O .amazon é bem mais que um mero nome de domínio

Diego R. Canabarro, Doutor em Ciência Política, mestre em Relações Internacionais e Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Assessor do CGI.br de maio de 2014 a maio de 2019.

Data da publicação: 

Junho de 2019

A batalha final entre a empresa Amazon e os países da região amazônica (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela) em torno do domínio de topo .amazon chegou ao fim em 15/05/2019 (e com um desfecho preocupante para a proteção do patrimônio histórico, sociocultural e biológico da Amazônia). De 2013 até aqui, os dois lados da disputa viveram vitórias e derrotas alternadas no âmbito da ICANN – a entidade que, ao mesmo tempo, é encarregada de coordenar centralmente os recursos de endereçamento da Internet e o funcionamento das diversas porções distribuídas que integram o sistema de nomes de domínio da rede (DNS), bem como servir de arena política para a articulação das diversas partes interessadas e a definição de políticas e regras que determinam o funcionamento harmônico do sistema.

O caso transformou-se, numa lógica de teoria dos jogos, em uma situação do tipo perde-perde para a ICANN: a não delegação do .amazon a colocaria em maus lençóis perante sua comunidade marcadamente centrada na economia política estadunidense (e principalmente perante o governo dos Estados Unidos); a delegação definitiva (que foi o que efetivamente aconteceu) coloca agora a organização em rota de colisão com os países amazônicos (algo que pode reanimar a discussão a respeito da legitimidade da ICANN como estrutura de coordenação central do endereçamento da Internet global).

Detalhes do caso

O pleito da Amazon iniciou-se em 2012, quando a comunidade que gira em torno da ICANN decidiu que faria uma ampliação na quantidade de “nomes de domínios genéricos” existentes na raiz do DNS.

O “programa de novos gTLDs”1 recebeu quase duas mil candidaturas de entidades interessadas em controlar de forma direta e independente sua própria zona no ponto mais alto da hierarquia do sistema nomes da Internet sem depender de domínios tradicionais como o .com ou um código de país como o .br.2 Com uma taxa de inscrição de quase US$200 mil, o resultado da rodada de 2012 do programa de novos domínios genéricos foi absurdamente assimétrico e desigual: a esmagadora maioria das candidaturas veio de entidades empresariais do norte desenvolvido.3

A Amazon foi a única candidata ao domínio .amazon (e suas variações em japonês e chinês). Essa candidatura seguiu, formal e regularmente, todas as etapas e os procedimentos previstos no edital do programa. Mas, assim que começaram esses procedimentos, os países amazônicos conseguiram arregimentar o consenso de todos os demais países integrantes do “Conselho Consultivo Governamental” (GAC)4 em torno da ideia segundo a qual o .amazon não deveria prosperar, por conta das diversas implicações e contradições entre os interesses comerciais da empresa e os imperativos de proteção e promoção da cultura e das tradições, da história, da biodiversidade, da pluralidade de línguas etc., relacionados à região amazônica.

O GAC – nos termos do estatuto da ICANN – é uma espécie de assembleia que congrega mais de 130 autoridades governamentais e várias organizações intergovernamentais, e é encarregado de emitir pareceres a respeito das implicações que o funcionamento do DNS pode ter para o campo das políticas públicas em geral. Nesse sentido, em 2013, o Comitê emitiu por consenso um parecer indicando de forma genérica ao Conselho Diretor da ICANN (a instância de cúpula da organização e encarregada de decidir, segundo as regras do programa, a procedência ou não de determinada candidatura) que o pleito da empresa não deveria prosperar. O Conselho Diretor corroborou o consenso governamental e, em 2014, decidiu pela improcedência do pedido do .amazon.

Em consequência, e seguindo as próprias regras da ICANN, a empresa constituiu um painel arbitral (formado por três árbitros estadunidenses) contra essa decisão, alegando (em uma grosseira síntese) que o Conselho Diretor – ao acatar integralmente e sem ressalvas o parecer dos governos – violou as regras criadas pela "comunidade" para nortear o programa de novos gTLDs. O painel arbitral (considerado “neutro” por determinados grupos de interesse na ICANN), em meados 2017 deu ganho de causa à empresa, apontando que o Conselho Diretor da ICANN não explicitou as “razões de política pública” que fundamentaram a aceitação irrestrita do parecer dos governos e, em última análise, a improcedência da candidatura ao .amazon.

Entre 2018 e maio de 2019, a questão seguiu indefinida e houve diversas tentativas de composição da celeuma. Sem nenhum sucesso, a ICANN tentou mediar um resultado mutuamente satisfatório para a questão. Entretanto, em março de 2019, a entidade retirou-se da mediação e deu prazo para que as partes encontrassem uma saída mutuamente satisfatória.

Em 2015, a empresa havia apresentado uma proposta de cogestão do nome, que foi integralmente rechaçada pelos governos amazônicos. Em 2018, os países tentaram resgatar a proposta de 2015 como alternativa ao plano de utilização do .amazon apresentado pela empresa após a vitória no painel arbitral de 2017. Essa proposta envolvia, basicamente, a concessão de um nome embaixo do .amazon para uso coletivo dos oito países, a definição de uma lista de nomes reservados e a concessão de uma contraprestação pecuniária total de US$ 5 milhões (em produtos e serviços comercializados pela empresa) em favor dos países amazônicos.

Em negociações mais recentes, a empresa concordou em consignar um nome a cada país da região e ampliar o alcance da lista de nomes protegidos. A empresa também divulgou um "compromisso de interesse público": uma carta de intenções onde explica de que forma utilizará o .amazon respeitando determinadas promessas feitas aos países da região. A observância dessa carta pode ser cobrada da empresa mediante uma modalidade de arbitragem especial que pode ser realizada no âmbito do arcabouço institucional da ICANN. Para alguns, essas concessões da empresa representam uma "generosa oferta" aos países da região. Apenas a título de argumentação, US$ 5 milhões é um valor ínfimo quando comparado ao somatório dos PIB dos países amazônicos (mais de US$ 3 trilhões).

O que se pode dizer é que, com base no resultado do painel arbitral e com a invocação da observância estrita do edital do programa de novos gTLDs, a empresa passou a exercer pressão para que continuasse o processamento de sua candidatura e resultasse na inserção definitiva do .amazon na raiz do DNS (algo que foi definitivamente decidido pelo Conselho Diretor da ICANN em 15/05/2019).

Os países amazônicos tentaram resistir na virada de 2018 a 2019, apegando-se ao fato de que uma questão tão complexa como o caso do .amazon não deveria ser resolvida sem que fossem consideradas outras questões que vão muito além da mera gestão técnica do sistema de nomes de domínio da Internet. Entretanto, sua própria desorganização após o colapso da diplomacia na região a partir da crise da Venezuela (com especial destaque para a postura unilateral assumida pelos governos do Brasil e da Colômbia desde então) enfraqueceu a ação coletiva coordenada do bloco e pode ser uma das principais causas do êxito da pressão exercida pela Amazon sobre o Conselho Diretor da ICANN para o encerramento da questão.

A comunidade, o Conselho e a organização

A ICANN é multidimensional. Ela congrega três partes bastante distintas: a “comunidade” de pessoas envolvidas com o DNS; a organização ICANN (entendida aqui como o corpo de profissionais que trabalha na execução das atividades rotineiras da entidade); e o Conselho Diretor (o órgão de cúpula na complexa estrutura da ICANN).

A comunidade envolve atores provenientes do setor empresarial, dos governos, da sociedade civil organizada, das comunidades técnicas e acadêmicas, bem como usuários individuais. Essa comunidade multissetorial está agrupada em torno de pautas comuns (por exemplo, a entidade que gira em torno dos domínios genéricos; o coletivo de administradores de códigos de país; o comitê governamental; os administradores de servidores-raiz, etc.).

O grupo mais heterogêneo em termos de composição é aquele que perambula em torno dos domínios genéricos: há aqueles grupos que mantêm contratos com a ICANN (concessionários de domínios, os “registries”, e revendedores de nomes no varejo, ou “registrars”) e há aquele conjunto de usuários (individuais ou corporativos) do DNS e que participam da definição de políticas nessa mesma condição (ativistas e entidades da sociedade civil preocupadas com a defesa de direitos fundamentais como a liberdade de expressão; empresas e entidades interessadas na preservação de direitos autorais; provedores de conectividade; usuários comerciais em geral). É dentro desse caldeirão que foram formuladas as regras do programa de novos gTLDs de 2012. Além daqueles, os grupos que congregam administradores de códigos de país, governos, usuários individuais e comunidades técnicas, seguem, cada um, uma lógica distinta de organização interna. E o estatuto de constituição e organização da ICANN (seguindo a legislação da Califórnia) orquestra a forma de interação de todos esses grupos. Após a chamada “transição IANA” (que não há espaço para tratar em detalhes aqui)5, pode-se dizer que o arcabouço de articulação e coordenação de todos esses grupos transformou a ICANN em uma verdadeira “organização internacional não governamental”.

O Conselho Diretor, por sua vez, envolve um grupo de 19 pessoas (mais o CEO da organização, num total de 20): algumas delas são eleitas pelos diferentes grupos de interesse da ICANN e outras são especialistas selecionadas por um “Comitê de Seleção”. O Conselho representa uma instância plural, composto a partir de imperativos de diversidade geográfica, linguística, de gênero, de competências profissionais e de aptidão temática.

A organização ICANN, por sua vez, congrega o conjunto de departamentos encarregados de desempenhar tanto as funções técnicas relacionadas à coordenação do DNS, quanto o trabalho de apoio ao funcionamento da arena política que ICANN encerra – na qual a comunidade dialoga e delibera permanentemente e o Conselho Diretor, após apreciar as questões estratégicas envolvidas nos direcionamentos dado pela comunidade, toma as decisões que definem os rumos do DNS.

O mito de que o DNS pode/deve estar imune à “politização”

Historicamente, de Clinton a Obama, o desenvolvimento institucional da ICANN foi sempre pautado pelo “ideal” de “privatização da governança da Internet”, o que ajuda a explicar uma certa ojeriza a tudo aquilo que venha dos governos (e, por consequência, do GAC).

Algo que geralmente acompanha a ideia de uma “governança liderada pelo setor privado” é o cultivo do mito segundo o qual a Internet só alcançou o sucesso que tem hoje porque sua governança sempre foi técnica e não política. Ainda hoje, mesmo depois do que foi escancarado com a Cúpula Mundial Sobre a Sociedade da Informação entre 2003 e 2005;6 da publicação de trabalhos de fôlego e muito rigor que escancaram “a política dos protocolos”,7 “quem governa a raiz”8 e “quem governa a Internet”;9 do teor da Declaração NETmundial sobre o futuro da governança global da Internet;10 e da indissociável vinculação da Internet ao alcance das metas de desenvolvimento sustentável constantes da Agenda 2030,11 há quem faça de conta que, em um passado perdido, a governança da Internet foi meramente técnica e apolítica, e defenda que esse ideal normativo seja perseguido como condição existencial para que a Internet siga sendo uma rede aberta e de caráter global.

Disso decorre um estado de permanente objeção e crítica à participação dos governos em processos decisórios no âmbito da ICANN. O GAC tem apenas a prerrogativa de aconselhar a ICANN a respeito das implicações que políticas para o DNS podem ter para as políticas públicas em uma perspectiva mais ampla. É verdade que o Comitê pode opinar sobre todo e qualquer assunto que lhe der na telha, desde que demonstre sua relação com o tema das políticas públicas. Ainda assim, a opinião dos governos não é vinculante nem mesmo para esses temas. Até 2016, todo e qualquer parecer do Comitê deveria ser seguido pelo Conselho Diretor em suas decisões (que deveria prestar esclarecimentos sempre que deixasse de segui-lo). A partir de 2016, a comunidade (que um respeitado centro de pesquisas da Índia classificou como “nem global, nem multissetorial”)12 decidiu que somente pareceres adotados consensualmente pelos governos teriam o status especial que tinham outrora. Essa guinada (que diminui ainda mais a prerrogativa dos governos incidirem no resultado dos processos de desenvolvimento de políticas na ICANN), inclusive, teve grande oposição de um grupo considerável de países sob a liderança do Brasil.

Por temas que vão desde a morosidade de processos governamentais e intergovernamentais vis-à-vis processos decisórios no setor privado e em ambientes técnicos, passam pelo questionamento da legitimidade dos governos para falar em nome de suas populações e chegam até a alegações de que governos são essencialmente auto-interessados e corruptos, pode-se dizer que a discussão a respeito do papel dos governos na governança da Internet, no contexto da ICANN, não é séria (e merece cuidados em virtude do potencial destrutivo que tem para a própria organização).

Não se pode afirmar categoricamente, sob pena de incorrer no ridículo, que governos, de forma indistinta, são essencialmente maus; que agem sempre de forma desvinculada dos mandatos recebidos pelo eleitorado e de forma inteiramente desvinculada dos interesses de suas populações, como é comum de se ouvir no ambiente ICANN. Por mais que a democracia representativa esteja sendo crescentemente posta à prova (o que é bom e, inclusive, é em parte viabilizado pela própria popularização da Internet), não se pode desconsiderar que os governos (e também seus poderes legislativos) constituem a institucionalidade por meio da qual, direta e indiretamente, as populações de cada país perseguem suas pautas prioritárias e o alcance dos interesses nacionais. Nem todos os governos são tiranos. E nem todas as populações dos 193 países que atualmente compõem a Organização das Nações Unidas estão completamente alijadas dos rumos adotados pelos governos que escolhem para lhes representar. Pelo contrário: a evolução da prática democrática contemporânea no mundo inteiro seguiu – durante a maior parte do Século XX e do início deste século – um caminho de constante fortalecimento e qualificação.

Essa espécie de demonização da política (e, em grande medida, da institucionalidade por meio da qual a política se manifesta) mistura a aspiração idealista de matriz libertária e os objetivos concretos de determinados atores (inclusive de atores estatais) com o intuito de esvaziar a participação do setor público na economia política contemporânea.13 É com esse pano de fundo que proliferaram narrativas segundo as quais o caso .amazon deveria ser decidido única e exclusivamente nos termos das regras procedimentais adotadas pela comunidade da ICANN em 2012, desvinculando a questão de outros aspectos que transcendem a governança do DNS em uma perspectiva mais estrita.

Quem ganha o quê, como e quando?

Alega-se que a contaminação da “política do DNS” por questões que transcendem a técnica podem comprometer a credibilidade e a neutralidade da ICANN para ocupar o papel que ocupa hoje, de coordenação dos identificadores da Internet em benefício do interesse público. Essa pretensão de neutralidade, pela própria complexidade da estrutura apresentada acima, não merece prosperar. Além disso, a enorme diversidade sociopolítica, econômica e cultural das partes do planeta integradas hoje na rede mundial de computadores faz com que seja difícil conceber que uma organização como a ICANN (subordinada à legislação da Califórnia e pautada principalmente pelos atores envolvidos com a economia dos nomes de domínio -- algo enormemente vinculado à economia dos Estados Unidos) consiga dar conta da pluralidade de assuntos envolvidos na relação circular entre Internet e sociedade. Mesmo que fosse possível extirpar integralmente a participação dos governos desse complexo mosaico que conforma a governança da Internet hoje, ainda assim a pergunta crucial de qualquer análise política (“quem ganha o quê, como e quando?”) segue inteiramente válida e é bastante instrutiva para que se possa entender o que está efetivamente em jogo no caso do .amazon.

Cumpra-se o edital, ainda que pereça o mundo

As regras do edital do programa de novos gTLDs previam algumas reservas a nomes de cunho geográfico – nomes de capitais de países; nomes de cidades em geral quando seu uso fosse associado à cidade e não a outro objeto homônimo; nomes de lugares e regiões subnacionais constantes da lista ISO 3166-2;14 nomes de regiões nos termos definidos em lista mantida pela UNESCO; nomes de regiões constantes da lista de regiões continentais e regiões subcontinentais, de grupos econômicos e outros mantida pela ONU.

O nome do estado brasileiro do Amazonas faz parte da lista ISO 3166-2. Nenhuma das outras categorias previstas no edital, entretanto, confere qualquer proteção à região amazônica propriamente dita e, principalmente, ao termo específico "amazon". De forma reiterada, tanto a Amazon, quanto outros países (como é o caso dos Estados Unidos) e até mesmo funcionários da própria ICANN, apontaram publicamente que não há, no direito internacional e até mesmo na ordem jurídica interna de qualquer país, qualquer empecilho ou proteção ao mero uso do nome "amazon" (inclusive no DNS global).

O edital, entretanto, previa algumas janelas de objeção que poderiam ser utilizadas pelos governos para expressar sua preocupação e eventual contestação à delegação de nomes de cunho comunitário, geográfico e religioso. Os governos poderiam enviar mensagens preliminares aos proponentes explicando sua preocupação com o uso de determinado nome. O GAC poderia emitir pareceres com oposição a determinada candidatura. E, ainda, havia a possibilidade (para grupos de interesse em geral, não apenas os governos) de desencadear a ação de um "contestante independente" (um perito contratado pelo programa de novos gTLDs para fazer o papel de uma espécie de "advogado do diabo" no caso). Em suma, o .amazon contou com todos esses expedientes: as mensagens preliminares não fizeram a empresa desistir de sua candidatura; o parecer do contestante independente não foi considerado procedente pelo Comitê do Programa de Novos gTLDs; e o parecer do GAC foi revertido posteriormente pelo painel arbitral movido pela empresa contra o Conselho Diretor da ICANN. Em caso similar, diante de contestações semelhantes, a empresa Patagonia (do ramo de vestimentos e acessórios para turismo de aventura), com menor poder econômico e respaldo político que a Amazon, acabou desistindo de sua candidatura ao .patagonia.15

O curioso da reversão é que o painel arbitral não determinou à ICANN que procedesse imediatamente com a liberação do .amazon. Ele apenas indicou que o Conselho Diretor falhou em apontar as razões de políticas públicas que o fizeram acatar sem ressalvas um parecer consensual do GAC que expressava, de forma genérica, oposição à candidatura. Eis aí algo bastante relevante para a compreensão dos acontecimentos recentes (e talvez até mesmo a respeito do que está por vir não apenas dentro do escopo dos novos nomes de domínios genéricos, mas, também, em relação ao futuro da própria ICANN).

O governo dos Estados Unidos como o (verdadeiro) fiel da balança

A compreensão do caso do .amazon passa, ainda, pela oscilação de posicionamento do governo dos Estados Unidos em relação ao tema. O panorama favorável aos governos amazônicos, entre 2013 e 2015, está intimamente ligado ao enfraquecimento da voz do governo Obama nas questões de governança da Internet no contexto do escândalo Snowden e das reações do Brasil e aliados em diversas esferas da política internacional.

A não objeção dos EUA (e países que tradicionalmente o acompanham) ao parecer do GAC em 2014 pode ser entendida como uma concessão feita pelo país para evitar que o caso .amazon e a própria arquitetura institucional da governança global do DNS virassem objeto de contestação fora da estrutura da ICANN. É verdade que o Encontro NETmundial, liderado pelo Brasil, serviu como espaço para a discussão do futuro da governança da Internet. Entretanto, imediatamente antes do evento, o governo dos EUA habilmente anunciou sua intenção de abandonar seu papel de supervisor-garante unilateral das atividades da ICANN, e concentrou a atenção da comunidade da ICANN em torno do longo processo, que durou de 2014 a 2016, de reformulação da estrutura da entidade de modo a torná-la independente e autônoma em relação à supervisão governamental.

Ao sinalizar positivamente ao pleito de outros governos em uma questão pontual como o caso .amazon, os Estados Unidos angariaram o apoio necessário para conferir legitimidade ao processo de reforma do multissetorialismo da ICANN (contendo a tradicional e sempre frequente demanda de realocação das funções dessa última a arenas intergovernamentais já existentes ou a serem eventualmente criadas).

Encerrado o período de transição, a partir de 2017, a retórica do governo estadunidense e de seus países aliados no GAC passou a ser mais perceptível e mais claramente favorável ao pleito da Amazon, na cobrança da estrita observação das regras definidas pela comunidade multissetorial da ICANN.

A reificação do multissetorialismo da ICANN e a pretensão de que ele é imune a críticas

O grande ponto a considerar no caso do .amazon é a forma autorreferenciada como a comunidade da ICANN trata de temas complexos e com diversas interfaces com aspectos políticos e estratégicos mais amplos, que transcendem a mera coordenação técnica do funcionamento da Internet pelo planeta.

Em primeiro lugar, diversos grupos de interesse ainda fazem de conta que essa coordenação pode ser feita de forma inteiramente neutra, sem implicações culturais, sociais, econômicas e políticas mais amplas. A Internet cresceu demais e essa noção idílica é atualmente insustentável.

Em segundo lugar, a invocação do mito da eficiência técnica vem sempre acompanhada da necessidade de estrita observância das regras e procedimentos internos, como requisito de legitimidade do papel da ICANN na coordenação dos recursos críticos ao funcionamento da Internet no mundo. Mesmo que isso deixe margem para que a ICANN coloque-se frontalmente em contradição e conflito com outras esferas da governança global (seja processos inteiramente intergovernamentais, seja trilhas onde diversas modalidades de práticas multissetoriais são desenvolvidas para dar conta dos dilemas da ação coletiva e dos problemas comuns a mais de um ator no plano internacional). O mais chocante, nesse caso, é que a própria sociedade civil organizada (tradicionalmente envolvida, alhures, com discussões substantivas em prol da justiça social e do combate a desigualdades e assimetrias em geral), na ICANN, tende a pautar-se por um formalismo estrito bastante similar aos ideais de uma governança inteiramente "privatizada" patrocinados maciçamente por setores empresariais e alguns países de viés mais liberalizante.

Por fim, há que se retomar a distinção crucial entre a comunidade, a organização e o Conselho Diretor. A comunidade da ICANN é bastante dominada por representantes de empresas envolvidas com o mercado de nomes de domínio, bem como usuários corporativos da Internet. Há uma expressiva participação da sociedade civil organizada nas atividades da ICANN (sobretudo por parte de ativistas e entidades do norte desenvolvido, focadas na proteção e promoção da liberdade de expressão e outros direitos fundamentais online), mas em menor intensidade e com muito menos recursos disponíveis que o setor empresarial em geral. Por vezes, os interesses de uns e de outros conflitam. Por vezes, esses setores atuam em sintonia (e até mesmo como proxies uns dos outros).

Os governos, nesse meio, têm a prerrogativa de falar sobre tudo aquilo que os demais grupos fazem e decidem, desde que (a) articulem aspectos de políticas públicas e, para serem decisivos e capazes de influenciar os processos, (b) alcancem o consenso entre si. Esse condicionamento reduz a capacidade de influência coletiva dos governos na ICANN, sobretudo diante da impossibilidade de se desvincular os interesses individuais de cidadãos e de corporações privadas (com ou sem fins lucrativos) dos interesses nacionais perseguidos pela diplomacia onde quer que seja (inclusive em uma arena como a ICANN).

A organização ICANN, por sua vez, apesar de servir para viabilizar as atividades da comunidade e do Conselho Diretor, segue sendo uma entidade privada sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos. Por mais internacionalizada e obcecada pelo seguimento de regras de governança corporativa que seja, as ações da ICANN enquanto organização são muito influenciadas pelo ethos e pelos direcionamentos de uma comunidade que reflete consideravelmente os interesses do setor empresarial dos EUA. Isso ocorre, inclusive, em virtude da grande proximidade que os funcionários da organização têm com os diversos grupos de interesse no cotidiano do funcionamento da mesma.

O Conselho Diretor segue essa toada, mas em menor medida; algo que deriva não apenas de sua pluralidade de composição, mas, também, de um olhar estratégico a respeito de tudo que está em jogo na interface da coordenação do DNS com o restante da governança global. Prova disso é que o Conselho foi bastante reticente e cauteloso com o processamento do caso .amazon ao longo dos anos. Mas foi impossível ao Conselho resistir à pressão crescente da Amazon e da própria comunidade da ICANN (incluídos aí o governo dos Estados Unidos e seus aliados) e barrar a criação do gTLD .amazon. Isso claramente acabou sendo facilitado pelos limites da organização e da coordenação da resistência dos países sul-americanos na virada de 2018 para 2019 (e por uma série de erros estratégicos que ocorreram ao longo dos sete anos de tramitação do pedido – algo que não vem ao caso neste momento).

Acontece, porém, que o fim do caso .amazon parece ser apenas o início de um novo período de contestação à ICANN (a exemplo do que tem ocorrido sucessivamente desde a Cúpula Mundial Sobre a Sociedade da Informação16 até os dias atuais). Deve-se lembrar, novamente, que o painel arbitral não determinou à ICANN a delegação tout court do .amazon. Apenas apontou que o Conselho Diretor falhou em apontar as razões de políticas públicas que fundamentariam o óbice à candidatura. Assim, o Conselho Diretor decidiu delegar o .amazon sem enfrentar o cerne da questão: quais razões de políticas públicas fundamentaram a aceitação irrestrita do parecer consensual dos governos? Ou por que o consenso de todos os países do GAC (algo raro de se alcançar) não é uma razão de política pública suficientemente forte para fundamentar a improcedência do .amazon? Pode ser que um novo painel arbitral surja, movido pelos governos, justamente para questionar a falta de explicação do Conselho para desconsiderar o consenso de todos os governos. Em última análise, a questão pode até mesmo ser judicializada perante um tribunal da Califórnia (ainda que essa seja uma hipótese bastante remota).

Mas o mais importante: dependendo de como o caso for conduzido fora dos limites da ICANN enquanto arena política e chegar a outros espaços onde a interface entre TICs e governança global é objeto de discussão e deliberação, pode ser que a ICANN saia enfraquecida. Sobretudo, porque a estrutura da ICANN como um todo, marcada pelas distorções de um multissetorialismo enviesado, ainda tem muito a provar para que possa ser considerada uma arena política pluralista e democrática capaz de ser percebida sem ressalvas como o locus plenamente legítimo para a consecução de atividades tão (e cada vez mais) relevantes para a governança global.

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1 Sigla de “generic top-level domain”. A política de expansão englobou genéricos (.jobs, .guru), geográficos (.rio, .osaka) e de marcas (.aramco, .ibm). Para uma lista bem detalhada, ver https://newgtlds.icann.org/en/program-status/delegated-strings

2 Alguns casos célebres – incluindo alguns controversos – são .music, .blog, .gay, .xyz, .web, .bradesco, .natura, .globo etc.

4 “Government Advisory Committee”, um dos comitês consultivos setoriais da ICANN, constituído por representantes de governos.

5 Mais detalhes em "A transição IANA chegou à outra margem do Rubicão" na 23ª edição da poliTICs. Disponível em: https://www.politics.org.br/categoria/politics-23

7 DENARDIS, L. Protocol Politics - The Globalization of Internet Governance. Cambridge, MA: The MIT Press, 2009.

8 MUELLER, M. L. Ruling the root: internet governance and the taming of cyberspace. 1. paperback ed ed. Cambridge, MA: MIT Press, 2004.

9 GOLDSMITH, J.; WU, T. Who controls the Internet? Illusions of a borderless world. New York: Oxford University Press, 2006.

13 WINNER, L. “Cyberlibertarian Myths and the Prospects for Community”. SIGCAS Comput. Soc., v. 27, n. 3, p. 14–19, 1997.

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