As desafiadoras possibilidades de participação no mundo da ICANN

Por Graciela Selaimen, coordenadora do Nupef e atualmente é membro do MAG - Multistakeholder Advisory Group do Fórum de Governança da Internet, das Nações Unidas

Data da publicação: 

Março de 2009

A missão central da ICANN1 é bem específica: coordenar o sistema global de anúncio e distribuição de nomes de domínio e números IP o sistema de endereçamento entre computadores da Internet ­ por delegação (sob contrato por tempo determinado) do Departamento de Comércio do governo dos EUA. Na prática, essa missão desdobra-­se em um grande número de obrigações, contratos e atividades de coordenação e supervisão, além da responsabilidade sobre a operação dos servidores ­raiz de endereçamento da rede (os chamados “DNS root servers”) a maioria dos quais sediados nos EUA. A complexidade desse conjunto de atividades acaba criando problemas de atribuição e “zonas de fronteira” em que muitos questionam se a entidade tem de fato o mandato para deliberar sobre algumas delas.

A ICANN de fato decide sobre o seu mandato em assuntos que ela julga que possam comprometer “a estabilidade e a segurança operacional da rede”, o que em si já dá margem a contestações e dúvidas. É óbvio, por exemplo, que o spam de e­mail, combinado com vírus, representa uma enorme ameaça à estabilidade e à segurança da rede, devido à carga crescente que significa na infraestrutura de transmissão de dados e na operação dos servidores. No entanto a ICANN não inclui em sua pauta a resolução desses problemas.

Um outro exemplo é como os diferentes agentes que operam a infraestrutura decidem como as diferentes redes físicas realizam suas interconexões. Há vários problemas derivados da forma não padronizada em que diferentes países e mesmo regiões resolvem esse problema ­ em alguns casos, considera­-se que a interconexão é um serviço público que deve reduzir custos de tráfego e otimizar a velocidade, mas em outros ela é encarada como mais um serviço onde se pode ganhar dinheiro. Não há no mundo nenhuma entidade internacional com autoridade para coordenar ou propor padrões neste campo, e a ICANN tampouco considera essa atribuição como sua. Pode­-se justamente argumentar que ela não foi criada para isso (e falta um foro ou organismo internacional que permita estabelecer e negociar os arranjos de trânsito Internet entre os países), mas o fato é que a fronteira do mandato da ICANN é movida por ela mesma segundo conveniências e critérios duvidosos.

Na prática, a ICANN se concentra em administrar um complexo sistema de delegação de atribuições para gestão (com ou sem finalidade de lucro) de grandes grupos de nomes de domínio, que se desdobram basicamente em duas vertentes: os domínios genéricos (simbolizados por gTLDs ­.com, .org, .net, por exemplo) e os domínios de país (simbolizados por ccTLDs ­ .br no Brasil, .ar na Argentina, e assim por diante).

Sendo o primeiro sistema de governança da Internet criado (de nível mundial, em termos de alcance, mas controlado pelos EUA, desde a sua criação em setembro de 1998), a ICANN deveria originalmente operar numa estrutura “de baixo para cima”, e procurar envolver indivíduos e organizações de outros países em suas organizações de apoio, recebendo aconselhamento de governos através de um Comitê Consultivo Governamental (GAC). Ao longo do tempo outros grupos consultivos foram criados, incluindo dois para permitir a participação, a título consultivo, de organizações da sociedade civil (Non-Commercial Users Constituency, NCUC) e “internautas individuais” (At-Large Advisory Committee, ALAC).

A ICANN hoje mantém as seguintes organizações de apoio, que são parte formal da sua estrutura orgânica e que podem nomear membros para o Conselho de Administração:

Address Supporting Organization (ASO, http://www.aso.icann.org) – que tem como objetivo a revisão e a elaboração de recomendações a respeito de políticas sobre Protocolo Internet (IP) para aconselhar a Diretoria da ICANN. Hoje esse papel coordenador, na prática, foi assumido pela NRO (Number Resource Organization), um consórcio independente de cinco entidades encarregadas de gerenciar os Registros Regionais de Internet: AfriNIC, APNIC, ARIN, LACNIC e RIPE/NCC.

Country Code Domain Name Supporting Organization (CCNSO, http://www.ccnso.icann.org) – organismo responsável pelo desenvolvimento e pela recomendação ao Conselho de políticas globais relacionadas com os código de país para domínios de nível superior. Generic Names Supporting Organization (GNSO, http://www.gnso.icann.org) organismo que assume as responsabilidades da Domain Name Supporting Organization que se relacionem com domínios genéricos de primeiro nível (gTLDs). É relevante notar que o NCUC, que é constituído por organizações sem fins lucrativos que não sirvam a interesses comerciais, presta assessoria à GNSO - três de seus membros fazem parte do Conselho da GNSO.

At-Large Advisory Committee (ALAC, http://www.alac.icann.org) – procura dar voz e voto a comunidades de usuários de Internet, organizadas em associações de usuários estruturadas regionalmente, tanto na GNSO como no próprio conselho da ICANN.

Government Advisory Committee (GAC, http://www.gac.icann.org) – a ICANN recebe contribuições dos governos através do GAC, o Comitê Consultivo Governamental. O papel fundamental do GAC é dar consultoria para a ICANN em questões de política pública. Em particular, o GAC analisa as atividades e políticas da ICANN que dizem respeito às preocupações dos governos, particularmente em questões nas quais pode haver uma interação ou conflito entre as políticas da ICANN e leis nacionais ou acordos internacionais. Atualmente, participam regularmente do GAC mais de 30 governos nacionais e organizações como a UIT2 e a OMPI.3

Desde junho de 2008 a ICANN passa por uma reforma significativa da GNSO, que é um importante organismo de formulação de políticas. Seguindo recomendações da London School of Economics, a ICANN vem tomando iniciativas para aumentar a participação da sociedade civil na GNSO. Em agosto de 2008, o conselho da ICANN aprovou a formação de quatro novos grupos de interesse ­ os SGs (sigla de Stakeholder Groups). Estas estruturas de SG são um conceito novo adotado pelo comitê que revisou as propostas de aprimoramento da GNSO.4 Até 5 de março de 2009, foram submetidas cinco propostas de novos grupos de interesse: o Registry SG5, o Registrar SG6, o Commercial SG7 e duas propostas para o Non-­Commercial SG (NCSG).

Uma das propostas em curso promovida pelos grupos que representam interesses não comerciais na ICANN, foi oferecida pelo NCUC (Grupo de Representação de Usuários não Comerciais) e propõe a criação do “non-commercial stakeholders group” (NCSG) da GNSO. Este grupo absorverá o atual NCUC e irá representar as visões e os interesses das pessoas que se dedicam a atividades não comerciais na Internet, relacionadas às políticas de nomes de domínio.

O NCSG deverá oferecer voz e representação nos processos da ICANN a organizações sem fins lucrativos que sirvam a interesses não comerciais tais como: educação, organização comunitária, promoção da cultura e das artes, defesa de políticas de interesse público, bem-­estar de crianças e jovens, religião, pesquisa científica, direitos humanos, famílias ou indivíduos que registram nomes de domínio para uso pessoal não comercial e usuários de Internet que se preocupam essencialmente com os aspectos não comerciais, de interesse público, das políticas de nomes de domínio ­ desde que não estejam representados na ICANN como membros de outras organizações de suporte ou outro grupo de interesse no GNSO. O NCUC fez uma proposta à ICANN para formalizar o NCSG por meio de uma petição.8 As consultas públicas sobre a proposta do NCUC foram muito bem recebidas entre as instâncias não comerciais. Foi organizado um intenso trabalho de consultas amplas, tanto nos encontros da ICANN como através de discussões online. Após este processo de consultas, a versão final do documento foi formalmente apresentada à ICANN em 28 de fevereiro de 2009.

Um dos aspectos mais importantes desta proposta é o fato de integrar todos os processos de deliberação e votação em uma estrutura unificada. Assim, a estrutura proposta:

• assegura que aqueles que venham a representar os grupos não comerciais no conselho do GNSO contarão com o apoio de todos os interesses representados no NCSG;

• apóia a formação de posições de consenso sobre políticas, não permitindo que interesses específicos controlem conselheiros/votos no conselho do GNSO;

• torna mais forte a representação ao reduzir as barreiras para a participação e a formação de grupos de interesse específicos.

Como os atuais Estatutos da ICANN prevêem que qualquer grupo de indivíduos ou entidades podem apresentar uma petição ao Conselho para obter o reconhecimento como um novo grupo de interesse, outra proposta para a constituição do Grupo de Representação de Usuários não Comerciais foi encaminhada pela Brigham Young University – mais precisamente, por Ralph Yarro e Cheryl Preston, que representam os interesses da Fundação CP809, entidade com forte participação dos mórmons norte-­americanos, cuja missão é combater a pornografa. Esta proposta visa à formação do Grupo de Interesse para a Cibersegurança.

De acordo com o Internet Governance Project (IGP)10, da Universidade de Syracuse, a proposta de Preston pretende regular conteúdos na Internet sob a argumentação de que assim estaria protegendo crianças e adolescentes ­ mas na verdade pretende atingir qualquer usuário de Internet, bloqueando tudo aquilo que for considerado conteúdo obsceno. A CP80 defende que todo “conteúdo adulto” da Internet seja banido da Porta 80, a porta lógica padrão utilizada pelos programas de navegação para acesso aos sítios Web, ficando acessível através de uma outra porta exclusiva. Na segunda quinzena de março, a CP80 mobilizou uma rede mórmon anti­pornografia para enviar mensagens de apoio à criação do do Grupo de Interesse para a Cibersegurança, na consulta pública realizada pela ICANN.11

Esta não é a primeira iniciativa que tenta atribuir à ICANN a prerrogativa de exercer censura e regulação privada. Em outras discussões no passado recente sobre a criação de novos nomes de domínio houve grupos que queriam que a ICANN negasse a criação de certos gTLDs com base em razões morais, políticas e comerciais que não estão relacionadas com a missão da ICANN – o que levaria à censura de nomes de domínio. A campanha “O Núcleo da Internet Deve Ser Neutro”12 foi criada em 2007 para fazer frente a estes interesses e se mobiliza para que a ICANN se abstenha de embutir determinados padrões nacionais, regionais, morais ou religiosos nas regras globais sobre o uso de linguagens em nomes de domínio.

Hoje, novamente, interesses de grupos isolados que defendem valores que não são universais, mas engendrados culturalmente e baseados em tradições inscritas em tempos e espaços limitados, querem impor sua lógica e sua verdade à comunidade global da Internet. A petição da Campanha “O Núcleo da Internet Deve Ser Neutro” afirmava em seu último parágrafo: “Requeremos que a ICANN resista a qualquer tentativa de restringir quais idéias podem ser expressas em qualquer nível de hierarquia da Internet. A estrutura técnica da Internet deve ser neutra e livre de quaisquer conflitos nacionais ou ideológicos, possibilitando que a liberdade e a inovação floresçam no ciberespaço.”

Sabemos que não existe tal neutralidade tecnológica, mas a discussão sobre este conceito não caberia no espaço deste artigo. De qualquer forma, é evidente a necessidade contínua e cada vez mais urgente de monitoramento por parte dos usuários não comerciais sobre as discussões e processos de formulação de políticas e diretrizes no âmbito da ICANN, para que as decisões tomadas no nível das camadas de infraestrutura e de código da rede mundial respeitem o caráter aberto e horizontal da rede mundial de computadores.

A participação no NCSG é uma das formas de exercitar a cidadania na Internet e, sempre que necessário, defender direitos humanos fundamentais já consagrados – bem como novos direitos que surgem a partir de complexas relações sociais que as tecnologias da informação e da comunicação ajudam a estabelecer.

---
1. Internet Corporation for AssignedNames and Numbers (Corporação para Designação de Nomes e Números da Internet) – http://www.icann.org

2. União Internacioal de Telecomunicações – http://www.itu.org

3. Organização Mundial de Propriedade Intelectual – http://www.wipo.int

4. Um diagrama com a nova estrutura do GNSO (válida a partir de julho de 2009) está em http://gnso.icann.org/en/improvements/structureen.htm

5. Grupo que representa os interesses dos Registries, que são empresas ou organizações que mantêm um registro centralizado dos Top­Level Domains (ou gTLDs). Atualmente há apenas um Registry para cada gTLD: .com, .net e .org.

6. Grupo que representa os interesses dos Registrar, que são empresas ou organizações acreditadas pela ICANN que têm authorização para prover serviços de registro de gTLDs ( .com, .org e .net.). As Registrars mantêm acordos contratuais com seus clientes e submete todos os novos domínios registrados ao seu respectivo Registry.

7. Grupo que representa os interesses de provedores comerciais de acesso e serviços à Inter­net, de empresas usuárias da Internet e de grupos que defendem interesses relativos a propriedade intelectual.

8. Ver em http://gnso.icann.org/en/improvements/ncsgpetitioncharter.pdf

9. http://www.cp80.org/solutions/internet_governance

10. IGP ­ http://www.internetgovernance.org/

11. As mensagens podem ser lidas em http://forum.icann.org/lists/cybersafetypetition/

12. Em inglês, Keep the Core Neutral. Refere­se à proteção do sistema de gestão de recursos críticos da Internet (tal como nomes de domínio globais e números IP) contra interferências políticas ou de cunho moral e religioso. Para um aprofundamento sobre o tema, ver o texto de Michael Palage “Please, Keep the Core Neutral” em http://www.circleid.com/posts/please_keep_the_core_neutral

Categoria: 

 

Endereço

Rua Sorocaba 219
Botafogo
Rio de Janeiro . RJ
22271 110

 

Creative Commons

O conteúdo original deste site está sob uma licença Creative Commons Attribution-ShareAlike 4.0 International (CC BY-SA 4.0) https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/. Os conteúdos de terceiros, atribuídos a outras fontes, seguem as licenças dos sites originais, informados nas publicações específicas.