Movimento do Software Livre: por uma relação livre com a tecnologia

Por Hernán López-Garay, Professor, Pesquisador Chefe do Centro de Investigaciones en Sistemología Interpretativa, Universidade de Los Andes. Pesquisador do Centro Nacional de Desarrollo e Investigación en Tecnologías Libres de Mérida

Data da publicação: 

Março de 2010

O impacto tecnológico, econômico, político e social que movimentos como o do software livre (MSL), a Internet, a Wikipédia, as “redes sociais” e outros parecidos exercem na sociedade contemporânea tem suscitado o interesse de diversas correntes do mundo acadêmico. De fato, tanto nas ciências da informação e computacional quanto em várias outras ciências sociais e interdisciplinares (por exemplo, CTS1), inclusive na filosofia da tecnologia, há anos vêm sendo desenvolvidos diversos estudos que se poderiam classificar em dois tipos, conforme a ótica que seus autores adotam diante do fenômeno.2 Por um lado, existem estudos que observam esses movimentos “internamente”, em especial os que buscam entender seus modos de organização interna e de produção de tecnologia, além da sua mútua relação dinâmica. Destacam-se, no caso das ciências da comunicação e dos sistemas de informação, os trabalhos de Orlikowsky e Gash (1994), Orlikowski (1996, 1999), Orlikowsky e Iacono (1999). A lista é extensa e nela constam desde os criadores e ativistas do movimento (Stallman 2004, Raymond 1997, Lessig 2005) até aqueles que buscam explicitar a ótica da qual se utilizam (Zorzoli 2002; Feller, Fitzgerald, Hissam e Lakhani, [Eds.], 2007).

Por outro lado, deparamo-nos com pesquisas e reflexões teóricas feitas a partir de uma perspectiva “externa”, buscando entender o impacto que esses movimentos têm em seu contexto social, econômico, político, legal e cultural. Nesta categoria encontramos estudos como: Orlikowski e Iacono (1999), De Landa (1996, 2001), Wayner (2000), McGowan (2001) e os já mencionados de Feller et. al. e de Lessig - que também contribuem com uma ótica externa. Porém, dentro desta categoria existe uma classe de estudos, de interesse específico para este trabalho, que tentam visualizar o sentido histórico e filosófico desses movimentos tecnológicos, dentre os quais destacamos o de Puelles (2007, p.181), que, a partir da disciplina conhecida como filosofia da tecnologia, propõe que movimentos como o do software livre e do conhecimento livre poderiam servir de atalaias a partir das quais ficaríamos à espreita de temas centrais do nosso tempo, como:

“...a ética comunitária, a liberdade e os direitos fundamentais, questões de filosofia política como o papel da sociedade civil e as distribuições do poder tecnológico, o ativismo, ou aspectos estéticos como a busca de beleza ou eficiência.”

Mencionamos mais duas referências que ilustram esta terceira categoria: Feenberg (2005), com sua teoria crítica da tecnologia e sua aplicação ao campo da informática e às comunidades online, e Moglen (2004), com reflexões históricas para compreender o papel atual do MSL. Este artigo faz eco à idéia de Puelles e às reflexões teóricas de Feenberg, e, pelo ponto de vista do MSL, tenta enxergar a questão da liberdade e sua relação com a tecnologia.

DO SOFTWARE LIVRE ÀS SOCIEDADES DE CONHECIMENTO LIVRE

Entre as décadas de 80 e 90 do século passado, surge um movimento tecnológico que ergue a voz para a sociedade norteamericana e mundial porque vê ameaçadas suas liberdades criativas no desenvolvimento de software. Trata-se do movimento do software livre criado por Richard Stallman (2004).

A historiografia desse movimento é bem conhecida, mas o que chama atenção aí é o surgimento, em seu meio, de um tipo de comunidade tecnológica que, para enfrentar ameaças à sua liberdade criativa, inventa formas de organização nas quais destaca a íntima conexão entre liberdade e tecnologia em geral. A relação entre uma e outra parece clara de início: devido à natureza intrincada de um programa de computador, o desenvolvimento de software requer não apenas um, mas vários olhos a observá-lo, e também várias mãos a corrigi-lo e reescrevê-lo. Tal tarefa precisa de liberdade para difundir esse software, para mudá-lo, reproduzi-lo e debatê-lo. Restringir essa liberdade cria um obstáculo ao progresso tecnológico do software. Ainda por cima, e também por causa da informatização cada vez maior da sociedade, restringir o desenvolvimento da tecnologia de software é restringir o direito que os cidadãos têm de gozar dos benefícios econômicos, políticos e culturais da informatização.

Entretanto, o que o MSL nos permite vislumbrar é que existe outra conexão mais profunda entre liberdade e tecnologia, com raízes muito antigas. Até Moglen, um dos membros do MSL, coloca isso do seguinte modo (Moglen, 2004, p.2):

“O movimento do software livre é um aspecto da grande luta da [humanidade] pela liberdade de expressão das idéias... essa luta tem andado de mãos dadas com a luta por justiça econômica e pela igualdade entre as pessoas... pois a perpetuação da ignorância é o começo da escravidão.” [Tradução livre.]

O papel do MSL se revela então como o de continuar com essa luta histórica e de desdobrá-la em sua forma atualizada. Numa análise de corte marxista, Moglen supõe que uma sociedade nova e melhor vá surgir quando ficarem demonstradas as possibilidades de o software livre “livrar” a economia e a educação das mãos de uns poucos e, também, à medida em que se vá ganhando controle sobre os que nos governam. A criatividade desatada por essas tecnologias e formas organizacionais que impulsionam seu desenvolvimento terá conseqüências benéficas inimagináveis (Moglen, 2004, p.8):

“Milhões de mentes ávidas por conhecimento e beleza, agora [graças à liberação catalisada por esses movimentos tecnológicos], poderão ser satisfeitas. Num mundo onde tudo seja digitalizado [a economia, a educação, as comunicações pessoa a pessoa...], onde o custo marginal da cultura é zero, onde alguém, uma vez que possua algo, poderá dar esse algo imediatamente aos demais e ao mesmo custo que lhe foi dado originalmente, num mundo assim é imoral excluir as pessoas do conhecimento e da beleza. Esse é o grande problema moral que o século XX legou ao século XXI.”

Esta visão utópica é compartilhada por vários autores cuja esperança é a de que as formas de fazer política e de governar sejam transformadas graças à Internet e às tecnologias (entre as quais, a do software livre) que promovem a livre comunicação entre as pessoas, pois isso permitirá mudar o equilíbrio de poder entre governo e cidadão. Dizem que a Internet vai transformar as sociedades democráticas em todos os níveis, transformação essa impulsionada em boa parte pelos processos de “virtualização” da economia, que permitirão, com o toque de uma tecla (um clique) e com os sistemas modulares e de plug-and-play, centralizar a economia em torno dos consumidores, globalizar as cadeias de abastecimento, incrementar a expansão social do modelo das comunidades virtuais e até conseguir a paz mundial (Orlikowski e Iacono, 1999, p.354).3

É claro que deve haver visões menos otimistas sobre essa utopia de uma sociedade informatizada e de conhecimento livre que libertará o resto da sociedade em seus diversos campos (educativo, econômico, político, cultural). Por exemplo, existem aqueles que denunciam a Internet como uma grande ficção no que diz respeito às promessas de ajudar a realizar democracias autênticas, ou ao fato de que, por seu intermédio, será possível universalizar o conhecimento e a educação. A esse respeito, o escritor Francia (2007, p.44) nos diz em seu livro "La Estupidez Ilustrada":

“O pesquisador francês Dominique Wolton opina: Todos dizem que a Internet é um espaço de liberdade, que, graças a ela, graças a tudo que podemos comunicar com ela, vamos conseguir uma espécie de emancipação. E, na verdade, a única lógica na Internet é a do comércio... e o modelo individualista que [promove] a Internet nasce e se desenvolve sob o domínio da cultura individualista, tendo muito pouco de ‘democrática’...”

Movimentos como o do software livre atiçam e estendem essa polêmica; assim, o que se revela gradativamente é a confrontação de dois projetos de sociedade.

INFORMÁTICA DE CONFIANÇA E SOCIEDADES “ORWELLIANAS”

A restrição às liberdades criadoras de software da qual o MSL reclamava inicialmente é apenas a ponta do iceberg de um processo de consolidação de uma sociedade muito mais restritiva. O projeto dessa sociedade se encarna no que Stallman denomina sarcasticamente de informática malévola (o projeto original se denomina informática de confiança4 ou trusted computing em inglês):

“A idéia técnica subjacente à informática de confiança [informática malévola] é que o computador inclua um mecanismo de criptografia e assinatura digital, cujas senhas permaneceriam em segredo. Os programas [de software] “privativo” usam esse mecanismo para controlar os programas que sua máquina pode executar, a quais documentos ou dados você pode ter acesso e para quais programas pode transferi-los. Esse software e hardware privativo, que controla sua máquina, descarregará continuamente novas regras de autorização através da Internet, impondo-as automaticamente à sua máquina e, portanto, ao seu trabalho. Se você não deixar que o computador obtenha periodicamente as novas regras da Internet, algumas aplicações da máquina automaticamente deixarão de funcionar...”

Portanto, Stallman (2004, p.163) continua traçando o modelo de sociedade orwelliana que aponta a informática de confiança:

“Cada computador obedecerá a essas instruções quando descarregar periodicamente as ordens gerais que o direcionam. Paradoxalmente, poderia chegar o momento em que seus escritos desapareceriam da memória coletiva de toda uma sociedade, num tipo de operação de controle social semelhante ao descrito no estado totalitário que aparece no romance de George Orwell, 1984.5

Temos então, por um lado, a configuração no presente de sociedades que se aproximam do tipo idealizado (e, portanto, exagerado) de sociedade orwelliana que nos traça Stallman. Mas, por outro, está o tipo (também idealizado) de sociedades que estão sendo modeladas de acordo com as formas organizadas das comunidades de software livre, tais que poderíamos chamar de sociedades de conhecimento livre.

E o campo de batalha onde começam a se definir com mais clareza as linhas de um e de outro tipo de sociedade é precisamente a Internet, pois as sementes de ambas buscam nela o meio e as ferramentas para avançar seu projeto. Assim, quanto aos grupos tecnológicos envolvidos com um e outro tipo de sociedade, ambos continuam desenvolvendo software que fortaleça a Internet, pois, para ambos, é de vital importância o domínio e a colonização da rede.

Chegamos assim a um ponto crucial da nossa exegese do MSL. A aposta que cada um faz na Internet pressupõe a neutralidade da mesma, ao menos com relação aos ideais desses projetos. Porém, como bem sabemos, a tecnologia não é neutra (Feenberg, 2005). Já em nossa citação anterior, Wolton denunciava uma possível inclinação da Internet no sentido do fomento de uma cultura anterior individualista e muito pouco democrática.

O MOVIMENTO DO SOFTWARE LIVRE E A IMPOSSIBILIDADE DE UMA SOCIEDADE LIVRE

Sendo este o caso, o projeto que impulsiona o MSL seria afetado justamente pelo próprio MSL, na medida em que esse movimento é um grande contribuinte do software que fortalece a Internet. O que buscamos então é elucidar esse paradoxo, o que implicaria esclarecer a “inclinação” da Internet e se a mesma favorece ou não o projeto de uma sociedade do conhecimento livre como o que impulsiona o MSL. Vamos começar, então, esclarecendo alguns dos valores defendidos por esse produto cultural que chamamos de Internet. A efetividade e a eficiência são dois deles.

Reduzir tempo e espaço (distância) a zero em toda comunicação humana são outros dois (Cairncross, 1997). De fato, o impulso para essa redução se manifesta no desenho dos nós da rede para que, ao ser pressionada uma tecla, eles estejam instantaneamente disponíveis ao chamado de qualquer outro nó, a qualquer hora, em qualquer lugar. Ademais, o software e o hardware que permitem esse funcionamento pré-dispõem o usuário a cultivar essa mentalidade do “clique”. O mundo fica instantaneamente ordenado, ao clique de um botão, como um instrumento “pronto” a seu serviço. Essa pré-disposição, por sua vez, impulsiona novas tecnologias mais rápidas, ubíquas (móveis) e de grande velocidade de processamento.

Para onde vai esse processo de mútuas pré-disposições? Que tipo de sociedades ele promove? Qual é a essência desse processo? Vamos concentrar a busca de respostas para essas perguntas na tentativa de entendermos mais profundamente como a tecnologia nos molda, e em que direção. Vamos esboçar duas perspectivas contrastantes com base em contextos conceituais também contrastantes: um heideggeriano (Heidegger, 1994ª) e outro giddeniano (Giddens, 1984). As implicações heideggerianas de nossa exegese para o MSL e seu projeto de liberação serão iluminadoras: o ser humano vive a ilusão de que pode governar a tecnologia. Por conseguinte, a criação de uma sociedade livre seria também uma ilusão, caso isso se entenda como chegar a ter o poder – precisamente por meio da tecnologia – para construir o mundo que lhe aprouver, quando quiser. Seria justamente o inverso: o ser humano é quem estaria a serviço de construir um mundo determinado pela própria tecnologia. E o problema da liberdade no presente, e de qualquer projeto liberador, estaria enraizado justamente nesse novo e aparente paradoxo.

Por outro lado, o contexto conceitual giddeniano nos permitirá argumentar no sentido inverso: é possível, sim, introduzir uma mudança na tecnologia.

Vejamos como a crítica heideggeriana à tecnologia, em contraste com uma concepção do tipo giddeniano, nos fornece um contexto interpretativo a partir do qual podemos examinar mais amplamente essa nova e aparente contradição (o ser humano a serviço do projeto da tecnologia) e perguntemos afinal o que poderíamos fazer a respeito disso, e se é possível para a humanidade (inclusive, se é desejável) reverter essa ordem.

TECNOLOGIA: “ESTRUTURA” ONTOLÓGICA DO PRESENTE OU UM MODO DE REVELAÇÃO?

Comumente entendida, a noção de tecnologia abarca o conjunto de técnicas, conhecimentos e processos que servem para desenhar e construir instrumentos que satisfarão necessidades humanas. Porém, como veremos, o tecnológico tem a ver com algo mais, que aponta para uma forma de “ordenamento” da realidade. Quanto a este assunto de caráter ontológico, com o passar do tempo alinharam-se duas posições em relação à agência humana. Existem os que lhe dão, à agência humana, a possibilidade de mudar o ordenamento, e os que argumentam que ela está determinada pelo próprio ordenamento.

Giddens (1984) nos proporciona um marco sócio-filosófico que representa a primeira posição. Em sua teoria da estruturação, Giddens coloca que sua teoria busca afastar-se tanto dos extremos de um determinismo estrutural como de uma centralização no agente. Efetivamente, para ele, as estruturas sociais possibilitam a ação social; porém, ao mesmo tempo, a ação social cria essas estruturas mesmas, num processo de mútua interação que se denomina estruturação. Conforme Giddens, toda ação humana ocorre no contexto de estruturas sociais pré-existentes. Essas estruturas não são nada mais que regras e recursos. As regras são os padrões que o povo segue, em contexto e cultura particulares. Os recursos são aquilo que é criado pela ação humana. Segundo esse modelo conceitual giddeniano, poderíamos pensar a tecnologia como uma manifestação de estruturas sociais mais básicas que determinam nossa sociedade atual. A essência do tecnológico estaria radicada nessas estruturas e nos processos de estruturação que as sustentam e reforçam mas que, eventualmente, podem chegar a ser mudados pela “agência” humana.

Por outro lado, Heidegger nos proporciona um marco filosófico (situado na filosofia da tecnologia, como diria Feenberg) que é exemplo de outra posição. Em sua famosa crítica à tecnologia, esta nos é apresentada como um modo de revelação e não como uma estrutura. Para Heidegger (1994ª), é a história do ser (ou história ontológica) que determina em cada época a forma com que tudo que é se manifesta, se revela. Como disse Feenberg (2005, p.111):

“De acordo com a história do ser de Heidegger, a moderna ‘revelação’ [ou seja, a forma com que as coisas se manifestam para nós modernamente] está enviesada por uma tendência a tomar cada objeto como uma matéria prima potencial para a ação técnica. Os objetos entram em nossa experiência apenas na medida em que nos fixamos em sua utilidade dentro do sistema tecnológico.”

Na referida crítica, Heidegger desafia nosso pensamento a considerar a tecnologia não como um mero instrumento que se encontra sob nosso controle, mas sim como uma atividade autônoma; ou seja, uma atividade que tem vida própria, que tem uma lógica própria que a determina, uma atividade que ordena a realidade de um modo particular. Observemos rapidamente o sentido duplo do verbo ordenar: significa, por um lado, reunir e dispor as coisas de uma certa maneira. Por outro, significa comandar, dar ordens. A essência da tecnologia, diz Heidegger, nos ordena em ambos os sentidos do termo: nos reúne e dispõe (a nós e à natureza) de um certo modo. Por outro lado, nos ordena a ordenarmos a natureza e a sociedade de acordo com esse modo particular. Por conseguinte, contrariamente à visão generalizada de que a tecnologia é um instrumento a nosso serviço para controlar a natureza e servir a nossos desejos, é a tecnologia que nos controla. Sendo este o caso, como poderíamos então controlar a tecnologia se somos ordenados e constituídos por ela e por sua lógica? Heidegger continua nos dizendo que a essência do tecnológico não é nada técnico, mas sim um modo de revelar a realidade – entende-se por isso um modo de trazer luz às coisas, mostrando-as em certa ordem, em certa disposição. Esta certa disposição, esclarece Heidegger, é localizadora, ou seja, exige da natureza que se revele como fonte de energia, e que esteja sempre disposta a entregá-la para ser armazenada de forma a poder ser usada ao clique de um botão. E tudo isso com a máxima efetividade e eficiência possíveis!

Assim, os componentes desse sistema têm a característica particular de serem dispositivos tecnológicos. Com a palavra dispositivo (em itálico) queremos designar a noção de mecanismo ou sistema disposto, aberto, preparado, pronto para produzir uma ação, mas também a idéia de um mecanismo ou sistema que dispõe. Um dispositivo é as duas coisas ao mesmo tempo. A tecnologia tece, então, um vasto e dinâmico sistema de redes crescentes de dispositivos que extraem, transformam, armazenam, distribuem, comutam, regulam e controlam energia, efetiva e eficientemente. A atividade humana como um todo vai sendo determinada por essas redes que são ordenadas pelo ser humano e nas quais ele mesmo fica ordenado, ou, para dizer de forma mais literal, enredado.

Nos termos de Giddens e Orlikowski, isto é uma descrição sumária dos processos de estruturação mais fundamentais (a nível ontológico) da nossa época atual. A Internet, os sistemas informáticos, o desenvolvimento de software e hardware (por exemplo, computadores), todos seriam expressões dessa ordem virtual (conforme chamado por Orlikowski, 1999, p.5), ordem que, através de seus instrumentos tecnológicos, nos moldaria, e moldaria também o modo de vida moderno. Decerto existe aqui latente uma grave ameaça à liberdade humana, uma vez que não apenas nos falta a consciência desse processo desumanizador (que nos converte em meros dispositivos) como também se cria a ilusão de que é o ser humano que controla e dirige a tecnologia6

O QUE FAZER?

Do ponto de vista heideggeriano (segundo nossa própria interpretação de sua crítica à tecnologia), o ser humano não pode intervir nessas “estruturas fundamentais”. Por quê? Primeiro, porque não é possível estar consciente delas, pois são as próprias que determinam o modo como as coisas se apresentam a nós. Segundo, toda tentativa de dominá-las é fruto da ilusão de não compreender sua essência e cai precisamente no jogo dominador-disponibilizador da própria tecnologia. O que se pode fazer, sim, é “navegar conforme o vento” quando a mudança de estação estiver por ocorrer. A época atual parece que começa a delinear um novo horizonte, a respeito do qual é possível cobrar uma certa consciência do modo de revelação que domina nossos tempos. Adquirir essa consciência representaria por si só uma mudança das “estruturas”.

Portanto, a partir da perspectiva heideggeriana, a forma de estabelecer uma relação apropriada com as “estruturas fundamentais” não pode ser tentando controlá-las, afirmá-las ou negá-las. Nas palavras de Heidegger (1994, p.1): “... nunca vivenciaremos nossa relação com a essência da técnica enquanto nos limitarmos a representar e a impulsionar somente o técnico, enquanto nos resignarmos com ele ou nos esquivarmos dele.” Então, qual é esse “modo próprio” de nos relacionarmos com a técnica? Com referência ao contexto deste artigo, o que significaria para o MSL relacionar-se com a técnica de maneira apropriada?

Por outro lado, para a perspectiva giddeniana, sim, é possível tentar uma mudança das estruturas. Como? Para Orlikowski (1999, p.14), seria o caso de promover o diálogo nos diferentes níveis sociais acerca da realidade social que criamos e o processo de estruturação que o sustenta. Significaria tomar consciência de como coletivamente nós mesmos colocamos em cena, ativamos e “materializamos” as estruturas que nos moldam e que, ao mesmo tempo, nos permitem atuar ou nos restringem. E, baseados nessa consciência adquirida com os processos de estruturação, poderíamos então intervir e mudar as estruturas existentes.

A perspectiva heideggeriana não estaria em desacordo com o diálogo conscientizador (ou seja, diálogo que permita salvaguardar os processos de estruturação). Mas toda tentativa de controlar a tecnologia mostraria simplesmente que o diálogo ainda não conseguiu trazer à tona uma consciência plena desses processos que representam a essência da tecnologia.

Pensamos que, a partir deste debate, duas frentes conscientizadoras poderiam ser colocadas para o MSL. "A primeira, interna, implicaria que os desenvolvedores de software tomassem consciência sobre de que modo, nos processos tecnológicos em que se encontram envolvidos, ocorrem os processos de estruturação tecnológica dos quais eles são agentes e sujeitos passivos ao mesmo tempo. Quanto à externa, seria o caso de não somente incorporar ao seu ativismo político a conscientização da sociedade para a maneira como a tecnologia nos determina e restringe nossa liberdade – o modo como nos enreda numa rede de dispositivos – mas também começar a pensar de que maneira a tecnologia de software pode ajudar a expor em público a essência mesma da tecnologia.

O DESENHO DE SISTEMAS TECNOLÓGICOS COMO PRÁTICA “CONSCIENTIZADORA”: ALGUNS ALINHAMENTOS

Do que foi aqui exposto, desprendem-se alguns alinhamentos de desenho de software e sistemas tecnológicos em geral. O primeiro alinhamento é o de desenhar7 buscando interpretar em cada contexto, e à luz do que aqui se colocou, as 4 liberdades com que Stallman lançou originalmente o MSL. O que buscamos com isso é ir repassando progressivamente os diversos modos de restrição à liberdade que o próprio MSL nos vem trazendo à tona. Assim vamos aprendendo a reconhecer primeiro os processos de estruturação de um nível dos mais simples e, em seguida, dos mais complexos. Por isso um segundo alinhamento se refere a desenhar de tal modo que os desenhos contribuam pouco a pouco para esclarecer o grau de “envolvimento” em que nos encontramos enredados e como esses desenhos vão sustentar e expandir esse “envolvimento”.

À luz e a par com esse esclarecimento, um terceiro alinhamento se refere a neutralizar o afã de controlar a técnica buscando até a “prescindibilidade” da tecnologia. Não se trata de nos afastarmos do tecnológico (por si só, demasiado impossível). Trata-se de que nossos desenhos sejam realizados tendo em mente que não nos atrelem de maneira cega à tecnologia, mas sim que possamos prescindir dela quando necessário.

Um quarto alinhamento se refere ao uso das quebras como mecanismos que revelam o enredamento tecnológico. Exemplifiquemos.

Para aprender a conscientizar como nos enredamos, existem situações da vida cotidiana onde essa tomada de consciência acontece de forma natural. Trata-se de situações onde ocorre uma quebra – uma interrupção abrupta do fluxo normal de eventos. Um pequeno indício do que isso significa ocorre, por exemplo, quando estamos trabalhando ao computador, digamos, escrevendo um artigo. De repente, a Internet cai, ou acaba a eletricidade e não temos uma bateria de apoio. É justamente nessas quebras do fluxo da existência que podemos adquirir subitamente a consciência do sistema de dispositivos no qual estamos enredados: a Internet, o sistema elétrico, o sistema acadêmico, os leitores que esperam o artigo no qual estou trabalhando etc...

O cultivo de um desenho orientado pelos alinhamentos anteriores é tudo que podemos sugerir por ora. Vamos sintetizar esses alinhamentos em três passos: desenhar, buscar quebras (que tragam à luz o modo como nosso sistema tecnológico estará enredado e como ele contribuirá para esse enredamento) e redesenhar, buscando formas de tornar prescindível o que aparece como imprescindível.

CONCLUSÕES

A partir da ótica heideggeriana, o problema da liberdade não parece ter uma saída que esteja nas mãos do ser humano. Aparentemente, só lhe cabe esperar até que as condições fiquem propícias para uma mudança libertadora e então navegar com essa maré. Nossa proposta semeia suas esperanças de que o MSL possa, através da tecnologia, ajudar a essa “libertação”. Entretanto, nos perguntamos se não existe algo contraditório em nossas colocações ao pensarmos que esse movimento pudesse desempenhar o papel de ajudar a essa “libertação” – ou seja, ajudar na conscientização dos processos de estruturação tecnológica do presente – mediante a própria tecnologia. Mas será que podemos nos “libertar” (adquirir consciência) da tecnologia mediante a tecnologia? Orlikowski e Gash (1994), e Orlikowski (1996) dariam uma resposta positiva a essa pergunta no micro mundo das organizações. Feenberg (2005, p.117) também daria uma resposta positiva, pois, para ele, todo campo de poder (e a tecnologia pode ser vista como tal) gera suas resistências que, com o tempo, podem reverter o poder contra si mesmo e mudá-lo. Finalmente, a proposta heideggeriana poderia ser afirmativa já que, ainda que enxergue na tecnologia o perigo máximo desumanizador, também vê nela, latente, o poder de salvação: “Porque onde existe perigo cresce também o poder salvador…” (Heidegger 1994a, p.36).

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1. Refiro-me ao campo denominado Ciência, Tecnologia e Sociedade.

2. A literatura sobre a matéria é extremamente abundante. Uma boa fonte em espanhol é a revista Novática.

3. Neste artigo, Orlikowski e Iacono criticam a chamada “economia digital” e reclamam com seus defensores das exageradas afirmativas com respeito aos benefícios que, supostamente, ela trará para a humanidade.

4. Vem ocorrendo um desdobramento paralelo com o tema de “Cloud Computing”, que é uma tecnologia capaz de oferecer serviços de computação através da Internet. Stallman criticou também o desenvolvimento dessa tecnologia, e por razões semelhantes.

5. Aqui, Stallman faz referência a 1984, famoso romance de George Orwell que sugere uma sociedade futurista controlada por um Estado totalitário que, fazendo uso de avançadas tecnologias de comunicação e informação, consegue controlar a sociedade com formas bastante sofisticadas de restrição das liberdades humanas fundamentais.

6. Feenberg (2005, p.1009) chama isso de ilusão de transcendência.

7. Não devemos nos esquecer de que, antes de mais nada, o MSL é um movimento de desenvolvedores e usuários de software que faz política, mas a partir de sua atividade de criação. Nesse sentido, o MSL não é um partido político per se.

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