Zero-rating, planos de serviço limitados e o direito de acesso à Internet

Por Flávia Lefèvre, Representante da sociedade civil no CGI.br e colaboradora da PROTESTE Associação de Consumidores

Data da publicação: 

Agosto de 2015

Durante disputado processo para a aprovação do Marco Civil da Internet (MCI) no Congresso Nacional em 2012 e 2013, um dos principais e mais polêmicos temas foi a garantia da neutralidade da rede e seus possíveis impactos para as empresas provedoras de serviço de conexão à Internet, para seus planos de negócios e para os consumidores. A discussão continua, pois estamos na fase de debates para edição do Decreto Presidencial que regulamentará alguns dispositivos da Lei 12.965/2014, estando entre eles as exceções à garantia da neutralidade, previstas no art. 9o, que trata das obrigações de tratamento não discriminatório dos pacotes de dados lançados na rede.

Muito da discussão se deu e ainda se dá quanto ao alcance que se atribuirá a esta garantia, de acordo com a qual o responsável pela transmissão, comutação e roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. Dispõe também o MCI que na provisão de conexão à Internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear os pacotes de dados.

Diante desses comandos surgem posições divergentes com relação à prática comercial adotada por muitas empresas fornecedoras do serviço de conexão à Internet denominada de zero-rating ou acesso patrocinado. Esta prática é muito utilizada pelas operadoras móveis nos planos que estabelecem franquias com volumes limitados de dados a serem utilizados mensalmente pelo consumidor. Nestes casos o provedor de conexão deixa de descontar o volume de dados correspondentes à aplicações ou conteúdos específicos. A princípio, esta prática não violaria a neutralidade, desde que o consumidor mantivesse a possibilidade de acessar também outras aplicações e conteúdos disponíveis na Internet, mesmo depois de esgotada a franquia, ainda que com a velocidade do provimento reduzida; assim não se poderia falar em discriminação vedada pelo MCI.

PLANOS DE SERVIÇO LIMITADOS E ZERO-RATING

Ocorre que a prática do zero-rating no Brasil está associada a planos franqueados, com limites baixos de volumes de dados por mês – de 200 MB a 600 MB – e, ao fim da franquia, o provedor de conexão mantém o acesso apenas a determinados aplicativos, com o bloqueio de todo o imenso universo disponível na Internet. Porém, se o zero-rating não viola a neutralidade enquanto a franquia está válida, a partir do momento em que a franquia se esgota e o provedor disponibiliza o acesso apenas a determinados aplicativos ou conteúdos e bloqueia todo o resto do que está disponível na Internet a obrigação de tratamento não discriminatório e a proibição de bloqueio estão sendo desrespeitadas.

E este entendimento foi também o das operadoras, que, durante o período de tramitação do projeto de lei que resultou no MCI, publicaram uma espécie de cartilha para ser distribuída aos parlamentares, onde apontavam como um dos principais problemas da lei o teor do art. 9o do então projeto, mas, ao mesmo tempo e contraditoriamente, se diziam a favor da neutralidade. Afirmaram o seguinte: “O artigo 9o do projeto do Marco Civil da Internet define, em seu caput, que os provedores de acesso têm o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por serviço. Como consequência dessa determinação, a oferta de serviços diferenciados pela velocidade é a única modalidade que pode ser comercializada. Neste tipo de oferta todos os pacotes recebem da rede o mesmo tratamento e apenas a velocidade com que eles são entregues ao usuário pode variar, em função da velocidade contratada. Todos os demais tipos de oferta, alguns deles atualmente comercializados, incluindo, a oferta baseada em volume de dados consumido pelo usuário, estariam vedados pelo Marco Civil”.

Editado o Marco Civil da Internet em abril de 2014, que passou a vigorar a partir de junho do mesmo ano, apesar das assertivas transcritas acima, as empresas continuaram a comercializar planos franqueados, com volumes de dados mensais pífios, mas ao final da franquia, reduziam a velocidade do provimento e mantinham o acesso à Internet. Porém, a partir de janeiro deste ano, alegando que este modelo de negócios praticado até então não se mostrava mais lucrativo, mudaram a prática; passaram a adotar o zero-rating para dar acesso aos aplicativos e conteúdos fornecidos por empresas com as quais estabelecem algum tipo de parceria, como é o caso do Facebook, Whatsapp e Twitter, bloqueando qualquer outro conteúdo ou aplicação.

OS PRINCÍPIOS, FUNDAMENTOS E OBJETIVOS DO MARCO CIVIL DA INTERNET

Para analisar a legalidade ou não desta prática comercial, antes de tratar propriamente da neutralidade pelo aspecto técnico e de seus efeitos no campo social e econômico, temos de considerar que o MCI desenhou um novo cenário para o serviço de acesso à Internet. Deixou expresso que o acesso à Internet é essencial para o exercício da cidadania e, por isso, introduziu uma série de garantias e definiu para o Estado diretrizes para a promoção da racionalização da gestão e expansão do uso da Internet no Brasil, tendo como fundamentos o reconhecimento da escala mundial da rede, os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais, a pluralidade e a diversidade, a defesa do consumidor e a finalidade social da rede, entre outros.

Os princípios trazidos pelo MCI foram a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, a preservação e garantia da neutralidade de rede, assim como sua estabilidade, segurança e funcionalidade, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas. O MCI estabeleceu ainda que a disciplina do uso da Internet no Brasil tem por objetivo a promoção do direito de acesso à Internet a todos, de modo a se promover o acesso à inf ormação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos.

Ou seja, ao determinar que o acesso à Internet é direito de todos, introduziu a garantia de que o serviço é de interesse público e essencial e de caráter universal, o que significa que deve estar disponível tanto para os mais ricos quanto para os mais miseráveis dos cidadãos, de forma contínua e com condições mínimas de qualidade.

Vale ressaltar que o MCI teve como fonte a Resolução 2009/003 do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), por meio da qual se estabeleceram os Princípios para a Governança e uso da Internet no Brasil, estando entre eles o seguinte: “O acesso à Internet deve ser universal para que ela seja um meio para o desenvolvimento social e humano, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória em benefício de todos”. A fixação de tais princípios decorreu de consenso construído entre os vários setores representados no CGI.br: governamental, comunidade científica e tecnológica, sociedade civil e setor empresarial e, por isso, as empresas não podem ignorá-los.

Temos também de ter em vista um dos objetivos trazidos com o MCI e relevante para a discussão a respeito do zero-rating, qual seja, a adesão a padrões tecnológicos abertos que permitam a comunicação, a acessibilidade e a interoperabilidade entre aplicações e bases de dados. Portanto, ao tratar de acesso à Internet temos de reconhece-lo como serviço de interesse público e essencial, sendo mandatório admitir que o estado está obrigado a assegurar a sua prestação, devendo regular as contratações que se dão em larga escala e que não podem se desenvolver exclusivamente com base nas regras do mercado.

A NEUTRALIDADE

Nesse cenário, um dos principais instrumentos para se atingir o acesso universal à Internet, além da infraestrutura, é a garantia da neutralidade da rede, na medida em que os benefícios decorrentes do acesso à Internet resultam principalmente pela ampliação do acesso aos conteúdos de toda natureza, educacional, cultural, entre outros. A neutralidade é uma ferramenta jurídica para garantir tratamento isonômico e não discriminatório na Internet, a fim de preservar o caráter aberto da arquitetura de redes e valores como a democracia, liberdade de expressão, fluxo livre de informação, privacidade, ambiente concorrencial, inovação, direitos do consumidor entre outros direitos fundamentais.

Os aspectos técnicos para a verificação do cumprimento das obrigações de não discriminação na rede vão depender da abrangência do conceito de neutralidade que se configurar nos ambientes de debate – órgãos reguladores e Poder Judiciário. De qualquer forma, o certo é que existem muitas definições a respeito da neutralidade, amoldadas cada uma delas aos objetivos perseguidos por cada país. E, no caso do Brasil, a definição a respeito da neutralidade terá de ser construída de acordo com os fundamentos, princípios e objetivos estabelecidos pelo MCI, como vimos anteriormente.

Nesse sentido, a primeira afirmação que podemos fazer com absoluta segurança é a de que a prática do zero-rating não se enquadra em nenhuma das hipóteses de quebra da neutralidade estabelecidas pelo MCI, já que não decorre de questões de natureza técnica e nem tem implicações emergenciais; trata-se de modelo de negócio voltado para atender interesses comerciais. Mas a disputa permanece quanto a se concluir se esta prática configura ou não quebra da neutralidade. Sendo assim, voltamos a resgatar o Decálogo de Princípios do CGI.br que, ao tratar da neutralidade, deixou fixado o seguinte: “filtragem ou privilégios de tráfego devem respeitar apenas critérios técnicos e éticos, não sendo admissíveis motivos políticos, comerciais, religiosos, culturais, ou qualquer outra forma de discriminação ou favorecimento”.

Também traz grandes contribuições para a análise da prática do zero-rating o consenso estabelecido na Declaração de São Paulo, resultado do Encontro multissetorial NETmundial1, ocorrido no Brasil em abril de 2014 envolvendo mais de 12 países, que trata de princípios para a governança da Internet, estando entre eles:

Espaço unificado e não fragmentado: a Internet deve continuar como um espaço unificado e não fragmentado com vistas a que continue a ser uma rede de redes globalmente coerente, interconectada, estável, não fragmentada, escalável e acessível, baseada em um conjunto comum de identificadores únicos, permitindo o livre fluxo de informações de ponta a ponta independentemente de seu conteúdo.

Arquitetura aberta e distribuida: a Internet deve ser preservada como um ambiente fértil e inovador baseado em uma arquitetura de sistema aberto, com colaboração voluntária, gestão coletiva e participação, apoiando a natureza ponta a ponta da Internet aberta, e buscando especialistas técnicos para resolver problemas técnicos no local apropriado de uma maneira consistente com esta abordagem aberta e colaborativa.

Ambiente favorável para a inovação sustentável e a criatividade: a capacidade de inovar e criar está no âmago do notável crescimento da Internet e trouxe grande valor para a sociedade global. Para a conservação de seu dinamismo, a governança da Internet deve continuar a permitir a inovação livre de barreiras através de um ambiente de Internet favorável, consistente com outros princípios deste documento. Empreendedorismo e investimentos em infraestrutura são componentes essenciais de um ambiente favorável.

Sendo assim, pela perspectiva dos princípios de governança da Internet aceitos internacionalmente e de acordo com o MCI, entendemos que a prática do zero-rating associada a planos franqueados com acesso restrito a determinados conteúdos e aplicações e bloqueio a todo o resto do que se encontre disponível na Internet viola a neutralidade, trazendo graves prejuízos para a sociedade brasileira, tanto pelo aspecto econômico, quanto aspecto social. A prática do zero-rating associada aos planos com limite de volume de dados e restrição de acesso à Internet ao final da franquia cria condições para que a Internet se torne um espaço voltado preponderantemente à interesses comerciais e contrário à verdadeira efetiva inclusão digital.

IMPACTOS ECONÔMICOS DECORRENTES DO ZERO-RATING

Para avaliar os impactos econômicos decorrentes da prática do zero-rating do modo como vem sendo comercializada pelos provedores de acesso, importante considerar que empresas de infraestrutura de telecomunicações, com Poder de Mercado Significativo, e que atuam como provedores de acesso à Internet, se associam a empresas fornecedoras de conteúdos e aplicações, potencializando os efeitos anticoncorrenciais e desestimuladores para a inovação por pequenas e médias empresas.

Dados divulgados pela Alexa2 neste ano revelam os dez sítios eletrônicos mais frequentados no Brasil, na seguinte ordem: Google.com.br; Facebook.com; google.com; youtube.com; uol.com.br; globo.com; live.com; yahoo.com; mercado livre.com.br e wikipedia.org. Associando-se o poder de mercado das empresas fornecedoras de conteúdos e aplicações ao market share das principais operadoras de telecomunicações e provedoras de acesso à Internet no Brasil, com a adoção da prática do zero-rating, é impossível deixar de reconhecer que se trata de concentração indesejada nas mãos de grandes grupos econômicos transnacionais, cujo efeito é a verticalização da prestação dos serviços de acesso à Internet e fornecimento de aplicações e conteúdos, capaz de afetar a inovação, a liberdade de expressão, o livre fluxo de informações, a diversidade cultural, o desenvolvimento econômico das classes de baixa renda e, como consequência, o comprometimento da democracia.

Participação dos Grupos no mercado – 1o Trimestre 20153

E a justificativa para a prática do zero-rating no Brasil no sentido de que se trata de planos voltados para consumidores de baixa renda, que não têm como contratar planos ilimitados, também não se sustenta, pois nos países em que se permite esta prática os preços subiram ao invés de cair, como não poderia deixar de ser tendo em vista os danos decorrentes de condutas concentradoras. Mas nos países em que se proibiu o zero-rating os preços caíram.

O domínio de mercado das empresas de aplicações e conteúdos tem trazidos outros efeitos danosos para o desenvolvimento da Internet, especialmente nos mercados emergentes. O Facebook gera uma tal concentração do tráfego de dados, a ponto de os usuários confundirem Internet com o próprio aplicativo. Matéria publicada na Quartz4 traz pesquisa revelando que milhões de usuários não têm a menor ideia de que estejam na Internet.

Porcentagem de respostas concordando com a frase: “O Facebook é a Internet”5

Estes dados revelam um problema econômico e não apenas mera confusão semântica. Considerando-se que há dezenas de milhões de usuários no Brasil sujeitos aos efeitos da prática do zero-rating e aderentes às principais plataformas de aplicação como Facebook, teremos efeitos decisivos no modo de evolução da Internet como um todo, na medida em que startups, organizações da sociedade civil, editoras, governos e todos os agentes que atuam no mercado, para se comunicarem em larga escala, terão de reverenciar estes grandes grupos econômicos, que poderão condicionar a formação da consciência de milhões e milhões de pessoas de acordo com interesses comerciais, como resultado da concentração do mercado de informação. Isto sem falar nos aspectos de segurança e proteção da privacidade pois as cinco empresas de aplicação mais acessadas no Brasil e no mundo, não por coincidência, participam do sistema de vigilância massiva e arbitrária realizada pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos – a NSA.

DIREITOS DO CONSUMIDOR E ZERO-RATING

O zero-rating impacta também direitos básicos do consumidor, especialmente o direito de escolha e o impedimento de venda casada. Considerando o poder de mercado das principais empresas
fornecedoras de aplicação e conteúdos, quem determina o que deixará de ser descontado da franquia são os interesses econômicos das empresas que se associam e não o interesse e necessidades do consumidor.

Assim, no momento de contratar o acesso à Internet, o consumidor que não puder pagar por um plano ilimitado estará sujeito ao pacote de aplicações ofertado pelo provedor e, ao fim da franquia, terá acesso a uma parte ínfima do universo da Internet. Mas este bloqueio à Internet contraria as garantias inerentes aos serviços públicos essenciais. O Código de Defesa do Consumidor trata dos serviços públicos e determina que, quando forem essenciais devem ser prestados de forma contínua.

Ou seja, esgotado o volume de dados correspondente à franquia, a velocidade do provimento poderá até ser reduzida, mas o acesso irrestrito à Internet deve ser mantido, levando em conta a definição constante do MCI, qual seja: o sistema constituído do conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes.

ZERO-RATING E INTERESSE PÚBLICO

Mas a prática do zero-rating, como já ponderamos acima, não é lesiva por si só. Poderia ser utilizada para atender o interesse público caso os governos e entidades da administração pública formulassem contratos com os provedores de modo a garantir que o acesso a serviços públicos não fosse descontado da franquia. Por exemplo, não haveria cobrança quando o usuário acessasse sítios eletrônicos para entregar declaração de imposto de renda, pagar tributos, lavrar boletins de ocorrência, utilizar serviços de saúde pública, se inscrever em programas sociais, participar de consultas públicas etc. Ou seja, o acesso estaria sendo patrocinado pelos poderes públicos, com vistas a ampliar a fruição de serviços públicos e o exercício da cidadania.

A NEUTRALIDADE E O MERCADO EUROPEU

Em 30 de junho deste ano anunciou-se largamente que o Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão Europeia chegaram a um acordo6 sobre elementos essenciais para um mercado único de telecomunicações, definindo o fim da cobrança de roaming na Europa até junho de 2017 e também introduzindo regras para garantir o caráter aberto da Internet naquele mercado.

O documento consagra regras para garantir o princípio da neutralidade da rede na legislação, impedindo o bloqueio ou estrangulamento de conteúdos on-line, aplicações e serviços, de modo que em toda a União Europeia, contribuindo para um mercado único, com vistas a reduzir o cenário de fragmentação. O acordo especifica expressamente que todo europeu tem de ter acesso à Internet aberta e todos os provedores de conteúdo e de serviços devem tratar igualmente o tráfego, proibindo a priorização paga. A gestão do tráfego foi permitida desde que seja razoável, de acordo com requisitos técnicos justificados, e que deve ser independente da origem ou destino dos pacotes de dados.

Há menção expressa quanto ao zero-rating no sentido de que esta prática não pode implicar em bloqueio de conteúdos concorrentes e que, nestes termos, pode apresentar efeitos benéficos, promovendo uma maior variedade de ofertas para os usuários de baixa renda, incentivando-os a usar mais serviços digitais. Entretanto, há ponderações no sentido de se evitar que esta prática comercial leve à situações em que o poder de escolha dos consumidores fique reduzido, impondo às autoridades reguladoras o dever de acompanhar e assegurar o cumprimento das regras.

PAÍSES QUE PROIBIRAM O ZERO-RATING

Há países, porém, que proibiram expressamente essa prática, como é o caso do Canadá, Chile, Holanda e Noruega, basicamente sob o fundamento de que a prática, além de implicar em discriminação por conteúdo ou serviço e violar a neutralidade, propicia vantagens indevidas entre fornecedores de serviços equivalentes.

A INFRAESTRUTURA DE SUPORTE AO SERVIÇO DE ACESSO À INTERNET

A justificativa utilizada por aqueles que defendem a prática de associar o zero-rating a planos franqueados tem sido a insuficiência de infraestrutura no Brasil frente à crescente demanda por redes com alta capacidade de tráfego e que, por isso, não teríamos como garantir à todos os brasileiros o acesso irrestrito à Internet. Mas os formuladores de políticas públicas para a Internet devem seguir as diretrizes do MCI que garantem o acesso à Internet a todos, em caráter universal, de modo que as ferramentas regulatórias para estimular investimentos em infraestrutura deveriam estar sendo aplicadas, como está previsto na Lei Geral de Telecomunicações, no sentido de que os serviços considerados essenciais não podem ser explorados exclusivamente no regime privado. Isto porque o regime público viabiliza que o Poder Público possa estabelecer metas de universalização e utilizar os recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST), que atualmente arrecada a cada ano mais de R$ 2,5 bilhões, para serem investidos na ampliação das redes de banda larga, que, associados a investimentos privados, poderão estar a favor da democratização do acesso à Internet, já que hoje a infraestrutura além de ser escassa está altamente concentrada nas localidades que concentram a renda do país – regiões Sul e Sudeste.

Porém, admitir a prática do zero-rating do modo como vem sendo praticada no Brasil significa um estímulo ao não investimento, pois ao se permitir o bloqueio do acesso a Internet e sua restrição a aplicações e conteúdos que dependem de baixa capacidade de tráfego para serem utilizados, alivia-se a obrigação do estado e das empresas de promoverem investimentos para a ampliação da infraestrutura pela redução da demanda. E esta solução bate de frente com os objetivos do MCI.

A NEUTRALIDADE, O DIREITO DO CONSUMIDOR E AMBIENTE CONCORRENCIAL NO MARCO CIVIL

Há quem diga que a neutralidade, como prevista no MCI, deve ser vista exclusivamente pelo aspecto técnico e que outras abordagens jurídicas relativas aos direitos do consumidor e garantia de ambiente concorrencial não deveriam ser consideradas na análise do cumprimento das obrigações de tratamento não discriminatório aos pacotes de dados pelos provedores de acesso à Internet. Entretanto, o certo é que o MCI é uma lei voltada para a proteção de direitos humanos e civis, justamente diante do fato de que a Internet, apesar de ser um espaço público, como uma cidade, um parque ou o meio ambiente, surgido da interconexão de redes em escala mundial, está sujeita ao poder de poderosos grupos econômicos transnacionais, que veem na Internet uma oportunidade infinita de lucros, bem como ao poder de governos autoritários que encaram este valioso palco para as mais diversas e livres manifestações do pensamento e comunicação como uma ameaça aos seus domínios.

Sendo assim e considerando os fundamentos, princípios e objetivos declarados no MCI e o próprio texto do art. 9o, que trata da neutralidade, entendemos que restringir o alcance do MCI a questões técnicas será um erro de adequação, pois significa reduzir o ganho social e econômico que foi a aprovação da lei. E a redução defendida por alguns ao nosso ver contraria a própria lei, na medida em que encontramos no art. 9o disposições no sentido de que nas hipóteses de discriminação ou degradação do tráfego, o provedor de acesso deve se abster de causar dano aos usuários, agir com proporcionalidade, transparência e isonomia, oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais. Ou seja, o MCI reconheceu expressamente que a neutralidade está relacionada a outros direitos, que devem ser avaliados na análise do cumprimento ou não da obrigação de não discriminação ou degradação do tráfego.

Restringir o alcance da garantia da neutralidade a aspectos exclusivamente técnicos expurgando reflexões mais amplas e de natureza jurídica, significa ignorar a realidade de que os agentes econômicos que atuam na cadeia da Internet estão cada vez mais concentrados, prestando os serviços de forma vertical, associando-se para explorar a infraestrutura de telecomunicações e comercializar serviços de acesso à Internet e fornecimento de aplicações e conteúdos, com o objetivo de impedir a concorrência efetiva e manter altos preços de forma cartelizada, colocando em risco o caráter democrático da rede. E esta visão restrita nos colocará na situação de por em risco que a nossa “Constituição da Internet” perca sua dimensão social e econômica e deixe de ter relevância no cenário mundial como referência geopolítica para a regulamentação dos direitos da Internet.

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1. http://netmundial.br/pt/about

2. http://www.alexa.com/topsites/countries/BR

3. http://www.teleco.com.br/operadoras/grupos.asp

4. http://qz.com/333313/milliions-of-facebook-users-have-no-idea-theyre-usi...

5. Dados: Geopoll, Jana, SurveyMonkey.

6. http://europa.eu/rapid/press-release_MEMO-15-5275_en.htm

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