hoje orientada por diretrizes de diversas instâncias multissetoriais, debatidas em fóruns nacionais, regionais e no Fórum de Governança da Internet (IGF), com forte participação da academia, da sociedade civil, de empresas e de governos. A UIT é uma das organizações mais antigas da ONU, mas tradicionalmente dita regras apenas para o setor de telecomunicações – responsável pela infraestrutura das redes – e é bastante permeável às preocupações e pressões do mercado. Trazer para o seu colo aspectos chave da Internet como aplicações da camada de conteúdo pode ter significativas consequências para a regulação da Internet no mundo.

A pressão é para definir condições econômicas semelhantes para as OTTs e para as empresas de telecomunicações. No Brasil, a Internet é considerada um serviço de valor adicionado (SVA) e, portanto, as empresas de OTTs não estão sujeitas às obrigações das empresas de telefonia – cobrança de impostos como o ICMS, obrigações de investimentos em infraestrutura e regulação da Anatel.

Com essa definição em curso sendo adotada pelo país, a Anatel poderá incidir sobre a regulação da camada de conteúdo da Internet, abrindo precedente para regulação de outros aspectos relacionados. O Brasil divulgou com orgulho a adoção da recomendação, como resultado de um processo que já vinha acontecendo há dois anos, sem consenso, visto que nem todos os países membros tinham a mesma visão sobre OTT. De acordo com Jefferson Fued Nacif, “alguns países, principalmente África e Oriente Médio (SIC), têm uma visão de OTTs que dificilmente se compatibiliza com a visão dos Estados Unidos e da Europa sobre o que devem ser as discussões sobre OTT na UIT. O subgrupo de trabalho número três, do bureau de padronização, é presidido pelo brasileiro superintendente de competição da Anatel, Abraão Balbino, que conseguiu chegar a um documento de consenso entre essas distintas visões. Levou-se dois anos para se chegar a essa definição”. Mas não revelou a extensão do resultado desse trabalho: “se haverá regulação, propostas de resolução, acordos, tratados, ninguém sabe dizer por enquanto. Pelo menos se abre uma janela de oportunidade para discutir o tema. É melhor ter um foro internacional que discuta isso de forma tranquila, consciente, racional, do que cada país sair regulamentando o seu mercado de forma aleatória. Isso é muito prejudicial para o mercado”. Na opinião do representante da Anatel, “nós queremos um mercado que promova a inovação, a competição e bons serviços, e esses serviços OTTs estão aí para isso, no entanto não é fácil tratar desses temas, que são complexos, porque existe uma questão principal que é a extraterritorialidade – que são serviços que não estão baseados no Brasil mas são prestados no Brasil e não há outra forma de tratar esses temas senão no plano internacional. É impossível o Brasil ou qualquer outro país regulamentar isso sozinho”.

Já no fim da apresentação do representante da Anatel, na mesma reunião do Conselho de Comunicação Social ocorrida em 4 de junho, pergunta e resposta reveladoras: o representante das empresas de televisão e vice-presidente de programação da Associação Brasileira de TV por Assinatura, José Francisco de Araújo Lima, questionou Nacif se a Anatel estava acompanhando o andamento dos projetos de lei que tratam de vídeo sob demanda no Brasil, com os quais demonstrou estar visivelmente incomodado. Embora o representante da Anatel tenha confirmado que a agência acompanha todos os projetos de lei relacionados às telecomunicações, ele não sabia dizer uma só palavra sobre os projetos de lei ou sobre como a Anatel vê a questão.

Se restava alguma dúvida de que o foco de atenção da Anatel não está voltado para OTTs como Netflix e outras empresas de VoD, mas para os serviços de voz e mensagem sobre IP, o episódio foi didático ao esclarecer que, se existe uma inquietação central da agência sobre o tema, esta preocupação está relacionada aos serviços que competem com as operadoras de telefonia fixa e móvel, e não com as operadoras de TV por assinatura.

1 Além da chamada "camada física" (cabos e transceptores de rádio terrestres ou via satélite que constituem a infraestrutura de telecomunicações), a Internet é funcionalmente organizada em quatro camadas ou níveis: a camada de rede (também chamada de "enlace de dados") que transporta os datagramas; a camada de internet, que fornece endereçamento e roteamento dos datagramas; a camada de transporte, que garante a consistência do tráfego de dados ponta-a-ponta; e a camada de aplicações (os serviços de conteúo de todo tipo: voz, vídeo, email, páginas Web etc).A camada de aplicações é tudo aquilo que vemos na Internet – e a que nos referimos geralmente quando falamos “vi na Internet” - são os sites, plataformas, aplicações, tudo aquilo que visitamos e publicamos. O conjunto dessas quatro camadas caracteriza o Serviço de Valor Adicionado (SVA) definido na Norma 4, de 1995, do então Ministério das Comunicações, separando-o da regulação de telecomunicações.

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