FCC X Comcast: muda o jogo das políticas de comunicação nos EUA

Por Joel Kelsey, Analista político e oficial de relações internacionais da Consumers Union

Data da publicação: 

Novembro de 2008

Enquanto os Estados Unidos passaram todo o verão absortos na campanha política, uma votação interessante aconteceu na Comissão Federal de Comunicações (FCC) – a poderosa, ainda que pouco conhecida, agência federal que controla as políticas de comunicações nos E.U.A. Em agosto a agência desafiou toda a sabedoria política existente em Washington DC e assumiu um posicionamento histórico para os consumidores, punindo a Comcast, a maior empresa de comunicações por cabo do país, por impedir seus assinantes de acessar conteúdos na Internet totalmente legais.

A Comissão ordenou que a Comcast deixasse de interferir no tráfego Internet; que explicasse por que razão decidiu bloquear a utilização de determinados serviços on-line por seus assinantes; e a informar os consumidores e a FCC, com total transparência, sobre qualquer nova prática de “gestão de rede”. Punindo a Comcast, a FCC deu um passo certo em direção à preservação da natureza aberta da Internet e à garantia de que provedores de serviços de Internet não podem atuar como “guardas”, decidindo sobre qual informação deve e não deve ser enviada através das nossas redes de comunicação.

Há mais de um ano, na primavera de 2007, um engenheiro de rede chamado Robb Topolski percebeu que não podia partilhar suas canções antigas favoritas – conteúdo perfeitamente legal - com outras pessoas. Depois de fazer uma pequena investigação sobre o fato e publicar suas descobertas, Topolski percebeu que ele não era o único usuário que a Comcast estava impedindo de usar redes populares de P2P - serviços de compartilhamento de arquivos como o Bit Torrent, que representam uma ameaça emergente para empresas de comunicação a cabo como a Comcast por serem uma potencial alternativa para a distribuição de vídeos on-line.

A Electronic Frontier Foundation e a Associated Press (AP) logo começaram a fazer suas próprias investigações e descobram que a Comcast estava deliberadamente identificando e interferindo no uso de tecnologias P2P como o Bit Torrent e-Gnutella.

Assim que a AP divulgou a história nos meios de comunicação, os grupos de interesse público como a Consumers Union, num movimento liderado pela Free Press, apresentaram denúncias à FCC. A Comissão abriu um inquérito em janeiro de 2008, abrindo chamadas para comentários públicos e realizando audiências em todo o país. Em pouco tempo, foi como se tivessem sido abertas as comportas: dezenas de milhares de cidadãos apresentaram as suas próprias observações à FCC; muitos apelaram à FCC solicitando punição à Comcast por enganar os seus clientes.

A Comcast reagiu, primeiro negando ter bloqueado qualquer conteúdo na Internet; em seguida, admitindo a prática e tentando justificar as suas ações chamando-as de “gestão da rede” e, por último, tentando abertamente questionar a FCC quanto à sua autoridade para intervir em nome dos consumidores. Quando se tornou claro que a FCC não aceitaria os seus desmentidos e justificativas, a Comcast tentou atrasar a decisão da Comissão, ao anunciar uma série de negociações – suspeitamente concomitantes - com empresas como a Pando Networks, a BitTorrent e a Vonage, alegando que o mercado resolveria a situação por si. Naturalmente, a motivação por trás desta tentativa de auto-regulação não foi a “magia do mercado em ação”, mas a “magia” da ameaça da intervenção governamental.

FELIZMENTE, A FCC NÃO ENGOLIU ESSE JOGO

A FCC votou sobre este caso em 1º de agosto, e considerou a Comcast responsável por violar a “neutralidade da rede”, o princípio que impede que provedores de acesso à Internet por cabo, telefone ou outros meios discriminem determinados sítios e serviços on-line devido ao seu conteúdo, origem ou destino.

A Comcast não convenceu a FCC com suas tentativas de mascarar a verdade. O mandado da Comissão afirmava que a “ginástica verbal” da Comcast e suas tentativas de tornar obscura a questão do bloqueio foram “não convincentes e fora de propósito”.

A Comissão ficou particularmente indignada com as mentiras e dissimulações da Comcast: “a primeira reação da Comcast às alegações de tratamento discriminatório de tráfego não foi honesta, na melhor das hipóteses foram tentativas de desorientação e ofuscação dos fatos. O que mostra se uma ação é razoável ou não é o fato de um fornecedor estar disposto a divulgar aos seus clientes aquilo que está fazendo.1

Esta decisão muda o jogo das políticas de comunicação nos Estados Unidos. A FCC tem deixado claro que a Internet é uma plataforma essencial para o desenvolvimento tecnológico e a liberdade de expressão. Ao bloquear a possibilidade de seus assinantes utilizarem serviços na Internet que poderiam competir com os seus próprios, e escondendo o fato dos clientes, a Comcast violou brutalmente os direitos dos consumidores.

A decisão da FCC reconhece que a arquitetura aberta em que a Internet tem operado deve ser protegida de “guardas de trânsito” que esperam obter lucros decidindo quem pode enviar que tipo de informação na rede.

Isto protege não apenas a liberdade de expressão, mas também a inovação e o crescimento econômico. Uma articulação clara das regras relativas à forma como os dados são geridos na Internet permite que desenvolvedores de software, engenheiros de rede e outros pensadores da inovação construam o próximo salto tecnológico. Esta é a teoria ponta-a-ponta2 sobre a qual a Internet foi criada - como na rede elétrica, na qual você sabe o que está recebendo quando você pluga a tomada ou liga o interruptor. Quando os operadores de rede começam a interferir no fluxo do conteúdo que passa nas suas redes, como a Comcast fez, as regras do jogo são arbitrariamente mudadas e limita-se o ambiente para inovação.

No entanto, nem todos nós podemos fazer o mesmo que Topolski Robb, nem deve-se esperar que o façamos. Embora parar as arbitrariedades da Comcast tenha sido uma grande vitória, no futuro não deveríamos ter de contar com aficcionados por música, que por acaso também sejam engenheiros de rede, como a nossa principal frente de defesa. Isso é o que boas políticas de comunicação deveriam fazer: proteger a liberdade de expressão dos cidadãos. Um mercado restrito, onde há um duopólio de prestadores de serviços, não vai se auto-governar. É por isso que precisamos de neutralidade da rede nos termos da lei, em termos inequívocos. Temos que criar regras claras que impeçam a discriminação em todas as redes de comunicações no século XXI - com fios, sem fios, seja lá como forem.

Tradução de Graciela Selaimen

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1. FCC. Memorandum Opinion and Order, Formal Complaint of Free Press and Public Knowledge Against Comcast Corporation for Secretly Degrading Peer-to-Peer Applications. WC Docket No. 07-52. August 20, 2008.

2. N.E.: este é um princípio que faz parte do desenho da arquitetura da Internet. Em teoria de redes, a abordagem ponta-a-ponta significa não centralizar o controle de certas camadas (especialmente conteúdo) e deixar que as decisões respectivas estejam nas mãos de quem está nas extremidades da rede.

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