Editorial da 31ª edição

A humanidade sofreu as graves consequências de duas guerras mundiais no século 20. Com a derrota da Quádrupla Aliança pela Entente em 1918, a primeira Conferência de Paz do século em 1919 e 1920, em Paris, resultou em cinco tratados que reorganizaram o mapa da Europa e na criação, em janeiro de 1920, da Liga das Nações – a primeira organização mundial intergovernamental, que durou 26 anos. Já era parte da missão da Liga a defesa de direitos humanos, mas o objetivo era evitar que novos confrontos mundiais fossem desencadeados.

O fracasso da Liga (que chegou a ter 58 países membros) ficou evidente quando o conflito mais mortal da história humana, a Segunda Guerra Mundial, foi desatado em 1939 com a invasão da Polônia pela Alemanha. O término da guerra levou a um novo esforço de criação de uma estrutura com o objetivo de manter a paz e segurança internacional. Uma reunião em San Francisco com a participação de 50 países em abril de 1945 definiu as bases da Carta das Nações Unidas, e da estrutura intergovernamental para fazer valer os acordos de paz e os objetivos da Carta. Em outubro de 1945 a Organização das Nações Unidas começou a funcionar com 51 países membros.

Três anos depois, em dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), com a adesão de 48 de seus 58 membros (oito abstenções e dois países que não votaram), pilar do desenvolvimento de uma legislação internacional de defesa de direitos humanos e referência para a Carta Internacional de Direitos Humanos – a Resolução 217-III da Assembleia Geral (1966) que integrou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais à DUDH. É o mais abrangente consenso intergovernamental mundial da história sobre direitos da cidadania.

O primeiro texto desta edição enfrenta um grande desafio: buscar os enlaces entre a base essencial de direitos representada pela DUDH e como esses direitos podem valer para a cidadania no espaço digital do ecossistema da Internet. Sam Lanfranco e Klaus Stoll exploram esse desafio, e aqui publicamos as primeiras seis partes de seu trabalho, analisando em detalhe os 19 primeiros artigos da DUDH no contexto da governança da Internet, resultado de uma pesquisa ainda em progresso.

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Serviços de livre entrada e custo zero para os usuários, financiados por terceiros com base no acesso a preferências desses usuários no modo em que usam esses serviços – uma circularidade que ninguém imaginava tornar-se um negócio trilionário, obedecendo rigorosamente a “lei dos grandes números”: um pequeno conjunto dominante desses serviços (Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp, Youtube, entre outros) com centenas de milhões ou mesmo bilhões de usuários eventualmente prestando atenção em anúncios em suas telas e, em uma pequena porcentagem que significa centenas de milhões de cliques a cada segundo, eventualmente visitando a oferta de um anúncio e gerando uma porcentagem para o dito serviço gratuito.

Nesse processo eses serviços acumulam dados dos perfis de navegação dos usuários, um produto à venda para outros agentes ou para o próprio serviço – que direciona anúncios ou mensagens a cada usuário conforme seu comportamento traduzido em interesses pessoais online. Ainda mais, no trajeto entre o dispositivo do usuário e qualquer serviço da Internet, seu tráfego pode ser interceptado por provedores para acumular (e lucrar com) perfis de navegação.

As consequências da gratuidade no acesso a serviços nessas plataformas são resumidas nesse novo Termo de Serviços do Youtube: “o YouTube tem o direito de monetizar todos conteúdos na plataforma e anúncios podem aparecer em vídeos de canais que não estão no Programa de Parcerias do YouTube”.1

Acrescente-se a esse universo de serviços os aplicativos de e-serviços (mobilidade, alimentação) que usufruem do trabalho de pessoas sem nenhum seguro ou obrigação trabalhista, criando uma legião de novos super-explorados da sociedade digitalizada.

O Marco Civil da Internet (MCI) é construido em torno de dois componentes da Internet: “provedores de conexão” e “provedores de aplicações de Internet”. Este segundo componente já representava uma grande complexidade quando da sanção do MCI em 2014. Hoje isso traduz-se em empresas operadoras de serviços de rede social diversificados envolvendo uma cadeia de responsabilização setorial e transfronteiras que representa o maior desafio regulatório da governança da Internet. Como descreve Rana Dasgupta:

O exemplo icônico é a [empresa] Facebook, uma concentração repentina de US$700 bilhões quase totalmente isolada da população em geral: não apenas a propriedade é controlada, mas o emprego está confinado a equipes compactas de especialistas altamente pagos. Como seus pares do Vale do Silício, a Facebook disfarça o lucro e o transfere para o exterior, para que sua riqueza não se infiltre na sociedade por meio de impostos. A empresa pagou em média 10,2% em impostos na última década. As consequências negativas disso não afetam a Facebook: ela vende quase que exclusivamente para outras empresas e, portanto, não depende diretamente de consumidores abastados. E ainda assim, suas vendas e avaliação seriam zero sem os usuários, todos os quais doam a matéria-prima da empresa – seus dados pessoais – gratuitamente. Os usuários do [aplicativo] Facebook gastam bilhões de horas enviando dados, mas esse trabalho é disfarçado de consumo e não há indícios de compensação.2

É essa complexidade técnica e jurídica da responsabilização de intermediários que o estudo de Bruna Martins dos Santos esmiuça com grande cuidado, atualidade e qualidade.

Boa leitura!
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1Ver https://www.youtube.com/static?template=terms
2Rana Dasgupta, “The Silence Majority”, Harper’s Magazine, dezembro de 2020, https://harpers.org/archive/2020/12/the-silenced-majority/

 

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