Identidade, capacidade e totalidade: repensando as fronteiras da personalidade no Brasil

por Marcelo Thompson, DPhil Candidate no Oxford Internet Institute, da Universidade de Oxford;* e Mestre em Law and Technology pela Universidade de Ottawa

Data da publicação: 

Março de 2009

Em julho de 2008 o governo federal anunciou a adoção de um novo documento nacional de identidade para os cidadãos brasileiros.1 O documento será armazenado em um cartão inteligente, que provavelmente conterá um certificado digital emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira — a ICP-­Brasil2 ­, um vasto sistema regulatório que atribui efeitos jurídicos preponderantes a tecnologias de autenticação e identificação oferecidas por prestadores de serviços credenciados pelo Estado.

Documentos assinados eletronicamente com tecnologias ligadas à ICP-Brasil gozam de presunção juris tantum de integridade e autenticidade — isso é, essas tecnologias permitem o reconhecimento jurídico de que documentos originalmente assinados com base nas mesmas permanecem inalterados e, mais importante, elas permitem a identificação autoritativa dos signatários de tais documentos. Na prática, essas tecnologias permitem delinear o reconhecimento e o exercício da personalidade jurídica no ambiente informacional. No que diz respeito às pessoas naturais, elas são uma ferramenta de suma importância para o exercício da cidadania digital no Brasil dentro do marco jurídico-­institucional vigente. Não por outra razão, o Presidente da República em exercício afirmou, no ato de lançamento da nova cédula de identidade, que elas são “sinônimo do fortalecimento da cidadania”.

Um documento nacional de identidade eletrônico torna ainda mais concreta essa realidade e será um marco de profunda importância para a vida jurídica e política do país. Daí que o tema merece ser estudado com cuidado e com intenso envolvimento da academia e da sociedade civil. Ele revolve a base primeira de nosso Direito: o conceito de pessoa. Ele diz respeito à capacidade de cada um de nós para adquirir e exercer direitos na ordem jurídica. As questões que ele gera são inúmeras.

AS PESSOAS

Podem os nascituros ter certificados? Podem os espólios? Que poderes um certificado confere? Nossa identidade — o conjunto de atributos que lastreia nossa continuidade no espaço­-tempo — é definida, em grande parte, por atributos socialmente construídos. Esses atributos definem as pessoas que somos; nossas capacidades e nossas responsabilidades. Como então essas capacidades e responsabilidades se ligam aos atributos permanentes ou variáveis de uma pessoa no ambiente informacional? Quais desses atributos devem estar refletidos em certificados digitais? Que deve gozar do poder de declarar cada um deles? Tem o Estado algum papel em definir como julgamentos coletivos sobre sujeitos de direito marcam definitivamente as relações jurídicas dos mesmos — julgamentos esses que são uma das notas características da chamada Web 2.0? O que ocorre se tais julgamentos se ligarem de forma permanente aos certificados contidos nos documentos nacionais de identidade eletrônicos? Retroagiremos assim impiedosamente ao período formulário, deixando julgamentos tão fundamentais sobre “quem somos” nas mãos por vezes açodadas, por vezes cruéis dos pretores multitudinários dos novos tempos?

A CONSTITUIÇÃO

Todas essas questões podem parecer extremamente distantes para o nosso presente constitucionalismo. Mas elas são urgentes e se agigantarão com a iniciativa que se avizinha. Apesar disso, é clara a insuficiência de nossas leis (estas questões não devem ser objeto de meros atos administrativos…) assim como é claro o desinteresse de nossas instituições acadêmicas por buscar respostas mais densas para tão profundos problemas da era da informação. Há tempos escrevi um ensaio sobre a questão da aquisição da Serasa pela Experian3, que dificilmente não terá culminado na transferência dos perfis da vasta maioria dos consumidores brasileiros para as mãos de uma companhia estrangeira, ao lado do poder de emitir certificados digitais que identificam esses consumidores — a Serasa é um dos prestadores de serviços de certificação credenciados pela ICP­-Brasil. Não há nada no art. 43 do Código de Defesa do Consumidor que impeça tal transferência. E não há nada que desde então, em meu conhecimento, tenha sido objeto de exame mais detido de nossa doutrina a respeito. Mas se a lei vacila, a Constituição não pode faltar.

Esse distanciamento entre a realidade posta em nossas instituições jurídicas e aquela que os valores mais relevantes de nosso tempo pressuporiam nos remete à pergunta de Ferdinand Lassalle sobre o grande incêndio em Hamburgo e a essência das constituições.4 Sua situação hipotética de destruição de todos os registros legais e constitucionais e da permanência inobstante de uma ordem jurídica ilustra seu entendimento de que a essência de uma Constituição não é o que vai escrito em palavras imutáveis, escritas nos anais do tempo.5 A essência de uma Constituição são as relações reais de poder existentes em uma sociedade. Se isto é verdade e eu aprendi com um grande professor que Lassalle estava certo ­, onde estão nossos constitucionalistas a examinar a atualidade dessas relações; a demandar que normas legais e constitucionais sejam arejadas pelas densas e tumultuosas relações da sociedade em rede? O que põe uma constituição à prova, dizia Lassalle, não é o fogo, mas a tempestade das transformações sociais. “Das Volk stand auf. Der Sturm brach los”.6 E não há talvez tempestade mais intensa do que a que nossa sociedade vive nos tempos contemporâneos. Mas é a tempestade invisível dos dados; o que se agita são questões de difícil visualização e discernimento para a pessoa comum. Talvez assim sempre tenha sido. Talvez os sans-culottes7 do presente estejam, eles também, destinados à manipulação que levará ao terror. Mas em algum momento há de vir o Direito. Em algum momento levantaremos todos. E a tempestade nos virá desvestir de todas as máscaras insinceras com que nos cobrem a face; dos involuntários heterônimos, das ilusões de autonomia com que os ilegítimos porteiros do ciberespaço nos defletem dos caminhos que levam a nós mesmos. “Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face”.8

QUESTÕES FUNDAMENTAIS DA ICP­-BRASIL

Duas questões demandarão um pronto delineamento jurídico quando da instituição de um documento nacional de identidade eletrônico. Elas dizem respeito aos arranjos presentes da ICP-­Brasil. A primeira deriva da totalidade de poderes atribuída por lei aos titulares de certificados digitais. A Medida Provisória 2.200­2 de 2001, que regula a matéria, não estabelece limitações ou delimitações sobre como certificados digitais se ligam aos atributos que eles asseveram. Um documento nacional de identidade eletrônico emitido nesses termos e extensivo, como deve ser, a todos os cidadãos e cidadãs, implicará em que uma pessoa possa utilizar seu certificado digital para a prática de todos os atos da vida civil.

Mas pode, por exemplo, uma pessoa que teve suspensos seus direitos políticos usar seu certificado para o sufrágio? Pode um cidadão que não é um advogado subscrever uma petição eletrônica a ser apresentada a nossas cortes? Como esses poderes, essas capacidades específicas, estarão ligadas a um certificado? Como isto reflete na situação jurídica de um indivíduo no âmbito de uma pessoa formal — por exemplo, em relação a poderes que lhe sejam estatutária ou contratualmente atribuídos? Em relação à capacidade de exercício das pessoas relativamente incapazes, como se levará a efeito o instituto da assistência?

A questão da totalidade, o “tudo ou nada” que hoje caracteriza a ICP-­Brasil deve receber texturas e tonalidades adicionais que se liguem aos diferentes status de uma pessoa; de um sujeito de direitos. Há de se repensar a questão dos atributos. Em segundo lugar, mas ligado ao primeiro ponto, está o problema da relação público-­privado na ICP-­Brasil. Hoje temos pessoas jurídicas de direito privado estranhas à administração descentralizada atestando atributos individuais de ordem pública. Duas únicas companhias não estatais — Certisign e Serasa — se encontram hoje habilitadas a prestar esses serviços comercialmente a usuários privados. Os certificados que elas emitem, como acabamos de ver, oferecem uma ilimitada gama de poderes aos titulares dos mesmos. Há pequenas variações, sobretudo nos certificados para interação com a Receita Federal, que são emitidos no âmbito de uma estrutura ligada à própria Receita e que estabelece alguns requisitos adicionais. Em linhas gerais, porém, essas empresas gozam de um amplo espectro de possibilidades para habilitar indivíduos à prática de todos os atos da vida pública e privada.

O fato de essas empresas prestarem tais serviços não é, em si, um problema. O regime jurídico dos serviços de certificação é delineado por lei como um regime jurídico de direito público, mas um em que os serviços de certificação são objeto de delegação. Há um processo de credenciamento no curso do qual os prestadores desses serviços se demonstram aptos a atender as regras estabelecidas pelo Comitê Gestor da ICP-­Brasil e suplemen­tadas pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação, da Casa Civil da Presidência da República. Havendo um marco regulatório definido, não seria em si um problema que a certificação de atributos de ordem pública se desse por esses prestadores.

A ausência de definições claras a respeito dos limites da descentralização em curso, no entanto, é um problema. O modelo atual atende, de certa forma, ao princípio da subsidiariedade, previsto no art. 2o., II, da Lei 7.232 / 84, que estabelece a Política Nacional de Informática. Mas há de se apurar a precisa medida do princípio da subsidiariedade em serviços que definem de forma tão pungente nossas possibilidades de existência no ambiente informacional. A mesma Lei 7.232, em seu art. 2o., V, prevê o ajuste continuado do processo de informatização às peculiaridades da sociedade brasileira. O Poder Executivo goza de plenas prerrogativas para acompanhar de perto esse processo e deve buscar estabelecer uma fina sintonia em área de tamanha sensibilidade; mas há a gritante necessidade de um maior escrutínio legislativo. Havendo de fato a necessidade de se estender os serviços de certificação a todas as pessoas por meio de um documento nacional de identidade eletrônico, deve­-se buscar quais as reais necessidades dessa extensão, assim como que formas de regulação se devem agregar a ela. E isto não só em relação aos prestadores de serviços de certificação na ICP­-Brasil, mas também a outras formas de definição de atributos individuais que se possam agregar a esses serviços.

Deve­-se buscar aferir quais os direitos e valores a serem protegidos na definição das novas fronteiras da personalidade humana nas redes de dados. As peculiaridades da sociedade brasileira não serão mais do que os fatores reais de poder de que falávamos acima. Mas há de se atentar também a como o universo mais amplo do mundo conectado que sobreveio à Lei 7.232 vem refletir sobre essas peculiaridades. Sobretudo, há de se encontrar os mecanismos de filtragem próprios para captar os valores que mais importam em nossa sociedade da informação. Na raiz desses mecanismos deve estar o valor “pessoa”; ele o fim em si mesmo, o valor primeiro no qual — e somente no qual — todos os demais se justifica.9

SUGESTÕES PARA UM FUTURO PONDERADO

Importa ver, porém, que os prestadores de serviços de certificação também fazem parte do sistema que foi originalmente erguido pelo próprio Estado precisamente para tutelar esse valor. Não fará sentido algum demolir toda a estrutura que se construiu até o presente momento e reabsorver tudo o que haja sido objeto de delegação. Um sistema em que a declaração autoritativa de nossos atributos individuais fosse completamente enfeixada pelo poder estatal seria um sistema totalitário. Assim como seria totalitário um sistema em que um mercado de grandes corporações — e de indivíduos conduzidos por elas — titularizasse um poder irrestrito de fazê­-lo.

À estrutura original da Internet faltou a camada da identidade. A construção dessa camada deve ser conduzida de forma proporcional, buscando um equilíbrio reflexivo entre a superestrutura do Estado, do Direito posto, e da infraestrutura que pressupõe o Direito. Deve-se buscar também esse equilíbrio dentre os diversos valores que orbitam em nossa sociedade em torno do conceito de pessoa — um processo que será tão averso a idéias de neutralidade quanto a quaisquer movimentos totalitários que pretendam reduzir esse multi-facetado conceito a uma realidade unidimensional.

Levando-­se adiante a imple­mentação do programa relativo ao documento nacional de identidade eletrônico, possibilidades que talvez mereçam ser consideradas são as seguintes:

I) restringir os atributos contidos nos certificados presentes nos documentos nacionais de identidade eletrônicos (eDNI) àqueles necessários à prática de atos de natureza pública — vale dizer: os atributos individuais refletidos nesses certificados ou a ele ligados por meio de outras tecnologias (p.ex. certificados de atributo) devem ser tão somente aqueles que minimamente possibilitem a interação dos indivíduos com as diferentes funções do Estado;

II) exceções ao item i) devem ser as questões de estado — vale dizer: atributos relacionados ao estado civil, à menoridade, à interdição, à insolvência declarada judicial­mente (não à insolvência declarada pela Serasa), entre outros — que também faz sentido sejam objeto de declaração autoritativa pelo Estado;

III) tendo em vista que o certificado digital contido no eDNI será um documento público, livremente acessível por quem quer que pretenda verificar a identidade de m cidadão, os atributos contidos nos campos do próprio certificado devem ser aqueles estritamente necessários para a verificação de uma identidade numérica ou minimamente qualitativa — outros atributos devem estar ligados ao certificado digital por meio de tecnologias alternativas (por exemplo, certificados de atributo),de forma que permita ao cidadão determinar se e quando tais atributos devem ser comunicados; há de se atentar para o que se vem usando chamar do “princípio da centralidade do usuário” (user-centricity), que é a nota característica de inúmeros projetos atualmente em curso para a construção de uma camada de identidade para a Internet, ou, em linguagem já mais usual no campo da proteção de dados pessoais, podemos falar do direito à autodeterminação informativa (informationelle selbstbestimmungsrecht): por ambos, o sujeito de direitos deve ter a possibilidade ativa de definir o destino dos dados que a ele se referem, dentro de limites naturais à vida em uma sociedade conectada — limites que são normalmente delineados por princípios refletido sem leis de proteção de dados pessoais do tipo que vergonhosamente ainda não temos no Brasil;

IV) o certificado digital contido no eDNI não deve possibilitar a assinatura eletrônica de documentos privados sem que a eles se agreguem atributos conferidos por prestadores de serviço de certificação comerciais — duas justificativas podem ser imediatamente trazidas para tanto: a) a mais importante é a de que atos jurídicos praticados com base nesses certificados digitais podem atingir valores elevados e não faria o menor sentido que eventuais problemas técnicos fossem completamente absorvidos pelos cofres públicos — a ICP-­Brasil hoje conta com uma cadeia de responsabilidade que mitiga as possibilidades de o Estado responder subsidiariamente: prestadores de serviço de certificação são obrigados a contratar seguros de responsabilidade civil e a manter um custoso ambiente tecnológico que, se não afasta por completo quaisquer remotas possibilidades de catástrofes, ao menos as atenua de forma muito significativa; e b) como já aludido acima, o princípio da subsidiariedade demanda que o Estado somente intervenha na ordem econômica na medida em que o mercado não apresentar possibilidades de desempenhar com eficácia ma função de interesse público — tal não é o caso em relação à certificação de atributos relativos à prática de atos de natureza privada;

V) há então de se rever a atual redação do art. 10 da MP 2.200­2/2001, ou ao menos, mas não idealmente, as correntes Resoluções do Comitê Gestor da ICP­-Brasil, de forma que haja uma delimitação mais clara dos tipos de ato que se pode praticar com diferentes tipos de certificado digital/certifica de atributos, de quem terá o poder de certificar cada m desses atributos, e de que modo deverá fazê­-lo;

VI) finalmente, há de se rever a forma como a estrutura mais complexa na qual a ICP-­Brasil se tornará vai interagir com outras formas de identificação no ambiente informacional — por exemplo, a utilização do eDNI para cruzamento de dados pessoais ou para ligação com atributos que se possam fazer presentes de forma perene na Internet (p.ex. julgamentos coletivos sobre a reputação de um vendedor no eBay) deve ser rigidamente disciplinada.

As sugestões acima são reconhecidamente superficiais. Elas parecem, porém, permitir a existência de um mercado. Prestadores de serviços de certificação comerciais poderão continuar a desempenhar seu importante papel social, no contexto de um sistema adequadamente regulado. A questão dos certificados de atributo que se liguem aos DNI e assumirá uma importância fundamental. Ela garantirá a própria subsistência dos prestadores comerciais. Órgãos públicos podem talvez mesmo nutrir interesse por descentralizar a emissão desses certificados, cujos atributos, seja por razões de necessidade de sua revisão permanente, seja por outras razões que já examinamos acima, não devem fazer parte do eDNI. Por exemplo, talvez os Conselhos de Fiscalização Profissional, interessados em vincular os atributos relativos ao exercício da profissão ao eDNI, optem por fazê­lo por meio de certificados de atributo emitidos por autoridades de atributo comerciais, vinculadas à ICP-­Brasil. E se os prestadores de serviço de certificação comerciais certamente perdem em muito com o fato de que os certificados digitais para interação com o Estado não serão mais por eles emitidos, um sem fim de novas possibilidades se abre, em um mercado que ambicionará atingir toda a sociedade brasileira.

TECNOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL

Em um artigo publicado há três anos na revista Computer world, o Dr Renato Martini, Diretor-­Presidente do ITI, notou, em resposta às minhas sempre insistentes observações sobre a questão dos certificados de atributo, que os “regramentos aplicados à tecnologia devem levar em conta a existência de plataformas tecnológicas comerciais e os limites das aplicações”.10

Há de se examinar o que entendemos por tecnologia. Em seu excelente livro “Re-thinking Science, Technology and Social Change”, Dr Ralph Schroeder, Professor do Oxford Internet Institute, nota que a tecnologia pode ser contemporaneamente entendida como a “aventura da interligação entre o refinamento e a manipulação” do mundo natural. “[O] avanço tecnológico”, explica Schroeder, “consiste no processo por meio do qual artefatos vão sendo continuamente modificados de modo a aumentar ou estender nosso domínio sobre o mundo”.11 Ainda que a tecnologia seja certamente marcada pelas verdades objetivas do processo científico, não há como negar que ela é precisamente essa aventura de que Schroeder fala: uma aventura em busca de nossas próprias possibilidades.

Em um mundo de leis (e de constituições!), entenderemos que o processo tecnológico deve ser demarcado também pelos fatores reais de poder de uma determinada sociedade — ele deve ser conduzido de forma a estender nosso domínio sobre o mundo, tanto quanto esse domínio deve levar a efeito os valores mais caros à nossa sociedade. A tecnologia então não é fogo a queimar nossa Constituição, porquanto essa não se queima, como vimos, mas é antes revolvida pelas próprias transformações sociais. A tecnologia é revolvida pela essência da Constituição; não o contrário. Ela deve ser o reflexo preciso desse processo pelo qual buscamos fortalecer a coesão de nossa sociedade em torno de valores comuns. O mais fundamental desses valores é o próprio valor “pessoa”. Daí que se certificados de atributo — ou algo que tenha semelhante função de subtrair atributos individuais do corpo dos certificados digitais e permitir ao mesmo tempo uma mais fina sintonia do mercado e um mais efetivo controle por parte dos indivíduos — se os certificados de atributo se prestam ao fortalecimento desse valor, não há porque não implementá­-los; não há porque não rumarmos de um mundo de totalidades a um mundo de mais amplas possibilidades de desenvolvimento pessoal… e social.

Naquele mesmo artigo, Dr Martini questionava de que valeria criar novas regras se nossos prestadores de serviços de certificação não têm ainda como implementá-­las. Nesse sentido, é interessante notar que o problema dos certificados de atributo é tratado, desde 2002, pela RFC 3281 da IETF. Há, então, pelo menos padrões que definem a seara do possível. Meu ponto, porém, não diz respeito necessariamente a certificados de atributo, mas a mecanismos que possam levar a efeito equivalentes funcionalidades. Diante da iminência de um documento nacional de identidade eletrônico que, se implementado sem revisão das regras atuais, arrisca a própria subsistência da ICP-­Brasil, o princípio da proporcionalidade nos oferece a cordial sugestão de revisar as normas que definem os presentes arranjos tecnológicos do sistema nacional de certificação digital. A tecnologia consistirá precisamente em refinar e manipular esse sistema em respeito aos valores que pretendemos tutelar. Diante da totalidade do fim, prefiro apostar em nossa capacidade de encontrar caminhos criativos para repensar as fronteiras da personalidade no Brasil.

*Bolsista da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Ministério da Educação.

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1. Discurso do presidente da República em exercício, José Alencar, na solenidade de abertura do Encontro Nacional de Identificação da Polícia Federal Brasília-­DF, 08 de julho de 2008, on­line: ITI http://www.iti.gov.br/twiki/bin/view/Noticias/DiscursoAlencar

2. ICP-­Brasil http://www.icpbrasil.gov.br

3. Thompson, M. Experian buys Serasa, and the Future of Identity in Brazil, em http://people.oii.ox.ac.uk/thompson/2007/07/02/experianbuysserasaandthef...

4. Ferdinand Lassalle, “On the Essence of Constitutions: Speech Delivered in Berlin, April 16, 1862” (1942) 3:1 Fourth International 25.

5. Problema interessante a ser enfrentado, por exemplo, é a regra totalitária do artigo 22, IV, de nossa Constituição, que comete à União competência privativa para legislar sobre informática. O que é legislar sobre informática em um mundo em que as tecnologias de informação e comunicação transformaram profundamente nossos paradigmas sociais e estão presentes em nossas mais diversas relações sociais e jurídicas? Como impedir que estados e municípios legislem sobre o tema quando adotam, por exemplo, políticas de inclusão digital? Quais os limites das normas definidas por organismos de padronização como a Internet Engineering Task Force; como estes se relacionam com nossas leis? Pode a sociedade civil integrar o Comitê Gestor da ICP­-Brasil (como deve e faz)? O que acontece com nosso sistema de gestão de nomes de domínio se aquela regra constitucional não for temperada com um grão de sal? Bem se vê que aquilo que talvez por alguma bizarra imprevisão tenha parecido razoável a nossos constituintes está longe de representar a realidade dos tempos contemporâneos.

6. ”O Povo se ergueu. A Tempestade irrompeu.”

7. Sabe­-se que um virulento desarranjo social – o terror – lastreou­-se na manipulação dos sans-­culottes pela influente burguesia jacobina durante a Revolução France­sa. Hoje, igualmente, em diversos debates nossas massas são conduzidas por claras verdades turvas. Mais frequentemente do que não, diante da imensa complexidade do mundo contemporâneo, interesses pessoais se inculcam qual públicos fossem. Nem tudo é bom nas revoluções. Mas em algum momento a tempestade verdadeira irrompe, valores sociais se estabilizam, valores constitucionais se redefinem.Para tanto, é importante estarmos atentos ao que de real existe nas dinâmicas sociais de nosso ambiente informacional – nessas complexas relações de objetivos, prêmios, estratégias e agentes a que William Dutton se refere como a “ecologia dos jogos” que conforma a Internet (Dutton, Wiliam, “Social Movements Shaping the Internet: The Outcome of an Ecology of Games”, on­line: SSRN http://ssrn.com/abstract=1138757

8. Primeira Epístola aos Coríntios 13 12

9. Ver, por exemplo, Finnis, John, “The Priority of Persons,” in Horder, Jeremy, ed., Oxford Essays in Jurisprudence: Fourth Series (Oxford: Clarendon Press, 2000) p. 1–15.

10. A Renato Martini, “Certificaçãoe suas variantes. Certificado de atributo, que exibe o perfil do proprietário, é novo desafio para a ICP-­Brasil” (12 de Maio de 2006), on­line: Computer world http://computerworld.uol.com.br/seguranca/renato_martini/idgcoluna.2006-...

11. Schroeder, Ralph, Re-thinking Science, Technology, and Social Change (Stanford: Stanford University Press, 2007) p. 8­9.

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