Espectro Livre como alternativa tecnopolítica à vigilância

Adriano Belisário, Mestrando em Comunicação, pesquisador sobre espectro e tecnologias livres

Data da publicação: 

Novembro de 2015

É difícil imaginar algo mais ubíquo em nossas sociedades que o espectro eletromagnético. Muitas vezes, ele é descrito como aquilo que nos ronda, o “ar ao redor”, mas talvez fosse mais apropriado o pensarmos não como algo externo a nós. Ao contrário, podemos imaginá-lo em termos de modulação de energia e matéria, ou corpos. Conscientes ou não, estamos literalmente imersos, atravessados pelo tema. Mas enquanto a reflexão sobre o assunto é tímida mesmo entre defensores da democratização da comunicação (BROCK, 2013), grandes empresas privadas e multinacionais enxergam na comunicação digital e no espectro eletromagnético uma mina de ouro, acompanhando de perto e influenciando as políticas públicas e tecnologias que lidam com este recurso.

Assim como outros recursos comuns – a água, a terra ou a cultura –, o espectro eletromagnético também sofreu historicamente um processo progressivo de cerceamento e apropriação privada. No entanto, atualmente, há chances reais – potencializadas pela digitalização das mídias – de frear este avanço. Mas esta não é uma disputa fácil.

No campo econômico, há pelo menos dois grandes grupos de atores diretamente interessados, quando o assunto é apropriação privada do espectro eletromagnético. No primeiro, estão reunidas as empresas controladoras das concessões de rádio e TV, que durante parte do século passado foram protagonistas da mercantilização do espectro eletromagnético, exercendo grande poder na formação da assim chamada “opinião pública”. No segundo grupo, temos as empresas de telecomunicação, mais recentes, que não operam por broadcast, monopolizando os dados que trafegam na rede.

No Brasil, o primeiro grupo é facilmente identificável no oligopólio constituído pelas poucas famílias que controlam a mídia no Brasil: em especial, as famílias Civita (Abril), Marinho (Globo), Saad (Band), Sirotsky (RBS) e Abravanel (SBT). Apesar de proibidas, este grupo também exerce práticas de subconcessão ou arrendamento de programação para terceiros, como os telecultos evangélicos. No Grupo Bandeirantes, por exemplo, estima-se que 92% da grade de programação seja vendida a terceiros (LOPES, 2011; GABARDO e VALIATI, 2014). Além disto, os critérios eminentemente políticos para concessão de outorgas são amplamente conhecidos. O chamado “coronelismo eletrônico” envolve dezenas de deputados federais e senadores, que controlam indireta ou diretamente emissoras e retransmissoras de rádio e televisão em seus estados, a despeito do que manda a Constituição em seu artigo 54. Segundo levantamento da Folha de São Paulo1, 55 congressistas eleitos em 2014 possuem concessões de rádio ou televisão2.

Já o mercado do segundo grupo é controlado principalmente por empresas de telefonia móvel. Na prática, as ‘teles’ alugam o espectro para seus usuários receberem e enviarem informações. Seu modelo de negócio é totalmente baseado na subconcessão do espectro. Neste caso, o loteamento governamental do espectro ocorre por meio de leilões. O critério deixa de ser principalmente político para tornar-se econômico. Como se alugam terrenos, neste modelo, o Estado aluga o espectro para grupos econômicos privados oferecerem serviços aos consumidores. Em comum a ambos os grupos econômicos, temos a grande concentração econômica em poucos grupos privados. Porém, se nas transmissões de rádio e televisão temos as experiências históricas de TVs e rádios livres ou comunitárias, nas telecomunicações via celular temos poucos e recentes registros de experiências com protagonismo da sociedade civil no Brasil.

As transmissões via rádio pelo espectro incluem, mas não se limitam às rádios AM e FM, televisões e celulares. Para deixar claro, compreendemos aqui “transmissões via rádio” não apenas como as transmissões de ondas sonoras analógicas, moduladas por amplitude (AM) ou frequência (FM), mas em seu sentido técnico, como toda e qualquer transmissão de sinais eletromagnéticos pelo espectro, entre 3 kilohertz e 300 gigahertz. Igualmente, quando abordarmos a noção de “rádio digital” não nos referimos à transmissão de áudio pela Internet (WebRádios), mas sim à transmissão de dados digitais pelo espectro eletromagnético, a partir de tecnologias como o DRM (Digital Radio Mondiale).

Neste sentido, são diversas as formas pelas quais nos relacionamos com as transmissões de rádio pelo espectro. Também estamos utilizando-as ao fazer uso de tecnologias como internet sem fio (WiFi), Bluetooth, serviços de telefonia móvel nos celulares. Quando atende uma ligação no celular, assiste a um programa de televisão, consulta sua posição via GPS ou publica na internet uma foto do seu smartphone, você está transmitindo suas informações por ondas de rádio no espectro eletromagnético.

Apesar de ampliadas com as novas potencialidades trazidas pelas tecnologias digitais, a possibilidade da utilização do rádio para a comunicação horizontal entre pares não é de todo nova. Ainda no início do século XX, o dramaturgo alemão Bertold Brecht desenvolveu uma teoria do rádio (1932) que pode ser considerada visionária por antecipar muitos desafios – ainda atuais – da democratização da comunicação. Mesmo antes da digitalização dos meios, Brecht enfatizou o potencial interativo, democrático e democratizante daquele meio de comunicação. O fato de o rádio ter se transformado majoritariamente em uma mídia de comunicação de massa, tal como o conhecemos, deve-se menos a uma limitação técnica que a um direcionamento sociopolítico, pois os radioamadores e o movimento de rádios livres continuaram a apropriar-se do rádio como uma tecnologia essencialmente interativa e horizontal.

Antes de assumir as características de comunicação em massa, que predominaram no século XX, o rádio era utilizado como uma espécie de telégrafo sem fio, especialmente na comunicação entre terra e mar. Naquele momento, o rádio já era uma mídia de comunicação entre pares, ponto-a-ponto (P2P), onde as posições de emissores e receptores de informação não eram fixas. Percebendo a convergência desta possibilidade tecnológica com sua proposta de um teatro interativo, Brecht criticou a atrofia que a tecnologia do rádio parecia sofrer, ao ser eliminada a capacidade de cada rádio não só receber, como transmitir informações. Para ele, não se tratava de democratizar o acesso à comunicação pelo rádio, mas antes de enfatizar o primado da produção ativa de comunicação via rádio. A respeito do contexto histórico da teoria de Brecht, Celso Frederico comenta:

“Com a derrocada do movimento revolucionário, colocou-se, na Alemanha, a questão do controle do rádio. Quem deve controlar o rádio? A Telefunken e a Lorenz, duas gigantes da indústria de radiodifusão, além de fabricarem os aparelhos, queriam ter o monopólio da emissão. O Estado, porém, logo percebeu a importância estratégica do rádio e quis mantê-lo sob o seu exclusivo controle. Depois de muita discussão, chegou-se a um acordo: o Estado mantém o controle, mas fornece concessões para os grupos interessados.” (FREDERICO, 2007)

Do ponto de vista das tecnopolíticas de vigilância envolvendo o espectro, as ligações da Telefunken com o Estado alemão são emblemáticas. Ainda em 1912, a empresa construiu nos Estados Unidos uma estação de telegrafia sem fio para retransmissões transatlânticas de mensagens e comunicações comerciais em código Morse. A estação em Sayville não passou desapercebida pelos radioamadores da época, que rapidamente notaram as constantes interferências no sinal da rádio. Mesmo com o ruído, em 1915, a Telefunken aumentou a potência da rádio de 35 para 100 kW. As torres de transmissão tinham mais de 150 metros de altura. Além disto, Grant Whytoff comenta sobre o episódio:

“A estação recém-expandida introduziu algumas inovações revolucionárias projetadas pela Telefunken, incluindo um novo teclado com letras, que produzia uma fita de papel perfurado das mensagens em código Morse transliteradas, prontas para serem introduzidas em um transmissor automático. Escrevendo em letras alfabéticas, assim como você faria em seu teclado QWERTY, e o que saía é uma fita grossa de código Morse, que a máquina era capaz de ler. Mensagens poderiam ser enviadas em até 150 palavras por minuto, uma velocidade que teria sido impossível para qualquer operador manual de uma única tecla de código Morse” (WHYTOFF, 2014)

Ao contrário do telégrafo por cabo, a telegrafia sem fio – via rádio – não envia a mensagem apenas para um receptor, mas a “propaga no ar”. Ainda assim, segundo a edição de setembro de 1916 da revista Electrical Experimenter, todas as mensagens eram censuradas pelo governo antes de serem enviadas. “Um oficial do governo senta lá com um lápis azul e, se ele suspeita que a mensagem tem outro significado além do evidente, ele a retorna para o remetente; ou ele pode parafrasear seu significado, dizendo a mesma coisa com palavras diferentes”. (Idem, ibidem) Sendo audível a todos, qual a razão do trabalho do censor?

Sua função era inviabilizar o envio de mensagem criptografadas na estação, com conteúdos escondidos por trás das mensagens aparentes. Exigidas pelo censor, as constantes pequenas alterações nos conteúdos das mensagens visavam dificultar o envio de mensagens secretas. Mas o governo fiscalizava apenas o conteúdo das mensagens, não a sua transmissão.

Subitamente populares após a publicização dos documentos vazados por Edward Snowden, os “hardwares grampeados” – ou seja, máquinas programadas para enviarem mais informações, além daquelas que acreditamos enviar – já eram seriamente debatidos naquela época. Suspeitava-se que talvez o ruído constante da estação de Sayville não fosse uma falha, mas uma mensagem. E foi um rádio amador o responsável por comprovar que a estação em Sayville transmitia mais do que as mensagens audíveis a todos.

Charles Apgar elaborou as primeiras formas de gravar um sinal sem fio em um cilindro fonográfico. Desta forma, era possível visualizar fisicamente uma transmissão por rádio. Ao saber do trabalho de Apgar, um representante da Telefunken declarou ser “fisicamente impossível” o feito, complementando em seguida: “Se o Sr. Apgar conseguiu isso ele deveria patentear a ideia e talvez nós a comprássemos”. (Idem, ibidem) Já o governo norte-americano pediu para que ele checasse as mensagens de Sayville.

Apgar e o governo norte-americano começaram então a perceber que as transmissões de Sayville continham algo a mais, que passava desapercebido por todos, exceto as unidades do exército alemão espalhadas em terra e mar. Graças à tecnologia desenvolvida, os oficiais norte-americanos conseguiram representar fisicamente uma transmissão via rádio, permitindo visualizar e analisar o sinal em si, não apenas o conteúdo das mensagens traduzidas em Morse. Assim, os EUA reconheceram e descriptografaram as mensagens dos alemães, fechando a estação de Sayville. Apesar de ter sido feita por um radioamador, porém, esta descoberta acabou impulsionando um processo de restrição das atividades de rádios não-licenciadas pelo governo.3

Como lembra Whytoff, mesmo hoje em dia, a palavra em inglês “cable” é utilizada para designar comunicações diplomáticas criptografadas, mesmo que estas sejam transmitidas por e-mail ou via satélites. “A história de Sayville serve como um lembrete de que a tecnologia sem fios, desde o seu início, envolveu uma negociação delicada entre a segurança do Estado, sigilo e vigilância do cidadão” (Idem, ibidem).

Esta negociação é sempre dinâmica, pronta para assumir novas formas. As primeiras transmissões de rádio pelo espectro eram marcadas pelo pioneirismo e experimentação, como o de Charles Apgar, sendo facilmente ocupado por rádio-amadores e outros interessados na nova tecnologia. No início do rádio nos Estados Unidos, por exemplo, as rádios comerciais eram apenas uma pequena fração do total. Por outro lado, havia um grande número de rádios não-comerciais, educativas ou religiosas. Por ausência de regulamentação, o espectro configurava-se como um bem comum nos primeiros anos do século XX.

Posteriormente, contudo, ocorre um movimento conjunto de estatização e nacionalização do espectro eletromagnético, seguido pela mercantilização do mesmo. Nos Estados Unidos, quando se iniciou o processo de loteamento do espectro para as rádios comerciais, houve inclusive rejeição da população ao novo modelo. Com o tempo, porém, este modelo foi assimilado e naturalizado. (LESSIG, 2001) Deste modo, até hoje, o loteamento do espectro eletromagnético para grandes grupos econômicos privados é feito pelo Estado, especialmente através das concessões públicas – quase sempre renovadas – e dos leilões bilionários. A gestão de praticamente todo espectro encontra-se totalmente entregue a esta parceria entre Estado e grandes grupos econômicos. Mais uma vez, a exceção fica por conta das rádios e TVs livres, que – mesmo perseguidas pelo Governo Federal – exercem o direito à comunicação, questionando o modelo de apropriação privada do espectro eletromagnético.

Na América Latina, temos um considerável acúmulo de reflexões e práticas por parte dos movimentos sociais, como as propostas de tripartição do espectro entre mídias comunitárias, empresas privadas e veículos públicos-estatais, levantadas na Argentina, Equador e Bolívia. (NOVAES, 2014) Já no Brasil, o artigo 223, capítulo V, da Constituição prevê a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal para as concessões de radiodifusão.

Em Sierra Norte de Oaxaca, no México, o projeto Rhizomatica implementou uma operadora de telefonia móvel auto-gestionada por comunidades indígenas, que posteriormente conseguiu inclusive uma outorga do Estado. Com software livre e tecnologias abertas em GSM e VoIP, a população passou a utilizar faixas do espectro não ocupadas pelas empresas de telefonia, que alegavam inviabilidade econômica para empreender no local. Após a instalação, os moradores comprovaram a viabilidade: um comerciante paga hoje cerca de 15 pesos por mês (cerca de R$3) para esta rede de celular autônoma para fazer todas ligações necessárias, enquanto pagava 10 pesos por minuto para as empresas privadas. (AFP, 2013)

Em 2015, tivemos no Brasil duas interessantes experiências de apropriação do espectro eletromagnético como um recurso comum. No sudoeste do Acre, com apoio de pesquisadores, moradores do município de Marechal Taumaturgo instalaram estações de transmissão de dados com rádio digital, operando em Ondas Curtas. Publicado no site de Rafael Diniz, pesquisador de espectro livre e participante do projeto, o relato inicial do projeto Fonias Juruá contextualiza a ação:

“O Projeto Fonias Juruá consistiu na instalação de 6 estações de rádiofonia e capacitação da operação e manutenção básica dos equipamentos para as pessoas de cada local onde as estações foram montadas. Cinco das estações foram instalas em comunidades dentro da Reserva Extravitista do Alto Juruá, no sudoeste do Acre, e uma instalada na sede da associação que representa a reserva, no município de Marechal Thaumaturgo/AC. […] Em duas localidades foi instalado também um computador notebook e uma interface para conexão do transceptor de rádio ao computador. Foi utilizado um software capaz de gerar um sinal compatível com o padrão HamDRM com o qual foi feito uma prova de conceito de uso de transmissão digital em Ondas Curtas. Fotos foram transmitidas de uma estação para outra, validando a hipótese do uso da faixa de Ondas Curtas para transmissão digital de dados utilizando o mesmo transceptor de rádio utilizado para fonia4.”

A outra experiência foi desenvolvida no hacklab rural Nuvem, na Vila da Fumaça, no município de Resende (RJ). Durante um mutirão envolvendo moradores, pesquisadores e ativistas, foi implementada uma rede de telefonia móvel comunitária com GSM5. O projeto se baseou na experiência mexicana do Rhizomatica. Além de rede de telefonia, foi instalada também uma rede Wi-Fi durante este mutirão. Utilizando tecnologias de comunicação em malha (redes mesh6), esta iniciativa buscou ampliar o acesso dos moradores à internet pública, disponibilizada na praça principal da comunidade. A convocatória para o encontro introduz o assunto nos seguintes termos:

“A cada dia nos tornamos mais dependentes de corporações e empresas que controlam o acesso à informação e a comunicação pessoa a pessoa. No entanto, a tecnologia para transmissão de dados a longas distâncias está ao alcance de qualquer um. Diversas iniciativas ao redor do mundo concretizam um modelo de comunicação que passa pelo cooperativismo, autonomia e comunidade - vide a rede Guifi na Espanha, Free-net em Detroit, EUA, ou Freifunk, na Alemanha. Visando a difusão desta prática no Brasil, a Nuvem já havia apoiado pesquisas na construção de redes autônomas nos encontros interativos de 2012 e 2013. Desta vez, a proposta será de instalar na Fumaça, uma vila de cerca de 1000 habitantes, uma rede wifi que usa tecnologia mesh e que alcance a maior parte das casas. Além disso, pretendemos instalar uma rede GSM para telefonia celular, que permita fazer chamadas via VoIP (pendente de licença da Anatel)7.”

No Brasil, a partir da conexão entre diferentes iniciativas do ramo, recentemente constituiu-se o Rizoma de Redes Livres, inspirado no Rizoma de Rádios Livres que atua desde 2003:

“A principal tecnologia utilizada atualmente para a implementação destas redes é a transmissão de dados sem fio através da família de protocolos 802.11 (WiFi wireless) em equipamentos como roteadores, antenas e outros, aliados ao uso de programas de código aberto (softwares livres). Com estas tecnologias, pode-se implementar uma rede de dados veloz e de baixo custo que funcione como um meio de comunicação livre. Além disso, a interconexão entre os dispositivos diversos pode ser feita de forma descentralizada, em malha (mesh), gerando uma arquitetura de rede extremamente resiliente, onde a perda de um ponto (ou nó) não afeta os demais. Esta característica também permite que tais redes possam se expandir facilmente e conectar áreas remotas onde sequer a telefonia comum alcança. Por se utilizar de uma faixa do espectro eletromagnético para se comunicar, as redes livres se situam no contexto do radioamadorismo e das rádios e TVs livres, como iniciativas autônomas de comunicação por rádio que se apropriam do espectro. […] Quase todo o restante do espectro é mantido sob rígido controle do Estado e suas licenças de uso representam poder e dinheiro, não havendo espaço para iniciativas de comunicação popular. Essa é a luta pela 'reforma agrária do ar' e uso livre do espectro8.”

Utilizando principalmente transmissão de dados por WiFi e softwares livres em equipamentos de baixo custo, estas redes podem funcionar de duas maneiras. A primeira consiste em expandir o acesso à Internet a regiões desconectadas, através de redes descentralizadas em malha, como as feitas na Nuvem. Apesar de resiliente, tal arquitetura ainda depende de uma infra-estrutura estrangeira e inacessível aos usuários: os servidores dos sites acessados pelos usuários ou os cabos submarinos ou os satélites por onde passarão os dados dos servidores, por exemplo. Mais potente como alternativa tecnopolítica à vigilância, uma outra aplicação destas redes livres em mesh consiste em fornecer plataformas e serviços localmente, como em uma “internet de bairro” que opera de forma totalmente independente da grande rede mundial de computadores. Vale notar que estas duas abordagens não são excludentes. É possível, por exemplo, a troca de informação entre estas “internets autônomas”, a partir da construção de redes federadas eventualmente conectadas, como as elaboradas pela Rede Mocambos no Brasil (TOZZI, 2010).

Sem dúvida, a Internet é um meio com enorme potencial para a comunicação horizontal entre pares (P2P) apresentando enorme vantagem em relação às mídias baseadas no modelo de broadcasting. No entanto, sua infraestrutura física de transmissão de dados é cara e encontra-se concentrada nas mãos de poucas empresas. Além disto, mesmo com iniciativas de anti-vigilância a nível lógico via softwares, a sociedade civil e mesmo governos estão hoje fragilizados, uma vez que não possuem controle ou ingerência sobre a camada física na qual trafegam seus dados, como os hardwares utilizados, ou mesmo sobre determinados aspectos da camada lógica, como o gerenciamento do endereçamento DNS (responsável pela tradução dos endereços na web em IPs). Quando considerada em nível governamental, esta falta de privacidade e autonomia pode ter consequências geopolíticas drásticas, como mostrou o recente caso de espionagem do governo brasileiro pelos Estados Unidos da América (EUA). Graças às revelações de Edward Snowden e outros, sabe-se hoje que o Departamento de Defesa dos EUA faz uso até mesmo de grampos e interceptações (backdoors) em hardwares – assim como aqueles de Sayville – para monitoramento em massa de comunicações.

Assim, apesar de muitas vezes ser considerada uma rede livre e descentralizada, a Internet é um meio de comunicação no qual temos pouca ou nenhuma soberania tecnológica ou apropriação de sua infraestrutura física. Deste modo, merecem nossa atenção as possibilidades abertas como a digitalização da comunicação, o rádio definido por software e a criptografia. Com a liberação de faixas do espectro para uso não-licenciado, torna-se possível criar infraestruturas de comunicação segura em escala planetária, de maneira livre e autônoma.

Pensar “espectro livre” não é um retorno aos primeiros anos do rádio, com a desregulamentação de todas as faixas de frequência. Não se trata de desregulamentar, mas de constituir-se – a princípio, de modo não-exclusivo, mas complementar ao sistema atual – uma outra regulamentação, que reconheça e preserve o espectro como um bem comum. Ao invés de voltar ao passado, trata-se precisamente de olhar para um futuro que já é presente e familiar à maioria das pessoas. Diversas tecnologias amplamente difundidas só se tornaram possíveis com a liberação de determinadas frequências para uso não-licenciado, como o microondas, as redes WiFi e o Bluetooth. Estas frequências fazem parte da chamada banda ISM, acrônimo para os fins aos quais ela foi destinada: indústrias, ciência e medicina.

Não é necessário pedir nenhuma autorização ao governo para transmitir dados pelo espectro em uma conexão WiFi ou Bluetooth, tampouco o sinal sofre com interferência. Não há o risco de acidentalmente você ler os e-mails de outra pessoa, somente pelo fato de estar compartilhando uma rede sem fio com ela. Sabemos que diversas redes WiFi podem coabitar a mesma frequência. E os aparelhos que transmitem nesta frequência são “inteligentes” o suficiente para distinguir os sinais. Porém, enquanto nas comunicações por WiFi utilizamos apenas uma curta faixa de frequência para pequenas distâncias, previamente limitada pelo hardware que usamos e designada pelas autoridades governamentais, o rádio definido por software amplia estas possibilidades.

E se o aparelho não fosse restrito a uma determinada frequência, sendo inteligente o suficiente para escolher a melhor faixa para transmissão naquele momento? Isto é possível se a transmissão não for limitada por hardware, mas por software. Ao invés de serem físicas, variando de acordo com o aparelho (celular, TV, etc), as especificações da transmissão podem ser reprogramáveis. O uso corrente desta tecnologia restringe-se às suas aplicações militares e às experimentações e práticas de radioamadores, tal como a Internet em seu início. Mas pensar o barateamento e adoção destas tecnologias em curto prazo implica em adotar outras perspectivas sobre o uso e a gestão do espectro.

Professor de economia e finanças da Universidade de Columbia, Eli Noam dizia em 1995 que “não irá demorar, historicamente falando, até que os leilões do espectro possam se tornar tecnologicamente obsoletos, economicamente ineficientes e legalmente inconstitucionais” (NOAM, 1995). Defensor da proposta do espectro aberto, Noam ironiza a venda de direitos de propriedade sobre o espectro. “Poderia o Estado vender o direito à cor vermelha, se o seu uso não colide com outros? Imagine o governo leiloando – por razões de políticas públicas – o direito de viajar a Los Angeles para prevenir a superpopulação ou o de imprimir livros para proteger as florestas” (Idem, ibidem).

Neste sentido, David Reed denuncia a naturalização da metáfora do espectro como um terreno, onde a partilha estatal é necessária para evitar a colisão de uso (interferência, no caso do rádio). Ao criticar esta abordagem, Reed apresenta estudos e projetos de pesquisa diametralmente opostos, demonstrando que a capacidade do espectro pode aumentar de acordo com a quantidade de usuários, caso se adote modelos de redes cooperativas (REED, 2001). Outro pesquisador do tema, Gilder afirma que estas possibilidades de transmissão via rádio são previstas na teoria da informação de Claude Shannon, elaborada na década de 1940 (GILDER, 1993). A respeito deste novo regime para telecomunicações, que não tome o espectro a partir do paradigma da escassez, Reed afirma:

“Não sabemos qual será a ‘melhor’ arquitetura cooperativa. [...] Então, qualquer novo regime deve encorajar também inovação em novas arquiteturas [...] Creio que hoje é hora de olhar para trás, para os primeiros dias da Internet, em busca de inspiração. Quando o Internet Protocol (hoje chamado IPv4 [ou IPv6]) surgiu, nós não sabíamos qual tecnologia seria melhor construir para as redes. Hoje, nós estamos usando tecnologias que nunca foram imaginadas no final dos anos 1970, e mesmo assim aquele protocolo continua a ser o núcleo da Internet. […] Nós precisamos de um regime que permita redes de radiofrequência interoperarem e cooperarem no uso do espectro de forma aberta e experimental, tal como a Internet fez” (REED, 2001).

A respeito da diferença entre a proposta do espectro livre e a noção de “espectro aberto” (open spectrum), Lawrence Lessig afirma que se trata de grupos muito diferentes, ainda que compartilhem “uma crença de que o espectro deve ser gerido de forma diferente. As diferenças entre eles se resumem a sua atitude sobre a escassez. Em um extremo, está um grupo […] como Dave Hughes, Paul Baran, David Reed, e George Gilder”. Para Lessig, estes acreditam “que é mais provável do que não, que o espectro, usado corretamente, seria, em essência, ilimitado” (LESSIG, 2001).

Já o cientista da computação Silvio Rhatto enfatiza a distinção entre ‘espectro aberto’ e ‘espectro livre’ de outra perspectiva: “O espectro aberto em uma concepção técnica prevê um rádio cognitivo, ou seja, um rádio que seja esperto o suficiente para achar as melhores frequências de transmissão, para identificar outros rádios que estão transmitindo. Isso é um lado técnico, mas se você levar o princípio do open spectrum para o limite mercadológico, o que teremos é este “uso racional, eficiente e automático de concessões” (RHATTO, 2013). Ou seja, no limite, o open spectrum poderia levar a uma generalização de um modelo de negócio baseado na subconcessão automatizada do espectro, mediante pagamentos computacionais, tal como defende Eli Noam. Preocupando-se menos com o surgimento de novos modelos de negócio e mais com a comunicação como direito fundamental de todos e todas, os defensores do espectro livre concebem o espectro como um bem comum.

Mesmo sem nos determos sobre o assunto, para concluir, é oportuno ainda lembrar a disputa para a digitalização do rádio, passo importante para a implementação das possibilidades discutidas anteriormente sobre espectro livre. No Brasil, este processo está há anos sendo estudado pelo governo, que parece relutar em aceitar o padrão aberto, desenvolvido por um consórcio mundial e com software livre, pois considera ainda adotar o HD Radio, cuja tecnologia é mantida sob segredo industrial, sujeitando toda cadeia produtiva do rádio no Brasil a uma empresa norte-americana e ainda descumprindo as diretrizes para o rádio digital estabelecidas pelo próprio Ministério das Comunicações. A este respeito, recorremos à longa, mas elucidativa, citação de artigo do pesquisador de rádio digital Thiago Novaes:

“A escolha do padrão de rádio digital já se arrasta há alguns anos. Oficialmente, teve início com uma portaria presidencial que, a exemplo da TV digital, repetiu os termos de inclusão social, otimização do espectro, respeito à diversidade, etc. Durante a promulgação da portaria, estava à frente do Ministério das Comunicações o sr. Hélio Costa, ex-funcionário da maior empresa de comunicação do Brasil, a Rede Globo. Em telegrama vazado pelo projeto WikiLeaks, Hélio Costa se comprometia a defender o padrão norte-americano de rádio digital como “prêmio de consolação” aos parceiros comerciais dos EUA, já que o sistema adotado para TV tinha como base a tecnologia japonesa. Entretanto, a tecnologia de rádio digital norte-americana é notadamente muito ruim, praticamente isolada em seu país de origem, indisponível para Ondas Curtas, funciona mal na faixa AM, sem capacidade de otimizar o espectro, e possui um codec de áudio proprietário, ou seja, é um “segredo industrial”. A despeito de sua qualidade técnica inferior, o padrão HD Rádio, de propriedade de uma única empresa, a Ibiquity norte-americana, é o preferido das atuais empresas de radiodifusão para ser o padrão brasileiro de rádio digital. Vários outros padrões estão em funcionamento no mundo, em condições muito mais favoráveis ao desenvolvimento do sistema brasileiro de rádio digital, tendo sido escolhido para testes o padrão DRM, ou o Rádio Digital Mundial. Diferentemente de seu concorrente, de vocação comercial, o DRM foi criado a partir da iniciativa de rádios públicas e educativas de vários continentes, é desenvolvido desde um consórcio com dezenas de integrantes de vários países, e se configura como um padrão aberto de rádio digital, ou seja, facilmente adaptável às distintas realidades dos países que o adotam. Índia e Rússia já escolheram o DRM como padrão, e rádios de várias partes estão investindo no desenvolvimento e compra de equipamentos que, de maneira bastante flexível, atendem a todas as faixas de frequência e alcance territorial: em Ondas Curtas, a Índia irá transmitir, com alguns transmissores recém-comprados, dados para um território intercontinental” (NOVAES, 2013).

De modo geral, por fim, observamos que tais novas tecnologias refutam ou ao menos questionam severamente a chamada “escassez do espectro”, utilizada como suposta limitação física que justifica o loteamento e apropriação privada de faixas do espectro eletromagnético. Ao contrário, como vimos, diversos autores demonstram que o espectro não é naturalmente escasso. As novas tecnologias de comunicação via rádio nos mostram diversas possibilidades de compartilhamento de suas faixas, sem prejudicar transmissões com interferências, pois estas se devem a uma limitação dos receptores, não do espectro.

Comparada aos cabos submarinos, fibras ópticas ou satélites em órbita, a transmissão de dados pelo espectro eletromagnético necessitam de um investimento consideravelmente baixo, uma vez que bastam transmissores e receptores para tal: a propagação das ondas pelo espectro encarrega-se do resto. Deste modo, a adoção no Brasil de um padrão livre para o rádio digital (DRM) e a liberação de faixas do espectro eletromagnético para uso não-licenciado é uma questão urgente e crucial no âmbito da inovação tecnológica, bem como na democratização e construção de infraestruturas autônomas de comunicação no país. Em tempos de mineração de dados e vigilância em massa, reinventar o rádio a partir do digital é um caminho eficaz de garantir autonomia para uma comunicação livre.

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1. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/12/1561839-congressistas-eleitos...

2. A este respeito, ver também: http://donosdamidia.com.br

3. Ver Electrical Experimenter, de 1913. Disponível em https://archive.org/details/electricalex519171918gern

4. Relato completo no site: http://www.telemidia.puc-rio.br/~rafaeldiniz/public_files/fonias_jurua/

5. Global System for Mobile Communications. Mais informações sobre o padrão GSM em: https://en.wikipedia.org/wiki/GSM

6. Para mais detalhes, consultar a Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Redes_Mesh

7. Texto retirado da wiki da Nuvem: http://nuvem.tk/wiki/index.php/Convocat%C3%B3ria_-_Fuma%C3%A7a_Data_Springs

8. Texto obtido em http://www.redeslivres.org.br/sobre

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Bibliografia

Agência AFP. Indígenas Do México Operam a Própria Empresa de Telefonia Celular. 2013. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/mundo/america-latina/indigenas-do-mexico-op...

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BROCK, Nils. Plip-Plip em Vez de Bling-Bling? – Um Olhar Crítico Sobre o Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica (PLIP) Face ao Direito à Comunicação em Tempos da Digitalização do Rádio. Disponível em: http://espectrolivre.org/wp-content/uploads/2015/04/1-NILS_BROCK_ESC2_Cr...

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GABARDO, Emerson; VALIATI, Thiago Priess. A Prática de Subconcessão Promovida por Concessionárias de Serviços Públicos de Radiodifusão Sonora e de Sons e Imagens – “Aluguel” de Horários para Televendas e Programas Religiosos. A&C – R. de Dir. Administrativo & Constitucional | Belo Horizonte, ano 14, n. 57, p. 85-103, jul./set. 2014. Disponível em: http://www.guilhermegoncalves.com.br/arquivos/Artigo_A&C.pdf

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