Padrões abertos, interoperabilidade e interesse público

Por Cezar Taurion Chede, Gerente de Novas Tecnologias Aplicadas da IBM Brasil, economista, mestre em Ciência da Computação. Autor do livro “Software Livre: Potencialidades e Modelos de Negócio”

Data da publicação: 

Novembro de 2008

Os padrões abertos devem ser entendidos como absolutamente essenciais em um mundo cada vez mais globalizado e interligado. Os países, organizações, empresas e cidadãos interoperam continuamente uns com os outros. Para que a interoperabilidade aconteça, é necessário que todos estejam de acordo sobre a forma como esta interoperabilidade vai ocorrer. Ou seja, quanto mais padronizados forem os mecanismos de interoperabilidade, menos esforço será demandado para criarmos interfaces de interoperação – e a comunicação ocorrerá de forma mais rápida e ágil. Simples assim...Aliás, sem padrões abertos simplesmente não teríamos a Internet! A Internet está se tornando o meio padrão de comunicação do planeta. E isto só é possível porque existe um padrão aberto e reconhecido por todos para a troca de dados na Internet - sejam usuários dos EUA, Brasil, China ou Uganda -, que é o protocolo TCP/IP.

Neste ponto, o conceito de interoperabilidade deve ser bem definido. Existem claras diferenças entre interoperabilidade (capacidade de diferentes softwares trocarem informações via um conjunto padrão de interfaces e formatos abertos) e intraoperabilidade (quando um fornecedor apenas cria condições para tornar mais fácil a conexão com seus próprios produtos). Em uma situação de intraoperabilidade, o fornecedor de um determinado produto cria protocolos e formatos que favorecem ao seu negócio – mantendo seus produtos sob seu domínio, controlando sua evolução e decidindo quais funcionalidades serão mais ou menos abertas. Na interoperabilidade, os padrões são abertos e não controlados por nenhuma empresa, não privilegiando um produto específico em detrimento de outro.

Padrões abertos, ou seja, aqueles que estão publicamente disponíveis e não são controlados por nenhum governo ou corporação, tornam possível que quaisquer empresas, cidadãos e países se conectem e troquem informações com autonomia. O uso de tecnologias de informação e comunicação de padrões abertos traz benefícios a todos, potencializando a interoperabilidade (leia-se colaboração) entre todos os envolvidos no processo de comunicação. Por outro lado, padrões proprietários criam barreiras econômicas quando exigem o pagamento de royalties (e muitas vezes um padrão proprietário embute diversas tecnologias patenteadas, com royalties acumulados), encarecem os produtos e dificultam a competitividade e a interação entre pessoas, empresas, governos.

A própria Declaração de Princípios da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação1, no parágrafo 44 diz claramente: “A padronização é um dos pilares essenciais da Sociedade da Informação. Deve haver especial ênfase no desenvolvimento e adoção de padrões internacionais. O desenvolvimento e uso de padrões abertos, interoperáveis, não-discriminatórios e orientados a demandas, que levem em conta as necessidades dos usuários e dos consumidores, é um elemento básico para o desenvolvimento e ampla difusão das TICs e para uma maior viabilidade econômica no acesso a estas tecnologias, particularmente nos países em desenvolvimento. Padrões internacionais se destinam a criar um ambiente onde os consumidores possam acessar serviços em qualquer parte do mundo, a despeito de quais sejam as tecnologias subjacentes”.

Para definir e manter padrões abertos existem diversas entidades - a ISO2 é uma delas. Recentemente ocorreu um intenso debate sobre a aprovação ou não pela ISO de uma proposta de padrões de formato de documentos, denominado OpenXML. Este debate colocou em cheque o atual modelo de aprovação de padrões – mas antes de nos aprofundarmos neste ponto, cabe primeiro analisarmos a importância para a sociedade dos padrões de formato de documentos.

Para explicar melhor esta importância, é preciso voltar um pouco no tempo. No início da era da computação pessoal, o enfoque da informática era a produtividade individual, com intercâmbios de arquivos limitados a troca de disquetes. Neste contexto, não havia muita preocupação com a compatibilidade entre diversos formatos de arquivos, pois não havia maiores problemas de interoperabilidade. Com o mercado de suites de escritório sendo dominado por um único fornecedor, a situação não gerava maiores problemas, pois havia uma razoável compatibilidade entre versões. Razoável, porque formatos de versões mais novas nem sempre eram lidas pelas versões anteriores. Mas, renovava-se a licença de uso, instalavam-se as versões mais novas e a vida corria normalmente.

Entretanto, à medida em que a Internet e o correio eletrônico se disseminavam, as questões de interoperabilidade começavam a se tornar mais e mais importantes. Ao mesmo tempo começávamos a ver uma crescente digitalização de documentos.

Documentos fazem parte de quase todas as nossas atividades. A maior parte das informações e memória de governos, organizações – e hoje até mesmo de indivíduos - está contida em documentos. E a cada dia mais, criamos e armazenamos documentos em formato digital - na maioria das vezes, exclusivamente em formato digital. Estima-se que hoje, pelo menos 80% das informações das empresas não estejam em bases de dados estruturadas, mas espalhada por milhares e milhares de documentos e planilhas. E à medida em que os documentos passam a ser digitalizados, cresce de forma exponencial a sua geração – há estudos que prevêem que nos próximos cinco anos geraremos um número de documentos digitais equivalente à quantidade total de documentos gerados nos últimos 25 anos.

Apresentam-se então dois desafios: o primeiro é a deterioração gradual do meio físico, o que nos obriga a, de tempos em tempos, substituir o arquivo de mídia onde armazenamos dados, para garantir sua perenidade. O segundo desafio é mais complicado: no contexto atual, os arquivos de documentos são armazenados em formato binário, proprietário. Isto significa que se quisermos acessá-los daqui a vinte ou trinta anos, os softwares que os criaram deverão continuar existindo. Ou seja, além da perenidade do meio, temos que garantir a perenidade do software.

O armazenamento e posterior recuperação de documentos eletrônicos é, sem sombra de dúvida, uma questão de absoluta importância. Os documentos gerados hoje devem poder ser recuperados no futuro, independentemente do software que os criou. Garantir a possibilidade de recuperar estes documentos significa que se deve preservar suas formatações originais - como quebra de páginas, alinhamentos de parágrafos, numeração, etc. Para isso é essencial que os formatos que descrevem como estes documentos estão armazenados eletrônicamente sejam resistentes a mudanças nas tecnologias de software e ambientes operacionais.

Diante deste quadro, com a mudança de paradigmas relativos ao padrão desejável dos arquivos de documentos - de fechado e “preso” a um determinado aplicativo, para aberto e independente do software que o gerou -, foi criado pela entidade OASIS3 , um padrão denominado ODF4 (Open Document Format), que em maio de 2006 foi reconhecido pela ISO como um padrão mundial.

A Microsoft, em contrapartida, também propôs um novo formato, chamado OpenXML, enviando-o a uma entidade chamada Ecma5, que solicitou à ISO sua aprovação como padrão mundial. Quando o OpenXML foi apresentado à comunidade técnica, representada pelos órgãos de padrões dos países membros, foram identificados diversos elementos contraditórios. Mesmo assim, a ISO aceitou levar à frente a proposta de aprovação deste formato.

O processo de votação na ISO, que aconteceu no âmbito da ISO/IEC JTC16, mostrou inúmeras falhas, especialmente quando adotou-se um mecanismo chamado de “fast track”, (mecanismo de tramitação rápida). Este processo, que levou à aprovação do OpenXML (apesar de vários países, inclusive o Brasil, o questionarem formalmente), gerou dúvidas muito grandes quanto à sua validade. Analisar e debater uma proposta de padrões de importância capital para a sociedade não pode ser algo feito de forma apressada e atabalhoada.

Além disso, a adoção de um segundo padrão para fazer a mesma coisa que o padrão já aprovado anteriormente (neste caso, o ODF) é altamente questionável. Vamos imaginar um cenário hipotético: alguns países adotam o ODF como seu padrão de formato de documentos e não aprovam o OpenXML, por não concordarem com seu processo de aprovação. Outros eventualmente adotam o OpenXML e em princípio não usariam o ODF. Cria-se então um problema de conversão de formatos, sempre que houver troca de documentos entre países que adotaram padrões diferentes. A interoperabilidade plena estaria prejudicada.

Ora, se avaliarmos o OpenXML vemos que pelo menos 90% a 95% de sua funcionalidade está incorporada no padrão ODF e os 5 a 10 % ausentes relacionam-se com características específicas de um único software, o Office da Microsoft. Imagino que se todo o esforço, tempo e dinheiro investido por dezenas de países para analisar o OpenXML fossem canalizados para refinar o ODF, inserindo novas funcionalidades e harmonizando-o com o OpenXML, todo o processo seria muito mais útil e produtivo para a sociedade.

Recentemente a IBM aprovou uma nova politica corporativa de padrões de Tecnologias de Informação, depois de uma ampla discussão com especialistas em padrões, do mundo inteiro. Estes especialistas recomendaram que os órgãos dedicados a analisar e estabelecer padrões revejam e modernizem seus processos de aprovação, principalmente visando a uma maior transparência em todas as etapas do processo. Este seria um passo concreto na direção da atualização destes processos, que inclusive deveriam considerar a nova geopolítica mundial, onde países emergentes como Brasil, Índia e China têm um papel mais importante na economia mundial - importância que ainda não está refletida nos processos atuais de aprovação de padrões.

A partir destes estudos podemos alinhavar algumas recomendações para modernizar e dar maior transparência aos processos de discussão e aprovação de padrões abertos de TICs:

a. Os órgãos de padronização devem garantir elevada transparência em seus processos. Os diferentes grupos envolvidos e seus interesses devem estar claramente explicitados. Os usuários finais devem ter voz ativa nos processos de discussão e aprovação destes padrões. Os debates, as listas de discussão e as conclusões devem ser livremente acessíveis a todos os interessados e não restritos a grupos fechados.

b. Os governos devem garantir que seus NB (National Bodies ou órgãos de padronização) implementem regras que garantam esta transparência e impeçam influência indevida por parte de fornecedores. No recente caso do OpenXML muitos países foram representados por NBs sem estrutura adequada para avaliar adequadamente um padrão mundial. Os NBs deveriam ter que cumprir exigências técnicas e institucionais universais e uniformes (e passíveis de auditoria) para serem considerados aptos a votar. Isto eliminaria problemas tais como a filiação à ISO de novos NBs como membros ativos, apenas dois meses antes de uma votação – o que possibilita que estes novos membros opinem sem antes terem feito uma análise mais detalhada da especificação que está sendo votada.

c. Os governos, como indutores de políticas e padrões, devem adotar em seus editais de compras na área de Tecnologia da Informação a obrigatoriedade de uso, quando disponíveis, de padrões abertos.

d. Os padrões devem ter alta qualidade e para isso os seus processos de criação e aprovação devem ser abertos, imparciais, auditáveis e altamente eficientes e profissionais. Ou seja, não podemos repetir os problemas do recente processo de aprovação do OpenXML. Neste processo, mais de 6000 páginas de documentação tiveram que ser analisadas em cerca de cinco meses. Posteriormente, por conta de um mecanismo chamado de BRM (Ballot Resolution Meeting ou Encontro para Resolução de Votação), houve um debate que envolveu mais de 100 delegados de 32 países, dada a imensa quantidade de disposições a serem analisadas (mais de 1100), e os poucos dias disponíveis (cinco). Consequentemente, não houve tempo hábil para se validar todos os comentários detalhadamente - seria uma tarefa realmente impossível. Assim, apenas cerca de 20 a 30 disposições foram exaustivamente debatidas e votadas. Ou seja, mais de 80% dos comentários não foram sequer avaliados. Como a proposta do BRM era de avaliar a especificação, debatendo os comentários e as sugestões de correção e melhorias apresentadas pela Ecma, é lógico afirmar que o resultado final não foi adequado. Nenhuma reunião onde não são avaliados 80% dos itens propostos para discussão poderia ser chamada de “um sucesso”...Imaginem um hipotético projeto de software onde 80% dos itens que deveriam ser analisados pelos usuários não o são....Que usuários aprovariam tal projeto? Portanto, o processo “acelerado” de “fast-track” tem se mostrado totalmente inadequado para avaliar uma proposta com este nível de complexidade.

Ficou claro para todos que o processo adotado pelo comitê JTC1 da ISO para aprovar o OpenXML não atendeu às demandas da sociedade. O resultado foi um questionamento intenso que está chamando a atenção para a necessidade urgente de reforma dos processos atuais da ISO. Ficou claro também que uma certificação ISO não garante que um padrão seja realmente aberto.

O que queremos - ou melhor, o que sociedade demanda?

Processos mais eficientes, abertos e imparciais de padrões abertos de TICs. Acredito que, à luz de tantos questionamentos, teremos de agora em diante um novo contexto onde os órgãos internacionais de padrões e as entidades de padrões dos países elevarão sensivelmente seus níveis de qualidade e transparência. Aliás, sem uma reengenharia dos processos de aprovação de padrões, a ISO/JTC1 correrá o risco de passar por outras situações como esta, em que sua credibilidade está sendo questionada.

Quanto ao ODF, é indiscutível que todo este debate serviu para mostrar a importância de um formato aberto de documentos. Nunca o tema foi tão debatido e gerou tantos eventos, artigos e publicações em blogs e sítios Web pelo mundo inteiro.

Lá pelos idos de 2005, quando o ODF começou a aparecer de forma discreta na mídia especializada graças à decisão do governo do estado americano de Massachussets de adotá-lo, quem poderia imaginar que toda esta celeuma seria levantada?

Assim, o fato de o OpenXML ter sido aprovado pela ISO não vai afetar a crescente curva de adoção do ODF. Pelo contrário, os governos que ainda não incluíram os formatos abertos em suas políticas de documentos, talvez esperando a decisão da ISO,
o farão agora. Até mesmo para manter a coerência com seus votos.

Muitos NBs que não analisaram a fundo a especificação do OpenXML (e tenho certeza que muitos NBs que votaram a favor não tinham a mínima condição para estudar, avaliar e opinar com profundidade as mais de 6.000 páginas da especificação) terão que definir normas e procedimentos que orientarão a política de seus países para as próximas décadas. E terão que garantir que a especificação a ser adotada terá:

1. Qualidade. O fato de mais de 80% das especificações do OpenXML não terem sido analisadas significa manter um universo de “bugs” em potencial por muitos e muitos anos. Isto não aconteceu e nem está acontecendo com o ODF.

2. Disponibilidade de softwares. Uma vez que a especificação aprovada não é a que está sendo implementada no Office atual, devido às milhares de modificações efetuadas durante o processo e que ainda não foram oficializadas, devemos esperar algum tempo antes que surjam softwares que consigam implementar o futuro OpenXML. Enquanto isso, o ODF já está implementado por diversos softwares, de diversas empresas.

O fato é que os países e seus governos terão que adotar políticas que visem a garantir a recuperação futura de seus documentos eletrônicos. E terão que fazer isso rápido, uma vez que enquanto não agem, são gerados milhões de novos documentos em formato binário, aumentando o legado de forma exponencial.

Como vimos ao longo do processo, dificilmente produtos que não o Office conseguirão ser 100% compatíveis com o OpenXML. Assim, os governos dos países terão que arcar com a responsabilidade de, ao manterem o OpenXML, estarem perpetuando o atual monopólio da empresa que o criou.

Provavelmente veremos muitos países decidindo-se por políticas de uso de documentos que incentivem a concorrência e inserindo nos textos oficiais não apenas a exigência de um formato que tenha sido aprovado pela ISO, mas que também seja realmente aberto, e que tenha sido implementado em pelo menos dois produtos de softwares. Os países também exigirão que não haja discriminação quanto aos modelos de comercialização dos softwares que usam os formatos de documentos, de modo que permitam diversas alternativas - como modelos de código aberto. Sem isso, os cidadãos não terão seus “direitos civis na área de TICs” (liberdade de religião, liberdade de opinião e liberdade de usar qualquer aplicação...) reconhecidos, pois serão obrigados a adquirir um software específico para poderem dialogar com seus governos!

Ora, para mim fica claro que a aprovação do OpenXML pela ISO será mais um fator impulsionador para adoção do ODF pela sociedade, por conta de o ODF ser um padrão que já existe de fato (e não apenas no papel), por incentivar a livre concorrência, por garantir os direitos dos cidadãos e inibir a formação de monopólios. Além do mais, a própria sociedade civil que, em peso, debateu exaustivamente o OpenXML durante seu processo de aprovação, continuará mobilizada e atuando com força para que padrões abertos de documentos sejam e continuem realmente abertos.

Cezar Taurion escreve constantemente sobre tecnologia da informação em publicações especializadas e em seu blog: www.ibm.com/developerworks/blogs/page/ctaurion

Este artigo representa a opinião pessoal do autor e não necessariamente a da empresa onde trabalha.

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1. Ver em http://www.itu.int/wsis/docs/geneva/official/dop.html

2. International Organization for Standardization : http://www.iso.org/iso/home.htm

3. Organization for the Advancement of Structured Information Standards - http://www.oasis-open.org/who/

4. Para saber mais sobre o ODF, ver o sítio http://br.odfalliance.org/

5. Sobre a Ecma International: http://www.ecma-international.org/

6. Núcleo na ISO dedicado a desenvolver e manter padrões na área de Tecnologia da Informação.

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