NETmundial move a governança da rede para além da CMSI

Milton Mueller, professor da Escola de Informação da Syracuse University, autor e especialista em temas da governança global da Internet

Data da publicação: 

Agosto de 2014

O encontro NETmundial teve êxito em produzir um documento de resultados com legitimidade internacional. Entre os governos, apenas a Rússia, Cuba e Índia explicitamente distanciaram-se do resultado. Dada a velocidade com que o processo foi organizado e a necessidade de inovações de procedimentos para integrar os comentários de centenas de pessoas e fazer as modificações adequadas para o documento, devemos ficar impressionados com esta realização. O conteúdo mais significativo da Declaração Multissetorial de São Paulo é a rejeição indireta (e às vezes direta) da Agenda de Túnis da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI).1 Estamos agora em um mundo pós- CMSI, uma arena de governança da Internet que endossa explicitamente uma forma de governança multissetorial na qual agentes não governamentais têm uma paridade básica com os atores governamentais. De fato, enquanto alguns atores da sociedade civil ficaram desapontados e um pouco petulantes sobre as mudanças de último minuto na linguagem do texto relativa a temas como neutralidade da rede, responsabilização de intermediários e vigilantismo, essas críticas erram o alvo. O debate essencial não era sobre assuntos específicos de políticas (que de qualquer modo são na maior parte tratados no âmbito nacional), mas sobre uma abordagem abrangente em relação à governança global da Internet, sobre a natureza do próprio “ecossistema”.

As mudanças centrais estão refletidas na seção sobre “princípios do processo da governança da Internet”. Aqui podemos ver claras diferenças entre o NETmundial e a CMSI. Conforme o NETmundial:

A governança da Internet deve ser construída através de processos democráticos multissetoriais, assegurando a participação significativa e responsável de todos os intervenientes, incluindo governos, setor privado, sociedade civil, a comunidade técnica, a comunidade acadêmica e usuários.

Em contraste, diz a Agenda de Túnis:

A administração internacional da Internet deve ser multilateral, transparente e democrática, com o pleno envolvimento de governos, setor privado, sociedade civil e organizações internacionais.

A palavra “multissetorial” está presente na declaração do NETmundial, enquanto a palavra “multilateral” está ausente deste texto mas claramente presente na Agenda de Túnis. O NETmundial também rejeitou a definição da Agenda de Túnis de papéis segregados para os participantes na governança da Internet. De acordo com o NETmundial:

Os respectivos papéis e responsabilidades das partes interessadas devem ser interpretados de modo flexível em relação aos temas em discussão.

Por outro lado, a Agenda de Túnis define papéis distintos, separados para estados soberanos, setor privado, sociedade civil e organizações intergovernamentais. Nestas definições, os estados são autoridades proeminentes e exclusivas na construção de políticas públicas:

A autoridade para assuntos de políticas relacionadas à Internet é direito soberano dos estados. Eles têm direitos e responsabilidades sobre temas de política pública internacionais relacionados à Internet.

Contraste a referência a “assuntos de políticas relacionados à Internet” na Agenda de Túnis com a declaração do NETmundial:

O desenvolvimento de políticas públicas internacionais relacionadas à Internet e os arranjos de governança da Internet devem permitir a participação plena e equilibrada de todas as partes interessadas de todo o mundo, e decididos por consenso na medida do possível. ...Qualquer pessoa afetada por um processo de governança da Internet deve ser capaz de participar desse processo. ... A governança da Internet deve ser realizada através de um ecossistema distribuído, descentralizado e multissetorial.

No geral esta é uma grande vitória para o chamado “modelo multissetorial”. O único lugar onde a declaração do NETmundial refere-se explicitamente à Agenda de Túnis é de forma negativa sobre a armadilha conhecida como “cooperação aprimorada”. A Declaração Multissetorial de São Paulo diz:

A cooperação aprimorada, tal como referida na Agenda de Túnis para tratar de questões de política pública internacional referentes à Internet, deve ser implementada de modo prioritário e consensual. Levando em consideração os esforços do Grupo de Trabalho Sobre Cooperação Aprimorada da CSTD/ONU, é importante que todos os interessados comprometam-se a promover essa discussão de modo multissetorial.

Os defensores da soberania tinham a intenção de fazer da “cooperação aprimorada” um chamamento da Agenda de Túnis para avançar em direção a um novo papel para os estados na governança da Internet, de modo mais “equânime”, em contraposição à presença dominante dos EUA. Mas a linguagem era tão confusa que que até hoje estamos tentando resolver seu significado depois de quase 10 anos. Na verdade, não é claro por que esta referência à cooperação aprimorada sobreviveu ao processo do NETmundial; vários comentaristas notaram que o termo não era bem definido. Mesmo assim, o dano causado pela manutenção dessa expressão é minimizado pelo fato que a declaração faz um chamado para que o debate prossiga “de modo multissetorial”.

Em relação a temas específicos de políticas, como já notado, a Declaração de São Paulo já não é tão forte – há muita linguagem incentivando a atribuição de direitos e benefícios sem levar em conta como estes serão alcançados, e sua posição em assuntos controversos contém palavras evasivas que permitem certas concessões.

O Internet Governance Project (IGP)2, com o apoio de vários operadores de ccTLDs3 e outros, conseguiu inserir na primeira versão do documento a proposta de separação estrutural na transição da IANA.4 A ICANN acionou seus consideráveis recursos para eliminar a proposta. Conseguiram em um primeiro momento, a proposta voltou a ser incluída, e o resultado final, como esperado, foi um compromisso frágil. Agora o documento diz apenas:

É desejável discutir a relação adequada entre os aspectos políticos e os operacionais.

A frase sobre “inovação livre de barreiras” é outro exemplo de um compromisso:

Para a conservação de seu dinamismo, a governança da Internet deve continuar a permitir a inovação livre de barreiras através de um ambiente de Internet favorável, consistente com outros princípios deste documento.

O reconhecimento e validação da inovação livre de barreiras são bem-vindos, mas a expressão “consistente com outros princípios deste documento” foi a cláusula de escape para o lobby dos direitos de propriedade intelectual, que defendem a necessidade de permissão para qualquer coisa que se faça. Do mesmo modo, a declaração sobre vigilantismo diz:

A vigilância arbitrária e maciça mina a confiança na Internet e no ecossistema de governança da Internet.

A inserção da palavra “arbitrária” fornece a cláusula de escape para os EUA, a Inglaterra e outros defensores furtivos do vigilantismo, porque eles insistem que o que fazem tem alvos definidos e não é arbitrário.

Ainda assim, a Declaração Multissetorial de São Paulo muda significativamente o tom dos diálogos globais sobre governança da Internet, consolidando ganhos decorrentes da participação mais aberta de setores não estatais. O documento também provou que um processo relativamente aberto podia produzir um documento consensuado de resultados – uma lição que esperamos que o IGF da ONU de algum modo absorva.

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1. Ver https://www.itu.int/wsis/docs2/tunis/off/6rev1.html

2. Ver http://www.internetgovernance.org

3. Entidades de registro de nomes de domínio de país (ccTLD) [N.E.]

4. Ver http://www.internetgovernance.org/pdf/ICANNreformglobalizingIANAfinal.pdf

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