Interconexão e o direito humano à comunicação

Por Gustavo Gindre, Coordenador acadêmico do Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação (Nupef) membro do Coletivo Intervozes e Conselheiro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)

Data da publicação: 

Julho de 2008

Desde o final dos anos 60, com o começo do debate que redundaria no famoso Relatório McBride (aprovado pela Unesco em 1980) e o surgimento da Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC), vem se consolidando a ideia de que a comunicação é um direito humano inalienável. Ou seja, o direito a se comunicar é um dos elementos-chave que nos constitui enquanto espécie. Despossuir um ser humano da sua capacidade de se comunicar é o mesmo que despossuí-lo de sua própria humanidade.

Como um direito humano, a comunicação não deve apenas ser permitida, mas também estimulada e garantida. Ou seja, garantir que todos os seres humanos tenham respeitado o seu direito a se comunicar com todos os outros de sua espécie é uma obrigação dos Estados.

Em uma sociedade de massa, o direito humano à comunicação passa fundamentalmente pelo acesso aos meios de comunicação. E nenhum meio de comunicação até hoje foi tão potencialmente1 estimulador do direito humano à comunicação quanto as redes interativas, da qual a Internet é o melhor exemplo.

Para permitir, portanto, que a Internet possa manifestar seu potencial como ferramenta do direito humano à comunicação é preciso garantir que seu acesso não estará condicionado à limitações impostas pelos Estados ou pelo mercado.

Assim como, pelo menos em tese, educação e saúde são direitos de todos e não podem estar acessíveis apenas àqueles que dispõem de recursos para pagar, o mesmo deve ocorrer com a Internet.

Já antes de Cristo, persas, gregos, macedônios, romanos e indianos, entre outros, tinham enorme preocupação em construir e manter estradas que permitiam a circulação de exércitos, mercadores, mas, também, do povo comum. O imperador indiano Açoka, no século III a.c., ficou famoso por construir estalagens nas estradas que permitiam o pouso seguro dos viajantes.

Passados quase 2.300 anos, chegou a vez de construirmos estradas da informação, livres, sem pedágios e censuras, que consigam garantir a todos o exercício do seu direito inalienável à comunicação.

INTERCONEXÃO

O professor Eli M. Noam2 defende a ideia, com a qual concordo, que o tema da interconexão se tornou chave para o sucesso da Internet. E esse tema seria não apenas relevante como, nos últimos anos, teria se tornado de uma enorme complexidade.

No antigo cenário que perdurou até os anos 803, cada país possuía uma única operadora de telecomunicações, que necessitava apenas realizar acordos de interconexão com suas espelhos em outros países. Para regular este cenário de monopólios nacionais havia a União Internacional de Telecomunicações (UIT), órgão das Nações Unidas.

Dois elementos simultâneos (mas, não necessariamente aliados) obrigaram a uma drástica mudança de cenário. De um lado, a onda neoliberal apontou para a quebra destes monopólios nacionais e o aparecimento de novas empresas concorrentes (ainda que hoje vivamos um processo de re-concentração). De outro lado, o surgimento da Internet, que, conceitualmente falando, nada mais é do que uma rede formada pela interconexão (através de protocolos interoperáveis) de inúmeras outras redes, com as mais variadas topografias.

Assim, o tema da interconexão passou a envolver uma gama enorme de agentes econômicos, de tamanhos distintos (operadoras de backbones4 internacionais, satélites, grandes operadoras regionais, carries de carries, pequenas redes locais e até empresas de outros ramos, como energia) e muitas vezes com interesses conflitantes.

Sem resolver essas disparidades de poder econômico (e consequentemente político) entre as diversas redes, jamais conseguiremos lograr o objetivo de garantir a todos o acesso à Internet. Países pobres terão dificuldades para se conectar aos grandes backbones transcontinentais, da mesma forma que redes comunitárias terão problemas para arcar com os custos de interconexão com as malhas de fibra óptica que cortam o país. Se é verdade que nunca foi tão fácil montar uma rede de transmissão de dados, garantir que esta rede conseguirá se interconectar ao resto do mundo ainda é um problema.

RESOLUÇÃO D.50

No plano internacional, a única regulamentação existente sobre o tema da interconexão é a Resolução D.50, da União Internacional de Telecomunicações (UIT), que, de forma muito resumida, prega a livre negociação entre os diversos agentes envolvidos.

A UIT é um órgão sui generis do sistema da ONU (Organização das Nações Unidas), porque, além dos governos nacionais, as gigantes de telecomunicações e equipamentos (como Nokia, AT&T, etc.) possuem assento oficial e exercem enorme pressão nas deliberações da entidade.

Na prática, isso significa que um país como Burkina Faso terá que negociar “livremente” e sem nenhuma “interferência externa” a interconexão de suas redes locais com as gigantes internacionais que administram o tráfego de dados através de seus backbones. Em muitos casos os países são obrigados a pagar pelo tráfego que sai, mas também pelo tráfego que entra em seus países. Ou seja, se um cidadão norte-americano acessar um suposto site em Burkina Faso, os custos do tráfego serão bancados pelo país africano.

Trata-se, portanto, de um mecanismo injusto, desigual e concentrador de recursos, criando o paradoxo de que os pobres (distantes dos principais backbones e geradores de menor fluxo de dados) pagam mais do que os ricos pela conexão à Internet.

A única forma de reverter esse cenário seria assumir uma política que trate os desiguais de forma desigual e que seja capaz de promover algum tipo de subsídio cruzado, que retire recursos dos ricos para garantir o direito humano à comunicação dos pobres.

BRASIL

No Brasil, além da relação internacional desvantajosa, sofremos de males endógenos. Aliás, dois grandes males.

Embora a Lei Geral de Telecomunicações (9.472/97) afirme, em seu artigo 155°, que prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo deverão “disponibilizar suas redes a outras prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo”, passados onze anos nada foi feito para tornar com efeito este dispositivo legal. Tal prática, conhecida como unbundling, obriga que a operadora disponibilize, a preços justos e não discriminatórios, a sua infraestrutura para que empresas concorrentes possam prestar o mesmo serviço. Em vários outros países, especialmente na Europa, o unbundling apresentou resultados tímidos para a queda dos preços de conexão. No Brasil, contudo, nem isso foi tentado, embora esteja previsto em lei.

O unbundling parte do princípio que determinadas infra-estruturas têm custos de instalação que acabam se tornando barreiras de entrada praticamente instransponíveis. Se tais fornecedores de infraestrutura se tornarem, de fato, monopolistas, poderão definir isoladamente os preços, sem uma relação direta com os custos. O unbudling seria, então, uma forma branda de obrigar o surgimento da concorrência.

Para piorar, o Decreto Presidencial 6.424/08 prevê uma troca de obrigações no interior dos contratos de concessão da telefonia fixa. As teles deixam de ser obrigadas a construir postos telefônicos em todos os municípios brasileiros e passam a ter o dever de erguer backhauls em todas as cidades. Backhauls são a infraestrutura que liga o backbone às redes de última milha. Se as telecomunicações fossem uma árvore, o backbone seria o tronco, o backhaul os galhos e a rede de última milha a nervura que percorre cada folha.

Embora em tese a troca seja positiva, o governo não impôs regras de compartilhamento do uso deste backhaul. Ou seja, mesmo que existam redes locais já instaladas (por pequenos provedores ou pelo próprio poder público local), as teles não serão obrigadas a interconectar sua infra-estrutura com estas redes para permitir o escoamento do tráfego local. Na prática, estas possíveis redes locais passarão a competir em situação profundamente desigual com os serviços de banda larga oferecidos pelas teles. O resultado será o aumento da concentração, a diminuição da concorrência e, consequentemente, a subida dos preços.

Mas, há um outro problema típico do Brasil e que também espera há cerca de dez anos para ser resolvido.

Embora tenha surgido em 1998, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) até hoje não foi capaz de construir um “modelo de custos”. Ou seja, o órgão regulador não é capaz de responder a uma simples pergunta: qual o custo real da operação das redes de telecomunicações? Sem esta resposta, como se pode saber se o preço cobrado pela interconexão é justo ou exorbitante?

O único regramento existente é a tabela de preços para Exploração Industrial de Linha Dedicada (EILD), que ocorre quando uma operadora vende o acesso à infra-estrutura para outra operadora. A tabela serve para as operadoras que possuem Poder Significativo de Mercado (PSM) nas chamadas “áreas locais”. Atualmente, apenas Oi, Brasil Telecom, Telefonica e Embratel estão nesta categoria. E a Embratel somente entre “áreas locais” com mais de 100 mil habitantes.

O problema é que a tabela é tão defasada que acaba tendo preços superiores àqueles praticados pelo mercado. Uma interconexão de apenas 2 Mb/s (o máximo que a tabela alcança!!!) pode custar, dependendo de sua localização, entre R$ 828,00 e R$ 6.776,00.

O resultado prático deste cenário totalmente não regulado pode ser percebido no relato do consultor legislativo da Câmara dos Deputados, Vilson Vedana, que, através de documentos, demonstra como a Oi cobrou da prefeitura de Duas Barras, pequeno município da região serrana no estado do Rio de Janeiro, incríveis R$ 4.315,87 para garantir uma conexão de 2 Mb/s à rede wi-fi que esta cidade criou para levar acesso gratuito à Internet a todos os seus moradores. Com o sucesso da iniciativa, a prefeitura acabou demandando uma interconexão de 4 Mb/s e o preço cobrado, em 17 de outubro de 2006, foi de absurdos R$ 17.678,34.

A operadora percebeu que uma rede local gratuita faria uma dura concorrência com seu produto de banda larga (o Velox) e utilizou o fato de ser o único backbone da região para cobrar preços tão altos pela interconexão que, na prática, impeçam a prefeitura de fornecer gratuitamente a conexão.

Da mesma forma que aos planos de saúde privada não interessa um eficiente sistema de saúde pública, não interessa para as teles que o poder público decida garantir o direito humano à comunicação com políticas que permitam, entre outras coisas, o acesso público e irrestrito à rede mundial de computadores. É preciso tornar o acesso um bem escasso para que o preço cobrado possa ser alto. A abundância é ruim para os negócios!

Portanto, ainda no início deste novo século, nosso país precisa fazer uma escolha. A comunicação será um direito humano inalienável ou uma mercadoria?

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1. Emprega-se “potência” aqui no sentido aristotélico. Ou seja, aquilo que determinada “substância” pode vir a ser a partir de um dado “movimento”. Uma semente é, em ”ato”, uma semente, mas, em “potência”, uma árvore. Ou seja, o fato da Internet ser potencialmente democrática não significa que ela o seja em “ato”. É preciso que um determinado “movimento” ocorra para permitir que sua “potência” se torne um “ato”.

2.NOAM, Eli M. Interconnecting the network of networks. Cambridge – Ma, MIT Press, 2001.

3. Rompido a partir do Julgamento Final Modifcado (JFM - http://en.wikipedia.org/wiki/Modification_of_Final_Judgment) que determinou a quebra, em janeiro de 1984, da AT&T e o surgimento das baby bells.

4. Os grandes troncos que constituem a “espinha dorsal” desta rede de redes.

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